A atuação profissional do pesquisador deve ser ética, e sua ciência, ecologicamente comprometida

UFRGS-EA-PPGA - Profa. Aida Maria Lovison

Depois de cursar e refletir esta disciplina de Introdução à Filosofia da Ciência, nossa atuação profissional como pesquisadores tem de resultar de uma escolha naturalmente livre, conscientemente responsável e ecologicamente comprometida, que tome a alteridade como categoria fundamental para uma existência ética.

Minha percepção é de que “As Três Ecologias” de Guattari veio no final da disciplina coroar a evolução de nosso pensamento filosófico em relação às ciências. O desenvolvimento das nossas reflexões durante as aulas no decorrer do semestre permitiu construir problematizações e posicionamentos (gerando muito mais perguntas do que respostas) quanto ao questionamento que vimos nos fazendo desde o início da disciplina de Filosofia, no sentido de nos perguntarmos “Ciência por quê? Para que? Para quem?”. E essa compreensão ecológica do todo da realidade que criamos e em que estamos inseridos nos permite assumir uma atitude ética fundamentada (e não apenas discursiva) de comprometimento com a idéia que construímos de sociedade, de desenvolvimento, e de qualidade de vida para os seres humanos. Para isso deve servir a ciência.

Refletimos desde o início da disciplina sobre a existência de uma “crise” do paradigma dominante na ciência. Boaventura (SANTOS, 2002) anunciou que:

Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica. (...) Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou colectivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso. Temos que perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pela contribuição positiva ou negativa da ciência para a nossa felicidade. Nesse momento, por ser um período de transição, ou de crise, é necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, que são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade. (...) O paradigma dominante positivista do fazer-ciência está em crise e em vias de ser substituído por outro, emergente, científico-social.

Já havíamos percebido essa necessidade de mudança quando assistimos ao filme “Quem somos nós?” (2004):

Eu penso que o que estamos vendo nas crianças de hoje, é um sinal de que a cultura está no paradigma errado e não se aprecia o poder dos pensamentos. Todas as épocas e todas as gerações têm suas próprias suposições. O mundo é plano, o mundo é redondo, etc. Existem centenas de suposições que acreditamos ser verdadeiras, mas que podem ou não ser verdadeiras. (...) Se tomarmos como guia a história, podemos presumir que muitas coisas em que acreditamos como verdades sobre o mundo podem ser falsas. Estamos presos a certos preceitos e não nos damos conta disso. É um paradoxo.

E Nancy Unger (1991), que vimos ao final da disciplina, complementou a idéia:

O que caracteriza o momento histórico que agora vivemos é a instalação persistente, insidiosa, angustiante, da dúvida e da perplexidade. A palavra crise, do grego krínein, significa momento de discernimento, de decisão. Estamos vivendo a krínein! A crise atual, de que tanto se fala, é a expressão de uma sociedade fragmentada, de uma civilização que dissociou corpo e espírito, luz e mistério, ser humano e Cosmos. Esta crise evidencia cada vez mais que a dominação do homem pelo homem caminha junto com a dominação da Natureza, e que a transformação da sociedade tem de estar vinculada a uma transformação interior, pessoal.

Para Boaventura (SANTOS, 2002), o Paradigma Dominante, com seu modelo de racionalidade que preside a ciência moderna (...) foi desenvolvido basicamente no domínio das ciências naturais:

Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. (...) Essa nova visão do mundo e da vida estabelece a separação total entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, e entre a natureza e os humanos. O conhecimento do senso comum não tem valor porque se baseia na experiência visível, perceptível. E a natureza é vista como algo passivo, que lá está para ter seus mecanismos desvendados sob leis, com a intenção de dominar e controlar.

Segundo esse paradigma, as idéias que presidem à observação e à experimentação são as idéias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza, idéias matemáticas. Por elas, o mundo é quantificável (são desprezadas qualidades particulares dos seres e objetos), e pode ser dividido, decomposto, em “caixinhas” para poder ser explicado em seus pedacinhos, como uma máquina.

A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista. A visão do mundo como uma máquina serve para dominá-lo e transformá-lo (interesse da burguesia ascendente), não para compreendê-lo profundamente. (...) Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo poderosa, que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo. Valoriza muito mais o rigor matemático do que a complexidade da “personalidade” da natureza ou da sociedade.

Para Rubem Alves (2000), o objetivo do “jogo” da ciência é a busca da compreensão das leis que governam o mundo. O conhecimento científico é:

objetivo, especializado (e por isso limitado), e obtido pelo uso de métodos rigorosos. Os pesquisadores têm que seguir as “regras do jogo” (o método científico) para que as descobertas ditas “científicas” sejam legítimas. Essas regras e métodos afastam a subjetividade do cientista-pesquisador, o qual tem que usar um “modelo mentalmente idealizado, hipotético e provisório, que, depois de construído, deve ser pesquisado e experimentado. Assim, entendendo-se a teoria como algo continuamente passível de teste, os fatos objeto do trabalho científico são restritos àqueles decisivos para a confirmação ou negação das teorias postas.” Já o conhecimento do chamado Senso Comum, conhecimento obtido sem a necessidade de um treinamento científico, tem mais a visão global do todo do que a especialização e o aprofundamento dos detalhes. Ambos exigem criatividade para inventar soluções de adaptação dos humanos às revoluções da humanidade.

Para investigar as conclusões a que o racionalismo poderia chegar, Kant (2001) propõe a crítica da razão pura para que haja um sistema que explique como ela funciona.

