Ensaio de Estética (N. Goodman)

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ESTÉTICAS A PROPÓSITO DAS

CONCEPÇÕES DE NELSON GOODMAN

O construtivismo de Goodman leva-o a recusar a existência de qualquer realidade em si, independente e autónoma. O mundo não é um dado exterior aos esquemas de construção de descrições e interpretações que o visam apreender. Nem tão pouco se pode falar de objectos, de coisas ou de estados de coisas únicos que correspondam a diferentes processos de representação. O que Goodman afirma é que o mundo é construído a partir de sistemas de símbolos que são "versões-de-mundos". A realidade surge, então, confinada numa determinação simbólica que organiza os seus referentes, lhes dá valor e significado no âmbito de cada sistema. Assim, porque " não estamos a falar de múltiplas alternativas possíveis a um único mundo real mas de múltiplos mundos reais ", criamos mundos quando criamos versões-de-mundos".

O anti-realismo ou convencionalismo de Goodman sugere vários problemas. Por exemplo, poderemos questionar se ao construirmos versões estamos a construir realidades correspondentes, ou se qualquer construção se coloca apenas no campo das representações. Por outro lado, é também pertinente perguntar o que é o mundo, o que dele fica que possa ainda ser determinado quando o tornamos independente de toda a conceptualização. São questões que se articulam dentro do mesmo nível de argumentação. Falar de uma realidade ontológica livre de teorias levar-nos-ia a não compreender a presença de uma pluralidade de versões enquanto sistemas diferenciados de simbolização. Como diz Carmo D´Orey : " Não faz, por isso, sentido, falar de qualquer realidade independente das versões nem de qualquer ponto de partida autónomo percepções, dados e matéria, experiência e factos, todos são construídos e relativos à versão de que fazem parte " .

A recusa em aceitar um mundo livre de teorias não significa defender uma posição imaterialista que nega a existência de um " mundo " anterior e independente dos actos de descrição. Significa apenas que dele nada podemos dizer ou pensar, ele é-nos incompreensível, inatingível, sendo, por isso, inútil e ilusória qualquer discussão que pretenda esclarecer as propriedades e as características essenciais do mundo.

O que está, então, em causa é que se o mundo é construído através de símbolos, " adoptar um sistema consiste em adoptar uma convenção que fixa a referência dos seus termos. Essa convenção pode ser produto de habituação ou de estipulação. Mas, uma vez adoptado o sistema, o que uma coisa é torna-se uma questão de facto no âmbito desse sistema " .

O pluralismo de Goodman implica afirmar que nenhuma versão é superior a outra, tanto a ciência como a filosofia, ou a arte ou o conhecimento corrente, são sistemas simbólicos com a mesma validade quando comparados. Qualquer contradição resulta apenas do facto de estarmos perante versões que dizem respeito a mundos diferentes. Não podemos estabelecer hierarquias de certeza e rigor. Não há construções simbólicas mais ou menos perfeitas entre si, mais ou menos eficazes, há versões, versões que são verdadeiras enquanto sistemas de símbolos aplicados aos seus respectivos campos de referência. Nada tem um valor em si mesmo, o que implica reconhecer que não existem linhas rígidas de divisão entre símbolos e referentes, mas que estes só se exprimem, significam e funcionam no jogo de uma simbolização contextual, ou seja, dizendo de outro modo : " Falar de conteúdo não estruturado ou de dado não conceptualizado ou de um substrato sem propriedades é autodestrutivo; Porque o discurso impõe estrutura, conceptualiza, atribui propriedades " . Assim, os sistemas de símbolos " são relativos aos nossos objectivos e interesses e todos podem ser correctos ou incorrectos de várias maneiras. Também para todos tem de haver critérios de aceitabilidade " .

Desta perspectiva pluralista decorre, como vemos, uma certa posição relativista. A existência de várias versões legítimas não afecta a possibilidade de reconhecer as que são válidas e as que não são, e as que sendo são-no apenas dentro dos objectivos traçados. Segundo Goodman, é o critério de correcção que ao articular-se com a noção de ajustamento permite determinar a aceitabilidade ou não das versões. É um critério que tem uma extensão ampla, pois aplica-se não só ao domínio da teorização científica como ao domínio das manifestações artísticas. Digamos, resumidamente, que a referida noção surge quando queremos falar de verdade, mas que tem vantagens, pois não se trata de defender , como se compreende pelas teses enunciadas, uma perspectiva representacionalista e essencialista do real, mas de ajustamentos entre mundos e versões-de-mundos, de acordo com os processos e finalidades previamente definidos.

