O homem diante da Arte
A arte tal como a antigüidade definiu representa somente a imitação, a intenção de representar a natureza e as interferências humanas na própria natureza. Arte também é a tentativa de expressar além do discurso formal e encontrar dentro da formalidade insuspeitada a referência ao belo e ao que mais aproxima criador e criatura.
Considerando o caráter representativo das primeiras manifestações de expressão; individualmente teríamos os vínculos comuns: sobrevivência, fome e tudo que fosse básico. As necessidades comuns somadas aos laços criaram um código mínimo para as relações mais objetivas.
Todos os vestígios desta fase do aparecimento do homem, objetos, ritos, pinturas e mesmo fósseis, que de certa forma registram a passagem do tempo e os avanços da espécie humana dentro da cadeia biológica, foram convertidas a condição de arte, mesmo quando enunciados como referenciais da cultura.
Então o conceito de imitação é correto até a intenção de relatar e representar situações cotidianas, sem considerar a fragilidade da comunicação daquele homem primitivo e a sua relação com o mundo que habitava. Entretanto esta conceituação se mostra incompleta, uma vez que a manifestação artística não se encontra aprisionada a representação figurativa e a própria capacidade deste homem em dar vazão as suas fantasias e se situar diante do desconhecido.
A manifestação também se dá pela via emocional e pela necessidade de compreender seu lugar no mundo e do fragmento a que ele pertence. Estas relações não são concretas ou completas, elas se sucedem em convívio com seus próprios paradoxos.
O homem vive um mundo de muitas perguntas e poucas respostas, destes questionamentos se dará a relação com a comunicação e o objeto a comunicar.
A arte como forma de relacionar e comunicar sofre também todas as variações comuns a qualquer fenômeno, algumas formas de expressão sofrem de um anacronismo por se deter num fatual datado, outras inversamente revelam um caráter fantástico que quase as transformam em fantasia, justo por lhes faltar verossimilhança ou uma âncora fatual.
O aspecto fantástico, quando levado a extremos é capaz de distorcer o figurativo até as fronteiras do abstrato, deixando da idéia representada pouco ou quase nada, como fosse necessário dispersar a essência para depois reorganiza-la e assim reconstruir o código, livre de quaisquer proposições coletiva ou mesmo estranho ao protagonista da representação ideal.
A relação com o abstrato é uma relação de liberdade, anti-convencional e de superação dialética. Desta forma a liberdade é só um novo limite, para ser desafiado, enfrentado e quem sabe até vencido.
As formas são alteradas, adaptadas, desenvolvidas e transformam-se em matéria atemporal da relação entre artista e mundo.
Se a arte é interferência, comunicação necessária, individual, unilateral e unívoca; o mundo é o outro, o objetivo, a razão e o eco dos questionamentos. Onde se dará o enfrentamento de todas as leituras possíveis do mundo; seja o enfoque dialético, estético ou mesmo da relação humana.
Não há troféu, não há vitória; a busca da liberdade individual faz parte da luta da identidade coletiva. A expressão da arte figurativa durante muito tempo, e ainda hoje, foi, e é interpretada de uma maneira até ingênua como a ditadura da forma, mas a relação estética se projeta além da forma.
A busca do belo, do perfeito e as inquietações acerca de sua própria origem e identidade, paradoxalmente, apontam para uma ordenação do caos, uma ordenação ontológica, onde a compreensão revelará a situação do homem num universo abissal, cuja grandiosidade o avilta. Numa tentativa de buscar uma relação pacífica com o seu lugar no universo. A ciência, a arte e toda forma de conhecimento ordenado apontam para esta busca incessante.
Ainda nos conflitos bélicos e nas convulsões sociais o que se discute é quem somos, o quanto podemos. Tememos não ser os protagonistas da história e essa aflição, essa incerteza desmontaria toda a cosmogonia que criamos para justificar as hierarquias que legitimamos.
A arte é um registro orgânico de toda esta trajetória, do quanto o elemento homem se sente estranho no elemento mundo e quais foram os mitos que ele evocou para superar essa angústia. A subversão da arte não é a compreensão do homem ou do mundo, mas a constatação que a via do homem é o homem.
Para tudo que desconhecemos ou supomos conhecer, o homem estabeleceu uma convenção e se fez prisioneiro dela. Adiante esta convenção se tornou pilar de outras convenções, que não se ajustavam naturalmente ao contexto. Assim criamos uma rede de ficção e simulacros para sustentar o nosso desconforto com o desconhecido.
Chamamos esse expediente de criar convenções de ciência ou conhecimento; criamos caminhos para disfarçar a nossa ignorância que é o outro nome do desconhecido; e esta convenção, que é o conhecimento, se desnuda e mostra o nosso real valor diante da brutal grandiosidade do universo.
O esforço da arte em capturar uma representação real do mundo, não se cumpre; mas resulta deste movimento a visão que o homem tem dos seus múltiplos papéis na grandiosa cena da existência.
Ao depararmos com a empobrecida composição da imagem do homem preso a sua própria gravidade, maior até que o fenômeno de que teve origem, confinado em mitos de hegemonia a denunciar seu desejo de primazia diante da grandeza do universo. A arte é só mais um caminho para compreender a trajetória da humanidade; como se vê; o que deseja; o que teme; o que espera...