Em todas as ciências teóricas da razão encontram-se, como princípios, juízos sintéticos a priori (necessidade e universalidade rigorosa, conceitos matemáticos). Importante compreender como uma ciência teórica da razão como a filosofia transcendental chega às suas conclusões, sem aceitar um procedimento dogmático. A Filosofia carece de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e a extensão de todo o conhecimento a priori. Se eliminardes do vosso conceito empírico de qualquer objeto, seja ele corporal ou não, todas as qualidades que a experiência vos ensinou, não poderíeis, contudo, retirar-lhe aquelas pelas quais o pensais como substância. (...) Obrigados pela necessidade com que este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua sede a priori na nossa faculdade de conhecer. (...) Na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência, e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início (posição semelhante à do Empirismo de Hume). Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência (concessão ao racionalismo de Descartes). A posteriori: conhecimento que é recebido dos sentidos. A priori: conhecimento que é adicionado pela razão.

Apresentando a crise do paradigma dominante, Boaventura também lembra que:

A caracterização da crise do paradigma dominante traz consigo o perfil do paradigma emergente. O paradigma dominante mostrou que oferecia uma segurança apenas aparente, e assim a comunidade caminha para outra forma de fazer-ciência. (...) A análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da sociologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão epistemológica.

O PARADIGMA EMERGENTE

Para Rubem Alves (2000), a perspectiva, a forma como vemos ou analisamos os dados, seria determinada pela imaginação e esta, por sua vez, seria o elo que une o homem ao objeto de estudo. Nessa análise, Rubem Alves se permite contestar os pensadores que renegam a emoção que envolve o cientista quando investiga alguma coisa. Ele não crê que a ciência seja neutra, a partir do entendimento de que o trabalho do cientista exige uma grande dose de amor e paixão, presente nos "vôos da imaginação criadora". As teorias estariam ligadas à biografia do cientista e ao destino de sua comunidade.

Para Boaventura (SANTOS, 2002), considerando-se uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente).

A ideia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele (princípio da incerteza de Heisenberg). (...) Este princípio, e, portanto, a demonstração da interferência estrutural do sujeito no objecto observado, tem implicações de vulto. (...) A distinção sujeito/objecto é muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer. A distinção perde os seus contornos dicotómicos e assume a forma de um continuum. Por um lado, sendo estruturalmente limitado o rigor do nosso conhecimento, só podemos aspirar a resultados aproximados e por isso as leis da física são tão-só probabilísticas (...) e o rigor da matemática carece de fundamento, sendo um tipo de rigor, como outros, baseado em um critério de seleção.

1. Todo o conhecimento científico-natural é científico-social

O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo, colectivo/individual, animal/pessoa.

A constituição das ciências sociais teve lugar segundo duas vertentes: uma mais directamente vinculada a epistemologia e a metodologia positivistas das ciências naturais, e outra, de vocação anti-positivista, caldeada numa tradição filosófica complexa, fenomenológica, interaccionista, mito-simbólica, hermenêutica, existencialista, pragmática, reivindicando a especificidade do estudo da sociedade, mas tendo de, para isso, pressupor uma concepção mecanicista da natureza.

terem preferido a compreensão do mundo à manipulação do mundo.

2. Todo o conhecimento é local e total

Os males da parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que transporta consigo são hoje reconhecidos, mas as medidas propostas para os corrigir acabam em geral por reproduzi-los sob outra forma. No paradigma emergente o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade.

3. Todo o conhecimento é auto-conhecimento

A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistémico mas expulsou-o, tal como a Deus, enquanto sujeito empírico. Um conhecimento objectivo, factual e rigoroso não tolerava a interferência dos valores humanos. [...] No domínio das ciências físico-naturais, o regresso do sujeito fora já anunciado pela mecânica quântica ao demonstrar que o acto de conhecimento e o produto do conhecimento eram inseparáveis. Não há como distanciar: o observador sempre modifica o objeto observado.

A nova dignidade da natureza mais se consolidou quando se verificou que o desenvolvimento tecnológico desordenado nos tinha separado da natureza em vez de nos unir a ela e que a exploração da natureza tinha sido o veículo da exploração do homem.

[...] foragido da ciência moderna, Deus, pode estar em vias de regressar. Regressará transfigurado, sem nada de divino senão o nosso desejo de harmonia e comunhão com tudo o que nos rodeia e que, vemos agora, é o mais íntimo de nós, eis a nova gnose

Quando eu era jovem, tinha muitas idéias sobre o que Deus era. Hoje entendo que não tenho consciência para saber o que esse conceito significa. Que sou um com o grande ser que me criou e me trouxe para cá e que criou as galáxias, o universo etc.

Parafraseando Clausewitz, podemos afirmar hoje que o objecto é a continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é auto-conhecimento.

A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos fenómenos nada tem de científico. É um juízo de valor.

A ciência do paradigma emergente é mais contemplativa do que activa.

A qualidade do conhecimento afere-se menos pelo que ele controla ou faz funcionar no mundo exterior do que pela satisfação pessoal que dá a quem a ele acede e o partilha. A dimensão estética da ciência tem sido reconhecida por cientistas e filósofos da ciência,

A criação científica no paradigma emergente assume-se como próxima da criação literária ou artística, porque a semelhança destas pretende que a dimensão activa da transformação do real (o escultor a trabalhar a pedra) seja subordinada à contemplação do resultado (a obra de arte).

O conhecimento é belo!

