SOBRE A BELEZA
Propércio foi um autor de elegias e mitógrafo romano. Oriundo de família abastada recebeu uma boa educação. Como não tinha gosto pela política optou por ser poeta.
Escreveu quatro livros de elegias. O primeiro deles, Monobiblos (28a. C.), feito para Cíntia, sua musa inspiradora, apresentava a temática amorosa. Foi uma obra de grande sucesso, permitindo, assim, que o poeta ingressasse no círculo de MECENAS, composto por diversos poetas famosos.
Seu quarto livro teve publicação póstuma (16 d.C.), nele Propércio descreve lendas das fundações das cidades e, também, a instituição de ritos romanos. Essas elegias são consideradas o ápice do gênero na literatura romana.
Poucos autores puderam ser comparados a Propércio, devido a sua imaginação, força e erotismo. Seus poemas foram traduzidos por vários autores. No Renascimento, Goethe em “Römische Elegien”, inspirou-se em suas elegias.
Através deste ensaio pretende-se analisar a elegia I.2, de Propércio. Nesse poema o autor trata basicamente de aconselhar sua amada sobre os enganos da beleza artificial (luxo), além de suplicar que ela volte sua atenção para a beleza natural (simplicidade). Dessa forma, nos propusemos a fazer uma pequena interpretação sobre a questão da mulher dentro do período histórico cuja obra foi escrita, além de mostrar a luta do poeta para que sua amada abandone os enganos da beleza artificial.
Transcrição da elegia I.2, de Propércio:
Quid iuuat ornato procedere, uita, capillo
Et tenuis côa ueste mouere sinus?
Aut quid Orontea crinis perfundere murra
Teque peregrinis uendere muneribus
Naturaeque decus mercato perdere cultu
Nec sinere in propriis membra nitere bonis?
Credemihi, non ulla tuae est medicina figurae:
Nudus Amor formae non amat artificem.
Aspic quos summittat humus formosa colores,
Ut ueniant hederae sponte sua melius
Surgat et in solis formosius arbutus antris
Et scial indocillis currere lympya uias;
Litorae natiuis persuadent picta lapillis
Et volucres nulla dulcius arte canunt.
Non sic leucippis succendit Castora Phoebe,
Pollucem cultu non Hilaira soror;
Non, idea et cupido quondam discordia Phoebo,
Eueni patriis filia litoribus:
Nec phygium falso traxit candore maritun
Avecta externis hippodamia rotis;
Sed fácies aderat nullis obnoxia gemmis,
Qualis Apeleis est color in tabulis.
Non illis studium uulgo conquirere amantis:
Illis ampla satis forma pudicitia.
Non ego nunc uereir ne sim tibi uilior istis:
Uni si qua placet, ulta puella sat est,
Cum tibi praesertim phoebus sua carmina donet
Aoniamque libens Calliopea lyram
Unica nec desit iucundis gratia uerbis
Omnia quaeque Vênus quaeque Minerva probat
His tu semper erisnostrae gratissima vitae,
Taedia dum miserae sint tibi luxuriae.
A mulher na elegia e na época do imperador Augusto:
Muitos dizem que obra de Propércio traz uma mulher fruto unicamente de sua criatividade, no entanto não podemos desconsiderar que suas elegias estão impregnadas pelo contexto social em que viveu. Sendo assim, é relevante refletir o quanto a situação social está presente na obra de Propércio, em especial na elegia I.2.
Ao longo da república o matrimônio era um ato político, destinado a estabelecer uma aliança entre famílias. Assim, uma jovem aristocrata casava-se com alguém escolhido pelo pai, segundo conveniências políticas. Em geral, essas uniões tinham o propósito de alterar o regime político vigente.
Com o começo do Império percebe-se uma crise nos casamentos. Então, o imperador Augusto (27 a.C. – 14 d.C.) põe-se a criar leis para regular o comportamento social: dificulta o casamento entre pessoas muito jovens, impõe limites para o divórcio, restringe as relações sexuais ao matrimônio, entre outras. Esses preceitos tinham por principal objetivo a manutenção da família.
No tempo de Augusto o modelo de beleza era a mulher aristocrata, branca e cuidada. A dama deveria ser extremamente vigiada, pois serviria como pagamento de alianças políticas. Segundo Veyne, a escrava era o estereótipo de mulher promiscua, já que não havia casamento entre escravos. Assim, julgavam que a mulher liberta não poderia ser matrona, justamente por sua condição de promiscuidade.
A cortesã representava o prazer livre e descompromissado, por outro lado a aristocrata era símbolo do prazer oculto. Ao que parece o prazer furtivo era inibido, mas isso não impedia que ele ocorresse, pois a infidelidade era constante entre os romanos.