Se nos centrarmos, agora, mais concretamente nas questões estéticas, que são as que nos preocupam, surge clara a ideia que a demaração tradicional entre a ciência e a arte não faz mais sentido, sem contudo se deixar de assinalar diferenças, mas diferenças que ocorrem, precisamente, das características específicas das respectivas construções simbólicas. Como diz C. d´Orey: " Admitida a nova epistemologia, a concepção anti-intelectualista, que opõe a arte à ciência, torna-se insustentável. Dicotomias vagas e obscuras, mas profundamente enraizadas, são superadas: não mais de um lado a beleza, a intuição e a emoção e, do outro, a verdade, a racionalidade e o saber. Porque nenhuma destas propriedades é privilégio da arte nem da ciência e todas são insuficientes para distinguir uma da outra. A tarefa comum de ambas é a construção de mundos através de sistemas de símbolos e o valor de qualquer delas depende da correcção das construções realizadas. Ambas podem ser correctas e incorrectas de diferentes maneiras; ambas podem ter um domínio de aplicação universal: para ambas existem critérios de aceitabilidade, e testes e experiências a que podem ser submetidas; em nenhum caso há garantias definitivas ".

I) A arte é um modo de fazer mundos, ou seja, é um sistema de simbolização. A arte consiste, pois, numa conjunto organizado de símbolos (esquema ) que se aplica a um conjunto de referentes (campo de referência ).

Símbolos e referentes só adquirem valor sintáctico e semântico no interior do sistema que os integra. Como não há símbolos e referentes fora de qualquer sistema, o significado de um símbolo, como ele funciona, varia na relação directa com os contextos que o situam. Não há nada em si, não há nada intrínseco que se possa definir sem ser numa teia de relações. Para os símbolos e para os referentes também o processo é assim, e porque é assim, tudo pode ser símbolo. A concepção ontológica de Goodman impede-o de estabelecer aí uma ruptura essencial. Quando Marcel Duchamp expõe os Ready Mades, ou seja objectos de uso tais como um cesto de arame cheio de cubos de mármore, um suporte de garrafa ou um urinol, e dando-lhes nomes que, talvez com excepção do urinol, a que chama La Fontaine, não tinham qualquer relação com o objecto, o que podemos perceber, entre outras intenções, é que estamos perante objectos que geralmente funcionam mais como referentes, mas que no contexto da exposição adquirem o estatuto de símbolos ao revelarem determinadas propriedades.

Relativamente à referência, é preciso dizer que Goodman refere duas formas básicas, que são a denotação e a exemplificação, e que .é esta última que vai permitir, pelo seu alto grau de operatividade , equacionar e formular um conjunto de problemas que se coloca à filosofia da arte.

A exemplificação permite-nos entender o carácter simbólico da arte. Se observarmos o Quadrado Negro (1913) de K. Malevitch, ou o Recorte em linóleo (1917) de V. Huszar, poderemos perguntar o que é que aí se denota como pinturas abstractas que são. Possivelmente são símbolos, mas a que referentes se aplicam ? A ausência destes anula, aparentemente, todo o processo de simbolização. Nessas telas não há nada para denotar logo, nada para simbolizar. Ora, é a exemplificação que permite defender que toda a obra de arte, mesmo que não denote, não deixa de simbolizar porque refere sempre algo. A obra, por exemplo, de Malevitch exemplifica as cores preta e branca (ou a ausência de cor e a quadrangularidade. Mais:ela exemplifica o realce dado à superfície (quadrada branca e um quadrado preto rigorosamente centrado), que segundo o pintor, é o único espaço de definição da pintura, o seu ponto zero.

É também a noção de exemplificação que nos irá permitir articular vários problemas no concernente à problemática do estilo em arte.

II) Como sabemos, o estilo faculta-nos a vantagem de classificarmos as obras de arte, sejam quais forem a suas formas de expressão, segundo determinados critérios, de modo a melhor compreendermos as relações que se estabelecem, em termos de contrastes e semelhanças. Permite-nos, ainda, entender a arte numa perspectiva diacrónica, bem como sincrónica.