Através da capacidade que o homem desenvolveu de criar objetos e modificar o mundo para seu proveito, despertou uma necessidade de projetar seus sonhos em todas as direções, e conquistar o que nele se propõe como desafio. Novamente o homem ficou exposto ao gigantismo e a incapacidade de se incluir nas analogias onde não predomina. Pouco se busca de representação do microcosmo, menos ainda se confronta a figura humana no macrocosmo; como se encontrada a escala da existência humana, seus atos não se submetessem a outro juízo que não o da razão de sua própria existência. Para estas interpretações foi necessário estabelecer uma relação deus/homem, de semelhança e correspondência, que melhor ratificaria todas as teogonias que se seguiram para referendar o etnocentrismo. Justo na criação do mito, na confecção do intangível, foi onde a arte se mostrou de fato profícua.
Sendo a arte a via do homem pelo homem, há uma ruptura do indivíduo, que transporta as suas inquietações mais profundas e ameaça a ordem estabelecida, desnudando esta relação de desconhecimento e temor por não possuir nas mãos o controle do seu próprio destino.
Quanto aos grandes mestres, são a prova cabal da convenção, da necessidade da construção de um paradigma, e da manutenção do mesmo. É a super estrutura, com suas cátedras, seus ciclos e todo um arcabouço de valores e relações semânticas que irão criar a sensação de encadeamento, descoberta e reconhecimento para validar uma concepção estética e ratificar a ideologia da supremacia humana no centro do universo.
A consciência humana deriva de saltos de uma humilde significância até uma insustentável arrogância; como não há material conhecido para conter a projeção de grandeza que sempre empurrou o elemento humano para adiante, ainda que não soubesse o que esperar do futuro, do desconhecido, seguir adiante foi à única lição assimilada.
Como toda intervenção humana pode ser descrita como arte, as intervenções originais que derivam de um questionamento mais apurado, direcionando as inquietações e angústias, que dentro do padrão de realização individual, apontaria um nível de consciência acima do elementar.
A consciência coletiva experimenta uma liberdade possível somente do ponto de vista individual “inconsciente”, no limite do desejo, ou seja, o que intimamente está contido na vontade do indivíduo, sem quaisquer juízos ou reservas, não cabe em considerações, pois que esses valores morais são incontestavelmente exteriores, dele o indivíduo não se vale para sua própria persuasão. Ninguém é juiz de si mesmo; a culpa é em parte a manifestação do meio, e porque não, do outro; na relação de afirmação ou negação que nos sustenta.
A arte como expressão, deriva de um estado de consciência e das variações a que este estado sofre. Ainda que ela consiga uma significância no racional coletivo, ela só tem o caráter da proposição individual. Por mais que o meio imponha uma interpretação didática, o que prevalece é uma impressão individual, às vezes claramente insegura, que possivelmente sem a leitura didática da conceituação estética, realizaria o resgate da percepção individual.
A arte freqüenta cartilhas, confinou-se em verbetes, elegeu mitos; como possuísse personalidade e optasse pela forma como participaria da vida do homem. O que esta ideologia afirmativa pretende ocultar é o processo dinâmico onde o homem e a arte se constitui indissociavelmente, e um influencia de maneira contundente o conteúdo do outro.
A comunicação objetiva e subjetiva contida no painel “Guernica” de Pablo Picasso, tem relação histórica, fatual, ideológica, estética, iconografica, etc. Se tal obra fosse convertida em texto e buscasse evocar o que cada imagem, cada cor pretendia registrar, denunciar, relatar; talvez tivéssemos um registro mais objetivo e seguramente mais distanciado da originalidade interpretativa que só o diálogo alcança.
Nenhum conceito emprestado é melhor que a própria palavra para registrar o assombro e o estranhamento; é necessário que haja um deslocamento do sujeito, para que a partir daí ele possa ler as suas próprias posições. O juízo do decodificador, o destinatário da mensagem, deverá descrever o que lhe suscita, move e atinge naquele conteúdo.
O código comum não unifica as interpretações subjetivas, que se fazem justas e à medida da maior intimidade/sensibilidade com que projeta o indivíduo para dentro do universo da arte, se abstendo de qualquer juízo; positivamente, nesta relação original, onde não cabem erros ou acertos, a introspecção é tão importante quanto à perplexidade e a indiferença é a morte.
A personalidade é construída e constituída a cada momento, o que faz com que a realidade em toda a sua plenitude seja um grande processo, cujo objetivo é um aprimoramento constante; um despertar de vocações, de interesses que vão se ajustando a uma visão mais madura do mundo.
As convenções que foram incorporadas com o objetivo de projetar a realização do mundo ideal tornaram-se também um obstáculo, uma vez que da sua superação resultará um vício; haverá homens incapazes de romper com as convenções criadas o que resultará em variáveis de comportamento e assimilação dos novos conceitos e valores questionados.
Se parte da humanidade avança enfrentando os desafios propostos, desbravando o desconhecido, uma outra se mantém entrincheirada numa fantasiosa representação para se defender de uma realidade implacável, que não reconhece valor neste comportamento, nem nesta parcela da humanidade.
As mudanças que o homem opera no mundo são parte de um movimento cuja seqüência é a mudança que o mundo modificado irá propor a este novo homem; esta relação dinâmica e constante estabelecerá uma direção e a alternativa será incorporar as mudanças ou tornar-se obsoleto, sem importância ou descartável.
A arte em suas múltiplas funções tem no reconhecimento a sua maior relevância, devido à interação dinâmica e intertextual. O reconhecimento é a projeção de seus conceitos e valores; o encontro do criador e a inquietação da criatura. A obra de arte é a realização do encontro e daí para adiante tudo é eco deste diálogo.