Ensaio Sobre a Cegueira e seus intertextos

O presente trabalho objetiva uma análise da obra Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Nesse livro o autor escreve quase em ritmo e registro de ficção científica. Essa característica do autor acaba por acrescentar a arte portuguesa uma dimensão singular, ou seja, a arte de questionar, cuja presença toma conta de suas obras. Dessa forma, o romance saramaguiano, em muitos momentos, acaba transformando-se numa grande interrogação “sobre o mundo como ele é e como deveria ser”.

Ainda sobre o estilo saramaguiano Massaud Moisés diz:

“Saramago escreve num estilo que preserva, ou mesmo intensifica, a oralidade dos romances, graciosa instantaneidade requerida pela anotação de eventos cotidianos (...). É sabido que os ficcionistas, sobretudo os prolíferos, sempre dão a impressão de estar redigindo um diário enquanto fantasiam e constroem o enredo das suas narrativas. Ou, ao menos, de pensar no registro do seu dia-a-dia de modo a recolher o vaivém da sorte e a matéria que não cabe nas suas histórias ou ainda não sofreu o caldeamento imaginário para converter-se em obra literária. Se muitos escritores férteis se contentam com a transfiguração do seu viver cotidiano, aproveitando dele aquilo que mais lhes serve como fonte de inspiração, outros há cuja experiência diária, variada e múltipla, extravasa a ponto de requerer um espaço próprio. É o caso de José Saramago”.

Em setembro de 1991, depois de um descolamento de retina o autor vem a escrever Ensaio Sobre a Cegueira, texto por mim analisado nas páginas seguintes. A publicação da obra ocorre em 1995, esta, segundo o autor, juntamente com A Caverna e Todos os Nomes formam uma espécie de "trilogia involuntária", porquanto Saramago não tinha total idéia de que as faria em seqüência.

A visita ao passado ou ao futuro, que o romance histórico antecedente consentiu, nessa obra dá lugar a uma reflexão sobre o homem ou, como diz Maria Alzira Seixo, "sobre a identidade humana e sobre a natureza concreta do espaço que a institui".

Resumo da obra.

Tendo em vista que se pretende analisar a obra Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, passa-se a faze um breve resumo da obra:

Procure imaginar se de repente você cegasse! Qual seria a sua reação? Pois é o que acontece já nas primeiras páginas da obra de Saramago, o mundo está na sua mais “perfeita ordem” quando repentinamente percebemos um grito desesperado “estou cego”. Este é o primeiro caso de cegueira.

Em pouco tempo a cidade vai sendo invadida pela epidemia, que, ao contrario do normal, não se dá pela visão de uma imensa escuridão, mas é branca como um “mar de leite”.

Ao longo da leitura percebe-se que o autor não dá nome a cidade. Nem as suas personagens, apenas chama-as de médico, mulher do médico, menino estrábico, rapariga dos óculos escuros, velho da venda preta e cão das lágrimas. São essas asprincipais personagens e as que viverão sob o olhar da única pessoa que não sofre do mal branco - a mulher do médico.

À medida que as pessoas passam a sofrer da cegueira são jogadas num manicômio, onde devem ficar de quarentena. O governo institui regras de convívio e higiene, mas aos poucos a situação fica incontrolável, então todos passam a viver em condições sub humanas e passam a revelar seus instintos mais selvagens na luta pela sobrevivência.

Nesse isolamento a única comunicação com o exterior é o rádio de pilhas do velho de venda preta. Através desse personagem caos do mundo é anunciado para as outras personagens e para o próprio leitor.

Como a situação no manicômio é precária os cegos terminam fugindo e tomam conta da cidade. Agora livres, os cegos da primeira camarata - o médico, o menino estrábico, a rapariga dos óculos escuros, o velho de venda preta, o primeiro cego e sua mulher - têm a proteção da mulher do médico.

No romance Memorial do Convento a personagem Blimunda faz lembrar a mulher do médico. Blimunda vê as pessoas por dentro o que lhe causava muita dor. Assim como ela, a mulher do médico é a única aa ver o que os outros não podem. Somente ela pode observar as descrições horríveis desse mundo de cegos com, por exemplo, quando um cadáver humano é devorado por cães. A mulher do médico, assim como Blimunda, não sabe se a visão constitui uma bênção ou uma maldição.

Ao final do livro todos voltam a ver. Deste modo, o autor deixa-nos uma dúvida - será que as pessoas estavam cegas ou não queriam ver? Resta nos esse questionamento e, ao mesmo tempo, o desejo de desvendar o mistério da cegueira branca.

Desenvolvimento

Esse trabalho tem por objetivo analisar a obra acima apresenta. Para tal, serão privilegiadas algumas categorias da narrativa tais como personagens e espaço. Além disso, ao longo deste ensaio tentarei mostrar marcas de intertextualidade dessa cegueira branca com alguns textos bíblicos. Tudo isso para provar que o autor não está falando de uma cegueira qualquer, mas utiliza essa expressão como uma metáfora, cujo significando é a necessidade do ser humano de abandonar sua natureza de maldade.