O estilo atravessa, digamos, todas as propriedades classificativas das obras de arte: o conteúdo , o género, os media. Por exemplo, em O Profeta / Auto-Retrato Duplo (1911) de Egon Schiele, trata-se, respectivamente, de retrato, pintura de cavalete e óleo sobre tela. É o estilo que assinala o lugar que a obra, como objecto singular, ocupa, relativamente às afinidades e filiações primaciais que mantém com outras, de modo a identificá-la no plano da produção de um artista, grupo, período, escola ou região. No caso concreto de Egon Schiele, estamos face a um trabalho que reflecte as tendências plásticas essenciais do artista, integrando-se no movimento do expressionismo alemão do início do século.

O estilo também se relaciona com os contextos. Assim, podemos dizer que o poeta Fernando Pessoa se integra no âmbito das correntes literárias contemporâneas, que é um pós-simbolista e que fez parte do movimento do modernismo em Portugal (figura particularmente interessante, porque poderemos sempre falar dos vários contextos heteronímicos pessoanos). O estilo, como dissemos, conduz-nos para a tentativa de elucidação de problemas que a filosofia da arte traz à colação. Em primeiro lugar, a análise da própria estrutura interna do estilo revela-nos que a sua percepção exige uma grande capacidade de abstracção, como nos diz C. d´Orey ao citar os estudos que são realizados no domínio da psicologia da arte. A esta capacidade deve acrescentar-se a de complementação, no sentido de dizer mais ao que é dito, e de suplementação, na procura de superar o imediatamente dado.

É ainda a mesma autora que nos alerta para os problemas que são suscitados pela reflexão sobre o estilo. O problema principal é o de saber como determinar as propriedades estilísticas de uma obra de arte, perante o corpo constituído por todas as propriedades estéticas. Outros problemas são deste decorrentes: " São todas as propriedades das obras de arte real ou potencialmente estilísticas? É o estilo um atributo exclusivo das obras de arte? Qual a importância do estilo? Esta última questão subdivide-se em duas :é a identificação do estilo de uma obra de arte uma condição necessária e/ou suficiente para uma apreciação esteticamente correcta? É a presença de estilo uma condição necessária e/ou suficiente para que uma obra de arte tenha qualidade? Finalmente, qual é a relação referencial que uma obra de arte tem com o seu estilo? " . Da nossa parte, gostaríamos de levantar outros problemas: o que nos leva a reconhecer as mesmas propriedades que caracterizam um determinado estilo quando lidamos com diferentes formas de expressão artística? Ou seja, porque integramos as obras pictóricas de E. Munch e a música atonal de A. Schonberg na corrente estética do expressionismo? Que influências se cruzam entre as várias artes que possam derivar de propriedades estilísticas (Schonberg além de compositor, pertenceu à chamada Escola de Viena, pintou alguns quadros expressionistas, como o Olhar Vermelho)? Questões para outra reflexão.

A obra que temos vindo a citar de Goodman explicita a sua posição em relação a um enquadramento teórico do estatuto do estilo. Os habituais dualismos forma/conteúdo, sentimento/conhecimento, intrínseco/extrínseco devem ser superados, pois não permitem entender, com rigor, o funcionamento da arte na sua complexidade.

III) A dicotomia que se baseia na primeira oposição pressupõe a ideia que o estilo está na forma (como é dito), enquanto o conteúdo surge à margem das propriedades estilísticas, é o assunto (o que é dito). Temos, por um lado, o modo de representação e, por outro, a matéria de representação. Se é certo que são os elementos formais que contribuem mais decisivamente para a apreensão do estilo, não podemos deixar de defender que muitas vezes o conteúdo é relevante para a caracterização do estilo. O poder metafórico da obra de E. Munch vive muito da presença constante de personagens angustiadas situadas em espaços enigmáticos. Assim como O Cristo Amarelo ( 1889 ) de P. Gauguin é marcado, não só por uma paleta de cores específica que reflecte o período de Pont-Aven, mas também pela representação que desloca um facto do seu contexto temporal. " Na verdade, mesmo quando a única função em questão é dizer, teremos de reconhecer que algumas características notáveis do estilo são características da matéria e não o modo de dizer. O assunto está envolvido no estilo de mais de um modo ".