A realidade, a natureza e a sociedade são belas! Vamos descobrir coisas belas sobre elas! 

Fazer ciência é lindo! Contemplemos!

Assim ressubjectivado, o conhecimento científico ensina a viver e traduz-se num saber prático.

4. Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum

O conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no quotidiano orientamos as nossas acções e damos sentido à nossa vida.

É certo que o conhecimento do senso comum tende a ser um conhecimento mistificado e mistificador mas, apesar disso e apesar de ser conservador, tem uma dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico.

Essa dimensão aflora em algumas das características do conhecimento do senso comum.

O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na acção e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajectórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante.

O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objectivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência linguística.

O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas.

O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida.

O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a acção que não produza rupturas significativas no real. Por último, o senso comum é retórico e metafísico; não ensina, persuade.

Viva o conhecimento do senso comum!

Ele é que traz sentido às nossas vidas!

21 O conhecimento científico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum.

A ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em auto-conhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. É esta que assinala os marcos da prudência à nossa aventura científica. A prudência é a insegurança assumida e controlada.

21 Na fase de transição e de revolução cientifica, esta insegurança resulta ainda do facto de a nossa reflexão epistemológica ser muito mais avançada e sofisticada que a nossa prática científica.

ao menos sabemos que estamos nos limitando no que fazemos

Afinal, se todo o conhecimento é auto-conhecimento, também todo o desconhecimento é auto-desconhecimento.

“A ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado.”

12: A aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo do senso comum. Só podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de que o aprendiz dispõe.

Esta é a base do próprio método científico e da práxis. Observar, formular uma hipótese (a do senso comum, que já se forma em nossa mente) e testá-la.

15 Rubem Alves (2000) lembra que “Ser bom em fazer ciência, assim como no senso comum, é ser capaz de inventar soluções. Deve-se estar ciente de que tanto a ciência quanto o senso comum requerem criatividade para o invento de soluções que buscam a adaptação do ser humano às revoluções da humanidade, pois Vida é sinônimo de mudança.”

21 a presença de ordem, em meio a milhares de outras possibilidades de desordem [...] sempre fascinou os humanos. [...] A ordem permite que se façam previsões. [...] Este espanto perante a ordem é a primeira inspiração da ciência. De fato, de minha parte, é impressionante, e fascinante mesmo, admirar as regularidades presentes em diversas formas na Natureza. [...] Mas com essa obsessão dos humanos pela ordem para previsões, estamos a um passo do (limitado) positivismo... útil para o desenvolvimento das ciências naturais, perigoso para as ciências sociais!

Nossas pesquisas precisam ir além da simples descrição para poderem chegar à lógica e trazer alguma contribuição (teórica) à ciência, digo, ao conhecimento humano sobre o mundo. Para tanto, precisamos usar a nossa imaginação criadora! 

Os Discursos, a Filosofia e a Democracia

Construir uma sociedade em que os desejos de todos sejam respeitados, em que a violência não seja ameaça, em que os sentimentos não perturbem decisões, em que os interesses privados não comprometam o bem-estar de muitos, em que horas de trabalho e horas de lazer sejam distribuídos com justiça – a construção de uma sociedade justa continua a convocar inteligências (SCHÜLLER, 2002).

A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica (CHAUÍ, 2004). A filosofia se empenha em colocar as concepções míticas em outras bases (SCHÜLLER, 2002). A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa, é, portanto, fundamental para a Filosofia (CHAUÍ, 2004).

A convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pelo intelecto, é capaz de governá-las e dominá-las, de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional, isso orienta o racionalismo político, isto é, a idéia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantê-lo racionalmente (CHAUÍ, 2004). A cidade-estado grega, ao incentivar os homens a tomarem o destino em suas próprias mãos, dessacraliza. Nada do que pertence ao domínio público deve ser regulado por um único indivíduo (implicações políticas do comum). Assuntos comuns são tratados no debate, a guerra de palavras que gera o bem comum. O discurso sustenta, congrega, une, critica, vigia, reina. O discurso propõe o Discurso, base da democracia universal que abriga todos os seres (SCHÜLER, 2001). Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém (CHAUÍ, 2004). E os direitos democráticos se estabelecem depois de serem duramente conquistados (SCHÜLLER, 2001).

A preocupação pelo outro, atitude básica para a vida política (SCHÜLLER, 2002), fundamenta a instituição de práticas pelas quais as decisões são tomadas a partir de discussões e debates públicos e são adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa) e sobretudo criando a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades (CHAUÍ, 2004). Pela justiça e pela não-justiça, cada um se relaciona com os outros e com o mundo, saindo do isolamento individual e se colocando responsavelmente ligado com todos e com tudo (SCHÜLLER, 2002).

Mas Heráclito viveu (e nós hoje vivemos) numa época em que os discursos persuasivos eram muito valorizados, e os cidadãos que estavam atentos apenas ao apelo dos discursos foram arrastados pelo torvelinho dos encantos inconseqüentes, porque a persuasão não era conduzida pela verdade (SCHÜLLER, 2001) (pelos sofistas e oradores, com objetivo de enganar juízes ou cidadãos) (SCHÜLLER, 2002). Mas, por mais poderoso que seja o discurso, resta sempre ao cidadão desperto a alternativa de dizer não. Como todo discurso pressupõe discursos, confronta-se com outros discursos e produz discursos novos (SCHÜLLER, 2002), então existe o falar do que profere discursos e existe o dizer dO Discurso, sendo que o primeiro constrange à visão peculiar, o segundo liberta para o conflito dos contrários (SCHÜLLER, 2001). Governos autoritários tentariam eliminar esse conflito, que reduzem os subordinados ao silêncio, à não-participação; mas para Heráclito, “o conflito é o pai de todas as coisas”. O importante é aprender a conviver com as diferenças, e ver valor nessas diferenças. Nesse sentido, não se espere que a democracia resolva os conflitos, porque ela os cultiva! As próprias comunidades políticas se constroem na convergência de contrários, que forma a estrutura que sustenta o corpo político. E é no equilíbrio dos contrários que a democracia se mantém (SCHÜLLER, 2002).

