A ATEMPORALIDADE NO CONTO RELATO DE OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA
José Teixeira Neto
A obra literária é a representação perfeita da relação entre o homem e o mundo em que vive. Vigora na literatura uma correspondência bastante acentuada entre o sofrimento do sujeito enquanto ser agente, metafísico e o local da ação, espaço material e mensurável. Essa dicotomia é que contribui para a criação da obra de arte e é o que gera o conflito que vai desencadear um desfecho de acordo com a intencionalidade do criador. Para atingir essas condições, Rubem Fonseca quebra os padrões convencionais da estrutura narrativa em “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”.
Nesse conto, é narrada a história de um acidente que ocorre numa BR, envolvendo um ônibus, que atropela uma vaca, que morre logo em seguida. Os moradores das cercanias, ao verem o acidente, correm na direção do ocorrido. A princípio, pensa-se que vão procurar meios para socorrerem as vítimas. Mas não é que acontece. Eles correm é para aproveitar a carne da vaca morta, e deixam as vítimas à mercê da sorte.
Para desenvolver tal enredo, o autor imbrica duas formas de relatar os fatos da história: estilo de jornal e a narrativa pertencente ao gênero literário. “Na madrugada do dia três de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do Rio Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro”. Nesse fragmento, estão presentes os elementos que constituem o texto jornalístico: o local, a data, o fato, os envolvidos, como forma de comprovação dos acontecimentos. O texto só passa a assumir a estrutura da narrativa literária a partir do sexto parágrafo, quando Elias, uma das personagens do conto, dá início às ações que vão se desenrolar na ponte, local do acidente. “O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residente nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão? Pergunta Lucília.” .
Esse procedimento de unir o jornalístico e a narrativa literária não só contribui para a verossimilhança da história, como também revela um menor grau de formalidade na atitude de narrar, já que se trata de um texto que segue os padrões modernistas. O texto foge ao estilo machadiano, por exemplo. Contudo não deixa de externar a natureza e o comportamento do homem diante dos seus problemas. Rubem Fonseca, nesse conto, apresenta um realismo marcado através da análise de uma situação que revela a intenção de mostrar pessoas preocupadas apenas em matar a fome, fato que representa a realidade de uma grande parte da população.
A onisciência do narrador é percebida através da expressão dos sentimentos das personagens e do modo como os fatos são focalizados. O narrador parece acompanhar cada detalhe dos acontecimentos. “Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de Moura júnior. E aquela besta que não traz o facão! Pensa Elias. Ele está com raiva de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que sua boca seca.” A presença do discurso indireto livre nesse fragmento vem reforçar a expressão da angústia que toma conta de Elias no momento em que os vizinhos também chegam para desfrutar a carne do animal.
Como se pode perceber, as personagens do conto Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência não são apenas um elemento da estrutura narrativa, mas habitantes da realidade ficcional, os quais representam seres que se confundem, em nível de recepção, com o ser humano e sua complexidade. Para criar essa realidade, o autor, sabendo que personagem representa pessoa, o faz através dos recursos lingüísticos, uma vez que se constrói a personagem ficcional por meio das palavras e, quanto ao modo como essa linguagem aparece no texto, nota-se claramente a marca da oralidade no processo da construção do discurso. Nesse conto, tanto narrador, quanto personagem possuem o mesmo nível na utilização da palavra. Isso porque se trata de uma forma de não distanciar lingüisticamente as personagens do narrador. É através da linguagem que, ao lermos o conto de Rubem Fonseca, nos deparamos com uma simulação do real, criada a partir da cosmovisão do autor.
Considerando que um texto é um tecido, em que todos os elementos que o compõem devem estar entrelaçados para que exista significação, o conto de Rubem Fonseca é a representação concreta dessa assertiva. Desde o foco narrativo até o espaço, tudo se encaixa de modo a favorecer a coerência dos episódios narrados. A história é contada em terceira pessoa, por um narrador que presencia todos os acontecimentos. Essa é uma forma cinematográfica de construir o enredo e, com esse procedimento narrativo, o leitor se coloca em contato mais direto com os fatos narrados. O espaço onde se passa a história, a ponte, exerce um papel importante uma vez que, por representar um local perigoso, aparece como o lugar onde ocorre o acidente, deixando várias vítimas sem vida.
Toda a história se passa em um curto intervalo de tempo, de modo linear. Tudo acontece “Na madrugada do dia três de maio...” Como se pode notar, trata-se de um tempo cronológico, em que os fatos se dão numa ordem natural, isto é, do início para o final. Primeiro, acontece o acidente; depois, os moradores vão em busca da carne da vaca, que morre atropelada e, para finalizar a história, todos tiram proveito da situação. É, pois, o tempo um elemento responsável pela organização dos fatos no enredo desse conto.
A leitura de Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência permite ao leitor se deparar com uma forma leve e espontânea de contar histórias. Nesse conto, são descritas cenas que, narradas de um outro modo, talvez não traduzissem a realidade que faz parte de uma grande massa da população, nem proporcionassem uma leitura fluida, com grande poder de denúncia.
Referências bibliográficas
FONSECA, Rubem. Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência. In: RAMOS, Ricardo. Apalavra é ... cidade. São Paulo: Scipione. 1990.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática. 2000.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática. 1990.
URBANO, Hudinilson. Oralidade na Literatura. São Paulo: Cortez. 2000.