Parece, pois, claro que o estilo não pode partir da distinção que se queira traçar entre forma e matéria, mas que nele estão sempre presentes ingredientes de um todo que recolhe aspectos formais e substanciais. Se o estilo pode ser o mesmo de um escritor que trabalha diferentes temas, assim como o mesmo tema pode ser objecto de muitos modos de o dizer, tal significa que são apenas certas características do que é dito e do como é dito que contribuem para se poder avançar na definição do estilo.

IV) Também o que é exprimido e o modo como é exprimido se envolvem em processos de correlação, cuja separação não pode ser legítima para fundamentar o estilo nos sentimentos expressivos. Se é um dado adquirido que estes muitas vezes funcionam para a identificação de propriedades estilísticas, generalizar tal facto leva-nos a alguns equívocos, e por várias razões. Primeiro, porque o que é exprimido é uma face de como é exprimido o que é exprimido. Depois, porque o modo de expressão não pode ser imediatamente identificado com sentimentos e expressões, gerais ou particulares. Há expressões que não possuem qualquer carga emotiva, o que significa que sendo relevantes o são por outra ordem de razões. Por outro lado, deve referir-se que há propriedades estilísticas que são exclusivamente formais e estruturais (sintácticas), carecem de qualquer tipo de expressão, como é o caso das pesquisas de M. Gastini, em que o tema dominante é o espaço e a relação que os signos assumem na sintaxe da obra, bem como a utilização de materiais diversos que compõem a estrutura geral.

V) Carmo D’Orey fala num princípio que designa por critério de simbolização, articulando-o com outro, que chama critério de atribuição. Pretende com o primeiro registar as formas que no funcionamento simbólico de uma obra de arte actuam, e que podem, quaisquer que elas sejam, ser pertinentes para o estilo, como sejam: representar (ou descrever), exprimir, exemplificar e aludir. O outro critério visa preencher algumas lacunas, pois não é atendendo exclusivamente à simbolização que demarcamos os factores de significado estilístico. Nem tudo o que uma obra estética exemplifica é relevante para o estilo. Les Demoiselles d’Avignon (1907) é um quadro de Picasso em que o Cubismo reside, fundamentalmente, nas formas, por exemplo, os rostos são deformados, as figuras foram fragmentadas, e não nas cores, embora ambas simbolizem por exemplificação.

O critério de atribuição é o reconhecimento da " assinatura ", pois responde às questões: Quem? Quando? Onde? Mas, também este critério não satisfaz só por si a busca da determinação das propriedades estilísticas. Aquilo que faz parte da assinatura e que torna possível identificar um autor não é coincidente com o estilo da obra em causa, mas só alguns elementos próprios aí recolhidos funcionam estilisticamente.

Como proceder, então, para afirmar que só algumas propriedades de uma obra de arte são estilísticas e que outras não o são? A resposta é dada pelas propriedades que obedecem aos dois critérios. " Basicamente, o estilo consiste naqueles traços do funcionamento simbólico de uma obra que são característicos do autor, período, local ou escola. (...) Segundo esta definição, o estilo não é exclusivamente uma questão do como em contraste com o quê, não depende nem de alternativas sinónimas nem de escolha consciente entre alternativas, e compreende apenas, mas não todos, os aspectos de como, e daquilo que, uma obra simboliza " .

A compreensão do estatuto do estilo, a partir do funcionamento simbólico de uma obra de arte, vem esclarecer-nos algumas questões relevantes. Reconhecemos que certas características podem ser estilísticas em determinadas obras e não noutras, que nem tudo o que é relevante e constante esteticamente é importante em termos da definição de um estilo. Pode ser ou não ser. O período azul e o período rosa de Picasso são identificados pelo uso sistemático da cor azul e da cor rosa, respectivamente, assumindo aspectos pictóricos que marcam o estilo do trabalho do pintor. Contudo, um quadrado de cor azul numa tela de Malevitch não tem sentido estilístico. Também a qualidade de um tipo de lápis repetidamente utilizado por um mesmo artista não constitui em geral causa de estilo.

É a noção de simbolização exemplificativa que nos fornece o critério. Toda a obra de arte, como já o dissemos, simboliza, mas nem tudo o que ela simboliza é estilístico, mas apenas o que ela simbolicamente exemplifica. E como podemos alargar a noção para todas as formas de arte, estamos sempre face a construções simbólicas, sejam quais forem os media que cada arte empregue, as propriedades estilísticas são a forma no sentido de propriedades exemplificadas.