Uma questão que poderia incentivar o debate sobre o tema seria:

A democracia se constituiu na Grécia apesar dos ou por causa dos discursos e da ascendência de uns cidadãos sobre outros?

O conjunto de princípios, valores e regras de comportamento moral respondem à necessidade social de regular e orientar as relações humanas de um determinado grupo social numa determinada direção (CHAUÍ, 2004). A realidade moral varia historicamente e, com ela, variam as práticas, princípios, valores e regras em vigor em determinado contexto histórico-cultural (VÁZQUEZ, 2004). Isso porque a vida moral compõe a dinâmica história humana de autocriação, no sentido de definir princípios de conduta, valores de bem e mal, permitido e proibido, recomendável e reprovável (VALLS, 2003) – relacionados com os valores individuais –, e regras de comportamento moral, entendido como consciente, responsável, baseado na liberdade de escolha e guiado pela vontade e pela razão (VÁZQUEZ, 2004).

As pessoas, e em especial os pesquisadores, são capazes tanto de interiorizar e legitimar valores, normas e princípios, como de criar novos, em oposição àqueles vigentes (CHAUÍ, 2004). Assim ocorre com o indivíduo na sociedade, e com o pesquisador na comunidade científica, ambos inseridos num processo dinâmico de influência recíproca entre a cultura e os hábitos individuais, de um lado, e de outro os princípios, valores, regras de comportamento morais da comunidade em que se identifica (CHAUÍ, 2004).

O pesquisador que percebe a falácia do discurso de “desenvolvimento”, por trás do qual a sociedade de mercado determina prioridades e limites à elaboração e emprego do conhecimento científico (PORTO, 2006), também percebe que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos e da Terra resultaram em barbaridades que ultrajaram a consciência da Humanidade (ONU, 1948), obliteraram os valores humanos, degradaram a Natureza, e produziram desigualdades econômicas e sociais entre indivíduos, grupos e segmentos, reveladas na possibilidade de produzir e consumir tecnologias. A concepção de ciência na modernidade, animada pela razão e sempre em busca da ordem (TOURAINE, 1994) é criticada pelos pós-modernos , especialmente porque essa idéia de desenvolvimento associada à tecnologia impede que se veja e avalie com clareza o quanto a sua associação espúria com a ideologia de consumo prejudica o ambiente e a sociedade (PORTO, 2006).

Para romper as amarras que sujeitam os indivíduos a essa dependência, é essencial adotar padrões éticos que pressuponham o bem-estar do ser humano como um fim (PORTO, 2006), pois a ética tem justamente como fundamento a concepção filosófica da visão total da pessoa como ser social, histórico e criador (VAZQUEZ, 2004). Aristóteles valoriza a livre vontade humana, que delibera, escolhe inteligentemente e se esforça em busca de bons hábitos (VALLS, 2003), e a filosofia moderna propõe uma reflexão sobre o dever e a liberdade, sobre a motivação da ação e sobre a forma do agir moral (Kant). Desse modo, a reflexão ética contribui para fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral (VAZQUEZ, 2004), ao buscar concordância com princípios filosóficos universais de uma moral cosmopolita.

Quando tem uma visão de mundo guiada por tais princípios, o pesquisador busca “tratar a humanidade e a cada indivíduo sempre como um fim, nunca como um meio” (Kant). Busca promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla (ONU, 1948), eliminar a agressão e o desrespeito na relação com o outro e com o planeta, ao mesmo tempo em que procura manter a fidelidade a si mesmo, a coerência da vida e a inteireza do caráter (CHAUÍ, 2004), adotando para sua prática científica o princípio da responsabilidade, a partir da sua autoconscientização de que a ciência deve estar inserida no seu contexto social e internacional como instrumento de bem-estar dos povos (GHENTE, 2003).

Entendida desse modo, a ética ilumina as decisões de cada pesquisador no processo educativo individual e social para servir ao ideal de construir práticas corretas na sua comunidade, dar exemplo e testemunho de retidão (CHAUÍ, 2004), e tentar contribuir para uma sociedade sustentável (GHENTE, 2003). Só assim se poderá conservar e transmitir aos descendentes as imensuráveis riquezas que a natureza hoje oferece (ONU, 2000). Entre essas boas práticas, estão refletir sobre os limites que a ética estabelece à elaboração e emprego do conhecimento científico (GHENTE, 2003), e definir para si e para o outro os critérios e valores que formam seu caráter, construindo o hábito da atuação ética pela repetição das ações e decisões como sua expressão como pessoa (CHAUÍ, 2004) e do seu posicionamento ético consciente como pesquisador.

