Passagem para lugar nenhum
Este texto tem como referencia fatos ocorridos no Rio de Janeiro em vinte e nove de novembro de dois mil e cinco, daqueles dias até hoje tivemos uma sucessão de eventos semelhantes com desfechos que justificam a reflexão que segue.
As notícias de jornal da semana trazem a realidade crua do enfrentamento entre forças que não se governam; que desconhecem qualquer limite.
“ Um grupo de traficantes, em represália a morte de um comparsa, atacou e incendiou um ônibus com os passageiros dentro, provocando cinco mortes de pessoas sem qualquer relação com a atividade criminosa, inclusive uma criança de um ano. “
Nesses tempos duros, a banalização da violência é só mais um dos sintomas de uma sociedade doente. Como numa sociedade fechada, os indivíduos neste país nascem com o destino definido, restando apenas a opção de lutar contra o determinado, o atávico. Não é uma luta pela sobrevivência, é uma luta em direção a contradição, onde a ponderação sobre justiça ou valor moral é definida de maneira bem relativa.
Tanto o braço armado das instituições, quanto as tropas de choque do narcotráfico estão submetidos a ordem e a contradição que a própria ordem traz em si. As leis definem somente o legal e o ilegal, o aceito e o rejeitado; não há nestas opções quaisquer aspecto atemporal que possam ser considerados. Algumas ilegalidades foram revogadas, outras foram assimiladas e existem também as leis que nunca entraram em vigor.
Sobre a droga, que parece ser, sem sombra de dúvidas, um dos motores deste episódio, temos uma sociedade que flerta com ela mas não assume a sua relação com a violência, que ela dissemina e provoca a título de repressão.
Somos todos passageiros, conscientes ou não desta relação, vítimas da violência do Estado e de um estado de violência, onde a única resposta para o conflito parece ser o confronto. Somos todos passageiros na realidade da droga e na forma como a sociedade trata os seus drogados. Para alguns hipócritas, drogados são essencialmente doentes e deveriam ter uma quase tutela, uma inimputabilidade que rompe com o equilíbrio da relação entre iguais. Para outros, não menos hipócritas, deve-se ignorar a relação de demanda e oferta deste mercado e considerando o menor poder de influência e representatividade, reprimir somente o tráfico como se não houvesse qualquer relação entre quem compra e quem vende.
Quando a postura de uma sociedade passa a ser questionada pelas distorções claras em suas relações entre os indivíduos, o que temos é uma impostura e um arremedo de sociedade, onde a um determinado grupo de indivíduos tudo o que não é permitido é justificado, e se a ação for universalmente questionada o que resta é a aplicação de todas as atenuantes possíveis para ratificar a diferença de tratamento. Este que consome é vítima, aquele que fornece é um monstro.
Quando o crime deixa de auferir as vantagens materiais e passa a atuar de forma inclemente e coercitiva, as instituições deveriam questionar as motivações e finalidades que determinaram os limites da liberdade individual e o quanto estes mesmos limites auferem em privilégios uma casta, um grupo, violando a essência do equilíbrio que deveria nivelar a todos.
O ônibus em questão tem também a sua essência metafórica, é uma parte de uma sociedade indiferente ou mesmo alheia ao destino dos demais, que só se manifesta quando se sente ameaçada. Esta tragédia somente alimenta o nosso cotidiano sedento de sangue e indiferente. Alguns dias depois estará numa outra perspectiva, muito distante da segurança patrimonial da classe média, que reage quando atingida em sua muralha de egoísmo e indiferença.
Este atentado transformou criminalidade em terror, é uma violação ao estado de direito, sem motivação, dirigido a um alvo aleatório, como se uma criança de um ano pudesse ser definida como alvo aleatório; a única definição clara é a finalidade de causar temor e insegurança.
Do outro lado, o maior contingente da população segue ignorado, seja na saúde, na segurança, na educação, em todos os aspectos de garantias constitucionais ainda prevalece o anacronismo com que todos os extratos da população costuma tratar a parcela a qual não confere identidade, pela qual não se mobiliza e em cujos destinos não se reconhece.
A tragédia do ônibus 350 é em parte a tragédia do 174, onde a sociedade falha e não se reconhece, onde a diferença que deveria consagrar a diversidade alimenta assim a nossa diáspora. A exclusão das vistas não cassam a existência, a indiferença, geralmente, afirma a insegurança e o egoísmo. Estas tragédias foram habilmente planejadas, gestadas por estereótipos e preconceitos, numa sociedade em construção, que arbitra como obra consumada.
Estas tragédias são cotidianas, disfarçadas de normal, povoam o noticiário e desfilam com a naturalidade das convicções cordialmente adotadas; esta falácia apoiada nos instrumento ideológicos de convencimento parcial: mídia, instituições de pesquisas, leis, entidades de assistência, educação parcial, etc. somaram em forças para esta colheita farta, cruel e a cada dia parece mais normal para os brasileiros de hoje.