Na elegia I. 2, de Propércio, vê-se uma mulher que busca seus parceiros pelo puro interesse econômico. Por isso, pode-se depreender que a dama referida pelo autor não é pura e casta. Essa mulher não pode ser comparada a uma aristocrata, mas está bem próxima do que se pensava das mulheres libertas. Por isso, ela pode ser igualada a uma cortesã, que comercializava seu corpo para adquirir riquezas, uma vez que, vendia-se para adquirir todo o luxo que pudesse.
A poesia de Propércio retrata precisamente a inconformidade do eu lírico ao ver que sua amada troca o amor verdadeiro que ele destina-lhe, pelas riquezas conseguidas ao vender-se.
Desenvolvimento:
Ao analisar a elegia I. 2, pode-se observar uma grande súplica do eu lírico para sua amada. O poema traz, ainda, a oposição entre a beleza artificial (luxo), que é enganosa e beleza natural (simplicidade) que produz o amor verdadeiro.
Observa-se no nível fônico a aliteração das consoantes M e N. Essa repetição reserva ao poema um tom melancólico, de lamento e de murmuração. Através da aliteração o poema adquire um tom de súplica, evidenciando, assim, o desejo do eu lírico para que sua amada abandone a beleza artificial, e valorize a beleza natural.
A propósito das letras M e N, ainda, tem-se uma outra leitura: o M é consoante da palavra Amor, ou seja, representa sentimento que deve ser privilegiado. Da mesma forma o N é consoante inicial da palavra natural, que é a forma como se pode encontrar o amor, ou seja, sem artifícios. Então, ao utilizar a aliteração o poeta reforça sua tentativa de que amada volte-se para a beleza natural (simplicidade), pois é através dela que o amor permanece vivo.
Quando se considera o léxico do poema percebe-se um grande questionamento (Quid) no primeiro verso. Posteriormente, no sétimo verso, tem-se uma súplica (crede mihi). Tanto o questionamento, quanto à súplica são tentativas do eu lírico em chamar a atenção da amada para o que será dito posteriormente, uma vez que ela insiste em ignorar seus conselhos.
Pode-se observar, também, a presença de anáfora com a palavra Non (versos: 15, 16, 17, 19). Essa figura de linguagem é um recurso que o poeta faz uso para exortar sua musa sobre a maneira com ela tem se portado. Com a repetição ele tenta provar que as mulheres não conquistam o amor com os artifícios da beleza. Pois, para ele de nada valem a brancura falsa e a aristocracia forjada, visto que a importância de uma pessoa está em encontrar alguém que ame.
Ainda observando o léxico do poema, apreende-se que os verbos promovem uma divisão ao logo do texto. Nos versos de um até quatorze muitos verbos estão no presente (est, amat...). Ao utilizar o tempo presente o poeta confere ao poema uma idéia de proximidade de sua amada, esse recurso é utilizado porque é neste momento que ele interroga-na sobre seu gosto exagerado pela beleza artificial (luxo).
Nos versos de quinze até vinte e um os verbos encontram-se no passado. Nesse momento o poeta procura utilizar alguns mitos onde o amor esteve acima do luxo, para provar que os artifícios não produzem Amor. O poeta passa a falar de Febe e Hilaira que casaram com Cástor e Pólux, filhos de Júpiter. Por suas amadas eles lutaram com os filhos de Afareu, Idas e Liceu.
Outro mito apresentado é o de Marfessa, filha de Eveno que conquistou Idas e Apolo. Por amor, Idas rapta Marfessa e fuge. O pai dela persegue-os, como não consegue apanha-los, então fica irado. Apolo tenta rouba-la, Júpiter tem de intervir e conceder a jovem à liberdade de amar quem ela escolhesse. Marfessa escolhe Idas porque tem medo de ser abandonada por Apolo quando envelhecesse.
O poeta também expõe o mito de Hipodâmia, uma jovem de rara beleza que submetia seus pretendentes a corridas de cavalos. Seu pai matava a todos os candidatos, então ela não tinha culpa pelas desgraças que sua beleza causava.
Todos os mitos falam de mulheres que não tiveram a intenção de causar o amor com artifícios, pois nenhuma delas foi vulgar ou falsa. Isso reforça que, no passado, o importante era o amor e nenhuma mulher era dissimulada a ponto de fingir uma afeição para conseguir riquezas.
Nos versos vinte e cinco até vinte e nove (donet, desit...) o poeta retorna ao presente para avigorar que o maior enfeite de uma mulher é o amor de um homem. Ao falar de Vênus, deusa do amor, e de Minerva, deusa da beleza, o poeta quer mostrar à amada que ela é bela e não precisa de riquezas para ser admirável. Com isso, ele pretende provar que está disposto a oferecer-lhe o amor verdadeiro, ou seja, sua amada não precisa agir com artifícios ou falsidades, pois já possui algo genuinamente valioso, que é o amor verdadeiro.
No penúltimo verso aparece um único verbo no futuro (eris), ele representa a condição para a permanência ou para o fim do sentimento do eu lírico por sua amada. O poeta diz que sua dama precisa abandonar a felicidade enganosa, ou seja, as riquezas.