Assim, considerando como Kant que o dever, ou obrigação moral, é uma necessidade para uma liberdade, que obriga moralmente a consciência moral livre, então se entende que a vontade verdadeiramente boa deve agir sempre conforme o dever e por respeito ao dever (VALLS, 2003). O ponto é que, como deve agir de tal modo, também pode não agir desse modo (VALLS, 2003), conforme as condições do ambiente em que atua, e sempre em tensão com elas e limitando-se pelo que as circunstâncias permitem, o indivíduo tem a liberdade, vista como para Kierkegaard (a opção voluntária por fazer o bem, consciente da possibilidade de preferir o mal) (VALLS, 2003), de escolher e tornar possível o conjunto de valores e as regras de comportamentos alternativos (CHAUÍ, 2004) que resultam adequados para seus propósitos, ou seja, cada pesquisador pode escolher adotar ou não em sua prática profissional, uma postura conforme aos costumes considerados corretos (VALLS, 2003), ou seja, uma vida ética.

Uma questão que poderia incentivar o debate sobre o tema seria:

É a racionalidade funcional que hoje governa o fazer científico, “permitindo” separar a atitude técnico-científica da atitude moral (fins justificam meios), e fundamentando/ justificando as alterações morais (mudanças de princípios, valores, regras de comportamento) nas comunidades de pesquisa ocidentais desde o início dos estudos éticos pelos filósofos modernos, ou talvez haja de fato um começo de tendência para o princípio da responsabilidade, e para a racionalidade efetivamente substantiva?

Crítica nos Estudos das Organizações

A acepção moderna de dialética significa o modo de compreender a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação. No contexto das organizações, encontra-se uma realidade formada de situações plenas de contradições, conflitos e constante mudança. Ao mesmo tempo em que existe uma hegemonia de determinados temas, olhares e métodos de pesquisa organizacional, há também crítica e resistência concretizadas em práticas criativas que produzem conhecimento novo. Nesse sentido, a teoria, o pensamento crítico, e a própria dialética, ajudam a compreender a essência das atividades, da prática social, relacionar conceitos e compreensões, validados por essa mesma prática social, e assim ampliam as possibilidades de aprendizagem.

Assim como a concepção metafísica, o enfoque sistêmico estrutural prevaleceu, ao longo da história, porque corresponde, nas sociedades divididas em classes, aos interesses das classes dominantes, sempre preocupadas em organizar duradouramente o que já está funcionando e interessadas em firmar os valores, os conceitos e as instituições existentes, para impedir que as pessoas tentem mudar o regime social vigente. Isso difunde visões do mundo, dos indivíduos e das organizações, que hoje evidenciam um falso pensamento crítico, pois são pesquisas policiadoras, tecnocráticas, até mesmo “comerciais”, encomendadas, baseadas na presunção da obrigação da submissão às leis do mercado e na conseqüente naturalidade da desigualdade social, mas perversamente disfarçadas de “esquerdismo”. Barbaridade! Era só o que faltava!

Mas os pesquisadores de estudos organizacionais não precisam entender seu tema de estudo, a organização, estritamente a partir da crença doutrinadora de um enfoque sistêmico estrutural como objeto formalizado, e podem até partir de uma abordagem da organização como processo, ou mesmo de abordagens produzidas em conjunto com outros campos disciplinares, como já estudamos nesta disciplina. Assim, é metodologicamente recomendável abrir o entendimento e as interrogações à realidade, ter coragem para questionar a autoridade dos formadores do mainstream constituído, do mesmo modo que ela interroga e desafia os pesquisadores no seu dia-a-dia, ao considerar dialeticamente que mudança e a permanência são categorias reflexivas, que não podem ser pensadas uma sem a outra, pois todas as coisas estão sujeitas a passar de uma mudança a outra e o todo está sempre mudando.

Então, como tanto a crítica kantiana como a marxista oferecem meios para o pesquisador examinar e compreender as categorias de estudo, identificando as implicações epistemológicas e sociais que estão “escondidas” dentro dos discursos, é necessário incluir entre os métodos de pesquisa a prática de revisar as suposições de “saber fazer” e “saber a resposta”. Como no lema de Marx, “duvidar de tudo”: duvidar, incorporar a interpretação de suspeita frente ao que se mostra aparentemente ordenado e resolvido, unidirecional e linear. E além disso, também “desconfiar de quem quer impor a ordem”, sem ficar preso às técnicas de busca de legitimidade e de poder, lembrando que o pensamento crítico é o que dá o significado de pensar o mundo como ele é e como ele poderia ser. Nesse sentido, convém reafirmar que apenas criticar sem criar, limitar-se a contestar determinada escola ou corrente de pensamento nos estudos organizacionais não dispensa o pesquisador do seu “compromisso com o saber”, que exige a proposição de uma outra forma de olhar, que supere as limitações ou contradições apontadas na forma contestada.

Assim, a resistência pode ser entendida como um processo de apropriação do conhecimento que circula em um contexto e gera a emergência de práticas impensadas considerando a história até então produzida. Não é apenas uma oposição, mas inclui a defesa de saberes, posições, pontos de vista, e as realizações e criações decorrentes. E por outro lado, o pensamento crítico deve evidenciar as contradições lógicas e práticas de discursos de poder (como o neoliberal), para poder agir criticamente e questionar as regras que governam as ações e crenças vigentes, no sentido de pensar o mundo, e não ser pensado por ele. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem dela, e sempre existe algo que escapa às sínteses, pois cada totalidade tem sua maneira diferente de mudar, e as condições da mudança dependem do caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento. Por exemplo, realidades que não são contempladas pelo mainstream da pesquisa organizacional podem surpreender ao permitirem a produção de conhecimento novo em conjunto entre acadêmicos e não-acadêmicos.