Se atendermos, agora, à afirmação de Goodman de que o estilo não é algo que dependa da escolha do artista entre alternativas, nem das suas decisões mais ou menos conscientes, nem da personalidade, então aparece-nos como clara a tese que afirma que é na lógica da simbolização e na lógica da atribuição que se deve construir uma teoria do estatuto do estilo.

VI) Estatuto que suscita a curiosidade de saber qual o grau da sua relevância. Ou seja: "Trata-se de saber se as propriedades estilísticas têm alguma relevância estética mais imediata do que as propriedades não estilísticas que auxiliam a atribuição " . É absolutamente necessário e suficiente a percepção do estilo para a hermenêutica de uma obra de arte?

A percepção artística é, como toda a percepção, um processo complexo que nos leva à recusa em aceitar que o observador seja um receptor passivo, conformado a receber estímulos, sem intervir activamente no fenómeno perceptivo. A apreciação de uma obra de arte não pode limitar-se ao que é visto, porque o objecto do olhar é sempre condicionado pelo modo como é visto. Nenhum olhar é puro, daí se poder falar de percepções correctas e incorrectas. Correctas serão aquelas em que temos os instrumentos, os conceitos estéticos que nos permitem situar a obra de arte como um membro de um grupo mais geral de obras cujas propriedades são reconhecidas a um autor, escola, local ou período. Fruir a dimensão plástica das obras de um Degas, de um Monet ou de um Cézanne é saber ver que o que os preocupa não é o conteúdo temático, mas a luz, nas suas tonalidades mutáveis, e a natureza, que deve ser captada num imediatismo temporal e sensível. É saber avaliar estes objectos estéticos como manifestações do movimento impressionista francês do início do século. Assim: " O discernimento do estilo é um aspecto integrante da compreensão das obras de arte e dos mundos que elas apresentam " . Dizer que na obra estão todas as características estéticas relevantes, não significa considerar, como a corrente formalista quer fazer crer, despiciendo o recurso a conhecimentos externos à obra de arte. O critério de atribuição, já mencionado, é determinante, para se encontrar as respostas exactas às interrogações: Quem? Quando? Onde?

Talvez possamos falar de uma dialéctica (diálogo) entre o objecto dado à percepção estética e as categorias que o pretendem compreender. Ao atribuirmos uma obra de arte a um autor em concreto (a " assinatura ") estaremos numa posição que nos permite a identificação das propriedades estilísticas, ou seja, a filiação de um artista com o seu estilo (peculiar) influencia a leitura da obra. Contrariamente, se nada conhecermos do abstraccionismo geométrico, em que a preocupação dominante é a autonomia da forma, o suprematismo de Malevitch escapar-nos-á. Como diz C. d’Orey, recordando Goodman: " Percepcionar correctamente uma obra de arte, implica, tal como acontece com qualquer outro símbolo, percepcioná-la no sistema a que pertence. Só no âmbito desse sistema, podemos saber o que simboliza e como simboliza, ou seja, interpretá-la " .

A partir do exemplo referido do Quadrado Negro de Malevitch, só seremos capazes de apreender o que ele representa, exprime e exemplifica, se conhecermos as premissas em que o abstraccionismo assenta. É a associação a um estilo que faculta a captação do que numa obra de arte é representado, no que nela é exprimido, bem como exemplificado. Aliás, esta última forma de funcionamento simbólico da arte esclarece-nos eloquentemente sobre este ponto, mais do que , possivelmente, as outras duas, dado que o que pertence ao plano da exemplificação ou não exige recusar o que na imediatez se oferece ao olhar (traços, cores, sombras...), e só um corpo de conhecimentos prévios nos assegura, com rigor, uma avaliação correcta do que na obra é exemplificado.

O domínio dos estilos em arte é, pois, uma das condições necessárias para uma captação correcta das qualidades estéticas que uma obra de arte revela. Mas não é suficiente. A correcção não se restringe à identificação do estilo, porque mesmo o que não é estilisticamente relevante não deixa, por esse facto, de poder ser esteticamente importante, enquanto elementos de referência, eventualmente, significativos no contexto geral de simbolização. Limitarmo-nos ao estilo é não compreendermos toda a dimensão de uma obra de arte como construção de um sistema de símbolos.

Mas será o estilo factor decisivo da qualidade de uma obra de arte.? A resposta terá de ser negativa, não só porque nem todo o estilo tem qualidades, e mesmo o excesso de estilo é uma deficiência estética, como não é, como afirma Goodman, a propriedade mais significativa entre todas as propriedades de uma obra de arte. Qual a legitimidade para o ser?