Os substantivos que mais se repetem na extensão do poema são prazer (versos: 1, 3...) e beleza (versos: 5, 10, 16...). Com eles fica destacado que o prazer não vem da beleza artificial (riqueza, luxo), mas vem da beleza natural (simplicidade).
A súplica do eu lírico decorre da necessidade de provar a sua amada que o Amor (verso: 8) não se preocupa com a vaidade, o luxo e a riqueza, visto que é a personificação de Eros, o deus grego do amor. Sendo o amor um ser divino está acima daquilo que as pessoas se preocupam - a vaidade, o luxo e a aristocracia. Ao contrário dos seres humanos, o Amor é nu, uma vez que está além das banalidades mundanas, ou seja, de todo artifício.
Ainda no verso oito tem-se uma metáfora “nudus Amor”, esta, ressalta que o amor é destituído da falsidade e do luxo. Ao lançar mão dessa alegoria o poeta procura provar que o amor dispensa todas as normas e preceitos sociais, por exemplo, o estereótipo de beleza.
Conclusão:
Ao analisar a elegia I.2, de Propércio, transcrita anteriormente, apreende-se que o ideal estético feminino para o poeta vai contra os artifícios, pois a beleza artificial (luxo) produz a infidelidade, a discórdia e o sofrimento.
O estereótipo feminino na época de Propércio era da mulher aristocrata, de pele alva e delicada, aquelas que não eram assim pertenciam a classes de menor prestígio. Propércio diz que sua amada não precisa fingir uma falsa brancura, por isso pode-se concluir que a mulher descrita no poema não é de origem aristocrata: “aspices quos summittat humus formosa colores” (v. 9), “Nec phirygium falso traxit candore maritum” (v. 19).
O poeta diz que sua amada conquista presentes se vendendo de forma ilícita: “teque peregrinis uendere nuberibus” (v. 4) e isso a aproxima de uma meretriz. O eu lírico sente muita dor ao ver que sua amada vende-se e, por isso, ele procura orientá-la para que deixe os seus caprichos de lado e viva o verdadeiro amor.
Segundo Veyne: “Aquelas que não estavam a venda exigiam pagamento do eleito do seu coração, pois o amor merecia salário. Era, portanto, possível em Roma obter como pagamento favores de uma mulher”.(pág. 132). A amada do poeta não recebe um salário, mas presentes, que são fruto de um desejo de garantir sua beleza artificial.
É clara a oposição entre o estereótipo de mulher da época e a dama da elegia, cujo desejo é aproximar-se do ideal de beleza. Para o eu lírico a beleza artificial é algo negativo, pois a verdadeira perfeição é ser natural (simples), ter cheiro de suor e não de mirra, cabelos desalinhados e não enfeitados.
O poeta parece criticar as mulheres que tentam parecer aristocratas. Pois, ao aconselhar sua amada a seguir o que é natural, também está deixando transparecer que a naturalidade é sinônima de virtude e de fidelidade para com o homem. Ao dar esses conselhos ele adverte que a mulher amada não precisa de artifícios: “Illis ampla satis forma pudicitia”.(v. 24).
Nesse período histórico a figura feminina tinha de ser submissa ao homem, pois não possuía “discernimento” do que era adequado. Ao enfatizar seus ensinamentos à amada, o poeta está deixando aflorar que a mulher deveria ser submissa ao homem. Contudo, sua amada é teimosa e contraria os seus ensinamentos e, isso lhe traz uma profunda tristeza.
O comportamento da amada é de contrariedade frente à autoridade do homem ou ainda, frente aos aconselhamentos do poeta. Dessa forma, a única saída para ele é suplicar a sua dama na tentativa de ser ouvido.
Percebe-se que o poeta vive pelo amor, ou ainda, de seus sentimentos por essa mulher que não lhe ouve, pois no primeiro verso chama-na de “uita” - minha vida. Os sentimentos do poeta estão voltados para um ser divino, ou seja, para o próprio Amor. Assim, ele julga necessário que essa mulher se aproxime do ser sublime, que só existe enquanto beleza natural (simplicidade), pois o elemento feminino, que busca a beleza artificial (luxo) só é capaz de causar sentimentos negativos.
Por tudo isso, arrisca-se dizer que esta forma de ver a mulher perdura por vários anos e continua em nosso meio. Ou o elemento feminino liga-se a imagem da beleza natural, ou seja, de uma deusa, um ser puro, figura de mãe e de esposa ou liga-se à imagem da beleza artificial, que encerra em si a idéia de ambição, mulher fatal que acorda todos os desejos da carne. O poeta exorta sua amada para que esta se volte para a beleza natural, pois somente na simplicidade ocorre o crescimento do Amor, visto que o luxo leva à morte do Amor.
Devido a toda crítica do poeta ao luxo, ousamos expor, com forma de fecho deste trabalho, um poema concretista que expressar muito do que o autor quer apregoar à sua amada, ou seja, que o luxo não tem valor que ela acredita ter:
Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo
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