Assim, a resistência que ocorre em um determinado espaço social pode ser vista como mais do que puramente crítica, mas dentro da característica essencial da dialética, o espírito crítico e autocrítico. Assim como o projeto de Kant procurou definir condições para o uso legítimo da razão, o pesquisador examina constantemente o mundo e deve estar sempre disposto a rever as interpretações em que se baseia para atuar. Desse modo, a resistência, sempre aliada ao pensamento crítico, é também uma busca de afirmação de outra visão, uma defesa de conhecimentos, de percepções e de construções diferentes, que trazem crescimento e desenvolvimento dos saberes do grupo social no qual se desenvolve.

Uma questão que poderia incentivar o debate sobre o tema seria:

Pode-se considerar que as grandes rupturas de paradigmas das ciências ditas exatas ou naturais resultaram também de um processo histórico de pensamento crítico que teve efeito sobre a epistemologia da época?

O materialismo moderno tira das pessoas a necessidades de se

sentirem responsáveis.

Mas eu acho que se você levar a mecânica quântica a sério, verá

que ela coloca a responsabilidade nas nossas mãos e não dá

respostas claras e reconfortantes. Ela só diz que o mundo é

muito grande e cheio de mistérios. O mecanismo não é a

resposta, mas não vou dizer qual é a resposta, pois você tem

idade o suficiente para tomar as suas decisões.

a consciência é o chão, o fundamento de todos os seres.

Questão: Por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano está se afundando em uma nova espécie de barbárie?

Proposta: Investigar a autodestruição do esclarecimento. “Não alimentamos dúvida nenhuma de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo (...) o próprio conceito desse pensamento contém o germe da regressão que hoje tem lugar por toda a parte.” Sem refletir sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento perde seu caráter superador e, por isso, sua relação com a verdade.

Objetivo desse estudo: Tornar mais inteligível o entrelaçamento da racionalidade e da realidade social, bem como o entrelaçamento (...) da natureza e da dominação da natureza.

O programa do esclarecimento: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber.” (...) “o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada.”

O esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. A natureza é (...) o que deve ser apreendido matematicamenteO procedimento matemático tornou-se o ritual do pensamento. (...) Ele transforma o pensamento em coisa, e em instrumento, como ele próprio o denomina. O esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento.

Origens do mito e da ciência: A duplicação da natureza com aparência e essência, ação e força, que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém do medo do homem, cuja expressão se converte na explicação. Do medo, o homem presume estar livre, quando não há mais nada de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento (...). O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica.

O mito já era produto do próprio esclarecimento. O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, expor, fixar e explicar. Similaridades do mito e da ciência: caráter de repetição.

Atividade esclarecedora e processo civilizatório:

Ulisses e as sereias: Provações para a formação do ego, tentação de perdê-lo acompanhada da determinação cega de conservá-lo. (...) O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e outra vida, o temor da morte e da destruição, está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização. O caminho da civilização era o da obediência e do trabalho, sobre o qual a satisfação não brilha senão como mera aparência, como beleza destituída de poder. O pensamento de Ulisses, igualmente hostil à sua própria morte e à sua própria felicidade, sabe disso.

O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder.

O esclarecimento acaba por reverter à mitologia.

A distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado. Dominação e trabalho separam-se. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador (...).

Na medida em que cresce a capacidade de eliminar duradouramente toda a miséria, cresce também desmesuradamente a miséria enquanto antítese da potência e da impotência. O absurdo dessa situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que o subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional.

Com o abandono do pensamento, o esclarecimento abdicou de sua própria realização. Ao disciplinar tudo o que é único e individual, ele permitiu que o todo não-compreendido se voltasse, enquanto dominação das coisas, contra o ser e a consciência dos homens. Mas uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça. [O esclarecimento] só se reencontrará consigo mesmo quando tiver a ousadia de superar o falso absoluto que é o princípio da dominação cega. (...) O esclarecimento se consuma e se supera quando os fins práticos mais próximos se revelam como o objetivo mais distante finalmente atingido (...) e a natureza ignorada pela ciência dominadora é recordada como país de origem.

Ser filósofo é mais que ser um estudioso. É um MODUS VIVENDI. (...) Assim a filosofia surge como uma sabedoria de vida. (...) É decifrar o não-dito em cada dito e as intencionalidades ocultas nos sistemas que articulam a sociedade. É descobrir e acolher jovialmente os próprios limites e conscientizar a inserção e a solidariedade que tudo guarda com tudo e com o todo.

Bacon escreve que o saber e o poder existem para "amarrar a Natureza a teu serviço e fazê-la tua escrava". Está aqui formulada a lógica perversa da agressão sistemática, em nome da modernidade científico-técnica, à Natureza e a todos os ecossistemas. Parte-se do falso pressuposto de que nos movemos entre dois infinitos: o infinito dos recursos naturais e o infinito do progresso linear.

Nesta visão holística, conhecer não significa apenas distanciar-se do real para depois acerca-se dele para dominá-lo. Conhecer é, antes de tudo, um ato de comunhão. A nova espiritualidade reconcilia o ser humano com o universo. Ele afirma suas raízes cósmicas como forma de comunhão com o todo. (...) O ser humano é um irmão das lesmas e das estrelas.

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Na busca sempre crescente de estabelecer um controle e dominação sobre a Natureza, sobre os outros homens e sobre os próprios ritmos da vida, perdemos uma dimensão essencial da experiência humana: aquela que Heráclito expressou quando disse: "A morada do homem é o extraordinário".