VII) A análise do estatuto do estilo coloca-nos, ainda, perante a questão da sua determinação. Como se reconhece um estilo? Com base na composição dos diferentes elementos que o compõem ou como um todo? Por intuição ou racionalmente? A intuição parece ser fundamental na apreensão da totalidade do que, no funcionamento simbólico de uma obra de arte, são as funções estilísticas, entre outras não estilísticas; funções que se exercem tanto no que ela exemplifica, como no que representa, exprime ou alude, e que surgem associadas ao conjunto das obras de um autor, escola, período, local, etc. (critério de atribuição) .

Os traços característicos do estilo de um artista podem estar ou não sistematicamente presentes ao longo da sua produção artística. A frequência pode ser inconstante. O mais importante está no facto desses traços serem específicos, tornando o autor singular face aos demais. Sabemos também que há representações que se repetem usualmente na obra de um autor (por exemplo, paisagens) e que não constituem qualidades de um estilo, por ser frequente noutros autores.

Como dissemos, as obras associam-se umas às outras, há um sistema referencial que é fundamental para se proceder à caracterização dos estilos. Assim, cada obra não só exemplifica o seu estilo como remete por alusão a outras que se integram no memo estilo. É possível detectar em obras diferentes certas propriedades estilísticas comuns e outras não.

VIII) Para concluir, citemos mais uma vez Carmo d´Orey, que, a partir de exemplos, nos esclarece a relação referencial que uma obra de arte tem com o seu estilo: " Essa relação é a de exemplificação. O estilo é uma propriedade complexa, subdivisível em várias componentes que podem ser função quer do que a obra representa quer do que exprime ou exemplifica ou alude. O Velho Guitarrista exemplifica o chamado " período azul " de Picasso, o qual se caracteriza pela representação de personagens miseráveis, pela expressão de tristeza e solidão e pela exemplificação de cores azuis, formas angulosas e composição na vertical. A Guernica exemplifica um outro estilo de Picasso, caracterizado por outras propriedades".

Como conclusão, resta-nos dizer que o presente trabalho resulta da análise da obra de Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, mas fundamentalmente da leitura da dissertação de Carmo d´Orey, que a este autor dedicou um longo trabalho de pesquisa e investigação.

O tema escolhido por nós foi o estatuto do estilo, mas reconhecemos que é na compreensão global da filosofia da arte de Nelson Goodman que qualquer conteúdo sobre a problemática estética ganha profundidade e rigor.

O grande contributo de Goodman para a tentativa de definição do estilo em arte está em recusar os tradicionais dualismos, que foram referidos, e que se aceites bloqueiam a compreensão de algumas manifestações artísticas, como é o caso da arte contemporânea. Por outro lado, a noção de exemplificação é determinante, pois é ela que nos esclarece que as propriedades de estilo, como formais, são propriedades exemplificadas (propriedades que uma obra de arte revela na sua relação simbólica), além de podermos estender este conceito, como instrumento operativo de análise, a todos as áreas da produção estética, superando os problemas específicos de cada uma.

Outubro/1998

BIBLIOGRAFIA

ARGAN, G., " Arte e Crítica de Arte " , trad. port. de Helena Gubernatis, Lisboa : Ed. Estampa, 1995.

GOODMAN, N., " Modos de Fazer Mundos " , trad. port. de António Duarte, Porto : Edições Asa, 1995.

OREY, C., " A Exemplificação na Filosofia da Arte de Nelson Goodman " , Dissertação apresentada à Universidade Clássica de Lisboa para obtenção do grau de Doutor em Filosofia, Lisboa, 1992.

WEST, C., " Nietzsche e a Filosofia Americana Pós - Moderna ", in Crítica, nº 9, trad. port. de Jorge Costa, Lisboa : Ed. Terramar, 1992.

N. GOODMAN, Modos de Fazer Mundos, tr. port., Porto: Edições Asa, 1995, p. 38.

C. d´OREY " Introdução " , in N. Goodman, Modos de Fazer Mundos, op. cit. , p. 7.

Ibid., p. 8.

N. GOODMAN, Modos de Fazer Mundo, op. cit., p.43.

C. d´OREY, A Exemplificação da Arte de Nelson Goodman, Lisboa: 1992,