TIRANIZAÇÃO DO REAL

indagações sobre as raízes civilizacionais e espirituais da crise que vivemos.

A dominação do homem pelo homem caminha junto com a dominação da Natureza.

A transformação da sociedade tem de estar vinculada a uma transformação interior, pessoal.

A tirania do RATIO exclui o irracional, o Outro, tudo aquilo que não é princípio de identidade. O ego raciocinante torna-se o critério de determinação do real. Os pensadores da chamada Escola de Frankfurt mostraram de que maneira a Aufklärung, vista como Razão Emancipadora, acaba por instaurar uma lógica do domínio, desdobrando-se na Razão Instrumental, que trata a Natureza da mesma maneira como trata os homens: como algo a ser dominado, posto a seu serviço. (...) Rompe-se o diálogo entre o homem e o Mundo, porque o mundo se torna estático, morto, coisificado. É essa tiranização do real que vai governar nosso percurso civilizacional.

"Pois, em verdade, o que é aproximar-se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar com as duas mãos e abraçar a servidão? (...) Mas eles querem servir para ter bens, como se não pudessem gerar nada que fosse deles, pois não podem dizer de si que sejam de si mesmos..." (La Boétie) O desejo de comandar e de possuir o que se comanda é o fundamento da servidão. No entanto, o DISCURSO nos mostra o quanto esse ganho é ilusório.

SERVIDÃO E APEGO (Fenomenologia do Espírito - dialética do senhor e do escravo) La Boétie mostra que a servidão não se constitui como resultante de um embate originário entre dois inimigos, findo o qual o derrotado teria preferido a vida à liberdade.

Para os gregos, o que distingue homens e deuses é a questão da morte: os deuses são imortais; os homens, mortais.

Enquanto Totalidade dinâmica, enquanto movimento tenso e trágico, o Mundo inviabiliza nosso desejo de permanência e segurança. (...) Ora, é por sucessivas rupturas operadas ao longo de nosso percurso civilizacional que se dá a substituição desta totalidade por uma representação que a dicotomiza na pretensão de torná-la controlável. (...) O peso destes hábitos civilizacionais é tal, que os confundimos com a própria realidade, e sequer nos damos conta de que são construções datadas historicamente: nesta desmemória, tornamo-nos servos de nossas próprias representações - esquecemos que esquecemos.

Dizer que PÓLEMOS, o combate, é o que re-úne, é opor ao Um do Tirano, este Um que se constitui na negação do múltiplo, a Unidade como embate e combate das diferenças; mais do que isso, é dizer que é o conflito que liga e re-liga estas diferenças entre si. (...) Por isso, ali onde não há combate, a guerra advém, pois o que é a guerra senão o projeto de abolição do pólo oposto (para implantar a paz dos cemitérios, e reinar Só)?

"AMIGOS DO SENDO" A liberdade se funda na amizade; a tirania, no seu esquecimento. (...) A tiranização do real se funda em uma compreensão distorcida daquilo que significa ser um humano: nossos hábitos civilizacionais nos acostumaram a nos pensar como ego-sujeitos que são a medida de todas as coisas, roubando-nos a memória daquilo que constitui nossa verdadeira humanidade.

Assumir nossa humanidade é afirmar nossa amizade co-operária com o próprio ritmo da vida: seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade.

Mas o "nós" só se funda à medida que nos tornamos "amigos do sendo". Esta amizade implica (...) que sem uma re-apropriação de nossa verdadeira humanidade, continuaremos a devastar o planeta, sujeitos a uma busca insaciável de segurança e controle. (Zimmermann) Dominação e servidão falam do mesmo.

A amizade, por sua vez, se liga à gratuidade: ela se dá quando assumimos que nossa vocação existencial não é de subjugar as coisas, mas de deixá-las se manifestarem enquanto tais, e não enquanto objetos cujo valor reside em como podem servir a algum objetivo humano. Ser amigo é acolher o Mundo, o Outro, "na sua libérrima existência, na sua total e gratuita inutilidade" (Pellegrino). Sendo gratuidade, a amizade é autonomia: não serve para nada (pois amigo se é "de graça"); por isso, não serve a ninguém (pois sua ação se realiza a partir de si mesma) (Chauí). Assim, a liberdade, só a vivemos quando abrimos mão de nosso projeto de controle do processo de realização do real: tornamo-nos os "sendos" que já somos quando deixamos ser. Liberdade e amizade falam do mesmo.

O LOUCO DESEJO DO UM O fantasma do Um como ocultação da experiência da indeterminação do plural: tal é o objeto do desejo de servidão, "sempre capturado por novos feitiços".

Conceito de autonomia - Direito à diferença

Com o súbito clarão do Logos, à luz do qual percebemos, por um instante, a unidade fundamental de tudo o que existe. (...) A unidade do múltiplo, a união dos múltiplos versos, das múltiplas falas do Ser: o Universo. É desta unidade que a ecologia profunda nos fala.

Nós somos as emoções e as emoções somos nós.

"E aquele que quebra uma coisa para descobrir o que ela é deixou o caminho da sabedoria." (Gandalf)

Você não pode explicar. E quem tentar explicar, quem dispender

muito tempo tentando explicar vai se perder no labirinto do

mistério. Quanto mais se estuda a física quântica, mais

misteriosa e fantástica ela se torna. (Quem somos nós)

A ciência social será sempre uma ciência subjectiva e não objectiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenómenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas acções, pois a acção humana é radicalmente subjectiva. [...] Para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista a obtenção de um conhecimento intersubjectivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objectivo, explicativo e nomotético. Esta concepção de ciência social reconhece-se numa postura antipositivista e assenta na tradição filosófica da fenomenologia (SANTOS, 2002).

A Compreensão Ecológica para Nossa Vida em Sociedade

Adorei estas "Três Ecologias"! :-) Impressionante como tem caras que conseguem "pensar a realidade" no momento em que as coisas estão acontecendo... Ver o problema, a lógica perversa e propor OUTRA lógica, muito mais mimosa! Viva a subjetividade consciente!

Segundo Guatttari (2003), “O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre o planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. Em virtude do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico, redobrado pela revolução informática, as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da neurose, ou a da cultura, da criação, da pesquisa, da reinvenção do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade?”

Essa reflexão relaciona-se, de maneiras indiretas, com aquela de Celso Furtado apresentada pela professora Sueli a respeito do conceito de Desenvolvimento, no sentido de buscar o desenvolvimento da sociedade para a sociedade, e não para uma minoria. A visão naturalmente global da ecologia permite perceber que “a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar "transversalmente" as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais”. Essa ecologia generalizada que Guattari (2003) preconiza “tem por fim descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique”.

A idéia dialoga muito proximamente com a visão de Nancy Unger sobre o (des)encantamento do humano que ocorre em nível subjetivo e que exige de nós uma “parada para reflexão” no sentido de perceber que “a busca sempre crescente de estabelecer um controle e dominação sobre a Natureza, sobre os outros homens e sobre os próprios ritmos da vida, leva-nos a perder a dimensão essencial da experiência humana (...) e sem a reapropriação de nossa humanidade, continuaremos a devastar o planeta, sujeitos a uma busca insaciável de segurança e controle, como ego-sujeitos que são a medida de todas as coisas” (Unger, 1991).

Essa postura do ser humano de tomar-se como referência para a “utilidade” da existência dos outros seres vivos, componente dessa lógica de dominação, a própria introjeção do poder repressivo por parte dos oprimidos é problematizada por Guattari, Unger e Paulo Freire. Somente a percepção dos discursos das ideologias que não se comprometem com o desenvolvimento da sociedade e de cada ser humano poderá iniciar a possibilidade da luta para promover a ética via o compromisso da solidariedade (Freire, 1988). Isso configura o princípio da ecologia social de Guattari (2003), que diz respeito à promoção de um investimento afetivo e pragmático em grupos humanos de diversos tamanhos.

Nesse sentido é que a proposta de Guattari consiste em “desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho (...) para reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo”. Sua ecologia social trabalha na “reconstrução das relações humanas em todos os níveis, do socius. (...) Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produção singular de existência”. Nancy Unger também anuncia que temos que assumir que “nossa vocação existencial não é de subjugar as coisas, mas de deixá-las se manifestarem enquanto tais, e não enquanto objetos cujo valor reside em como podem servir a algum objetivo humano (...) pois a transformação da sociedade tem de estar vinculada a uma transformação interior, pessoal”.

E para Guattari (2003) são as “novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, como o estranho: todo um programa que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época”.

Refletir! A natureza permanece com seus encantos e seu valor independentemente dos seres humanos! Por isso a necessidade de instaurar uma nova ética, resgatando o senso de cordialidade e de respeito para com a Terra e seus habitantes (religar a dimensão do homem à dimensão do Cosmos! O Homem também é Natureza!).

Minha percepção é de que “As Três Ecologias” de Guattari veio no final da disciplina coroar a evolução de nosso pensamento filosófico em relação às ciências. O desenvolvimento das nossas reflexões durante as aulas no decorrer do semestre permitiu construir problematizações e posicionamentos (gerando muito mais perguntas do que respostas) quanto ao questionamento que vimos nos fazendo desde o início da disciplina de Filosofia, no sentido de nos perguntarmos “Ciência por quê? Para que? Para quem?”. E essa compreensão ecológica do todo da realidade que criamos e em que estamos inseridos nos permite assumir uma atitude ética fundamentada (e não apenas discursiva) de comprometimento com a idéia que construímos de sociedade, de desenvolvimento, e de qualidade de vida para os seres humanos. Para isso deve servir a ciência.

• GUATTARI, Félix. As três ecologias. 14.ed. Campinas/SP: Papirus, 2003.

• FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. 18.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

• UNGER, Nancy. O encantamento do humano: ecologia e espiritualidade. São Paulo: Loyola, 1991.

• CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 2.reimpr. São Paulo: Ática, 2004.

• SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (Dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001.

• SCHÜLER, Donaldo. Origens do discurso democrático. Porto Alegre: L&PM, 2002.

 PORTO, Dora. Tecnologia & Ideologia: Os dois lados de moeda que produz vulnerabilidade. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, v.2, nº1, 2006, p.63-86.

 VALLS, Álvaro. A “ciência” da ética. In: Da ética à bioética. Petrópolis: Vozes, 2004, p.40-60.

 CHRISTIANS, Clofford G. Ethics and Politics in Qualitative Research. In: DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna s. Editors. Handbook of Qualitative Research. 2.ed. London: Sage Publications, Inc, 2000, p.133-155;156-162.

 GHENTE. Declaração do Rio de Janeiro sobre Ética em Ciência e Tecnologia (para a América Latina) http://www.ghente.org/doc_juridicos/dec_comest.htm, 2003.

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Aline Vieira Malanovicz – 23/12/08