Já no título dado ao livro (Ensaio sobre a Cegueira) apreende-se muito do que será falado ao longo da obra. A palavra “ensaio” remete a algum tipo de teorização ou dissertação sobre um determinado assunto, neste caso uma cegueira, não como estamos acostumados, mas é uma cegueira necessária para toda humanidade.

Algo bastante surpreendente neste romance é a ausência de marcas temporais e de delimitação do momento histórico no qual se possa inserir esse universo criado pelo autor. A única marca que se pode observar é de contemporaneidade, uma vez que há presença de automóveis, trânsito e semáforo. Como se observa já na primeira página:

“O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos iguais”. (pg. 11)

Essa falta de referências de tempo e espaço confere a narrativa um caráter atemporal. Permitindo, assim, com que os fatos descritos na obra possam ser inseridos em qualquer ambiente do mundo. Ou seja, essa cegueira pode ser uma epidemia de qualquer cidade, por isso a obra apresenta um caráter universal e ao mesmo tempo reflexivo. A ausência de marcas temporais e espaciais dá-nos a idéia de que a obra objetiva tratar de uma situação da humanidade em geral, metaforicamente chamada de cegueira: “A mulher do médico disse ao marido, O mundo está todo aqui dentro”.(pg 102)

Sendo a Bíblia um livro que fala da humanidade, de coisas que podem confortá-la e, ao mesmo tempo, orientá-la, percebe-se um primeiro intertexto bíblico evocado pela voz do próprio narrador:

“A mulher do médico tinha perguntado, Que se terá passado como os bancos (...), fez a pergunta pela simples curiosidade, apenas por que pensou, nada mais, nem esperava que lhe respondessem, por exemplo, assim, No principio, Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas (...)”. (pg 253)

Nesse texto o narrador faz uma alusão aos versículos de Gênesis 1.1-2:

“No começo Deus criou o céu e a terra. Não havia ordem nem vida na terra, que era toda coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus de movia por cima das águas”.

A palavra Gênesis quer dizer “começo”. É um livro que conta como tudo que existe começou, e como surgiram os seres humanos, o pecado e o sofrimento. Sem dúvidas não foi à toa que o autor colocou esse texto na obra, pois ele nos remete ao principio de toda humanidade. O mundo estava na sua perfeita ordem e Deus estava no mundo, mas aos poucos a maldade humana toma conta e isso provoca o afastamento de Deus.

Na obra de Saramago, a cegueira trás essa mesma idéia apresentada no livro de Gênesis, ou seja, de começo. Um reinício necessário, pois a maldade humana extrapolou seus limites. A cegueira deve servir para que o ser humano re-avalie seu valores perdidos. Essa epidemia quer ser uma forma de transformar a ambição humana.

Quando se atenta para as personagens principais do romance, ou seja, os cegos da primeira camarata - médico, mulher do médico, rapazinho estrábico, rapariga dos óculos escuros, velho de venda preta e cão das lágrimas - percebe-se que nenhum deles tem nome reforçando a idéia de uma cegueira de toda a humanidade. Além disso, o anonimato das personagens remete-nos ao fato dessa cegueira branca ser uma redescoberta, onde os personagens precisam seguir uma trajetória na tentativa de encontrar o seu caminho e seus valores.

É importante perceber que personagens embora cegos temem a revelação de suas identidades:

“A mulher do médico disse consigo mesma, Comportam -se como se temessem dar-se a conhecer um ao outro. Via-os crispados, tensos, de pescoço estendido como se farejassem algo”. (pg. 49)

Na verdade todo esse medo ocorre por que a cegueira provocou uma revisão dos valores mais íntimos de cada indivíduos. Por isso, cada uma dessas pessoas tem um profundo medo de que os outros também possam estar vendo seu interior.

Assim como são destituídos de nomes ou identidades aos poucos todos começam a perder suas noções de sociedade e passam a ter atitudes irracionais:

“Não eram porcos, só um homem cego e uma mulher cega que provavelmente nunca saberiam um do outro mais do que isto”.(pg.98)

Devemos atentar, ainda, para o fato de todos estarem cegos, exceto a mulher do médico. Essa condição é considerada por ela uma maldição

“(...) uma matilha de cães devorava um homem. (...) A mulher do médico desviou os lhos, mas era tarde demais, o vômito subiu-lhe duas vezes, três vezes, como se o próprio corpo ainda vivo estivesse a ser sacudido”. (pg 251)

A pergunta que surge é porque a mulher do médico não precisou passar pela cegueira? Nesse ponto podemos ver um outro intertexto com a Bíblia, onde essa mulher se assemelha a Moisés, cuja responsabilidade foi livrar o povo de Israel da escravidão egípcia:

“Eu os levarei para a terra que jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó. E eu darei essa terra para se propriedade de vocês”.(Ex. 6.8)

A mulher do médico foi a responsável por conduzir os cegos da primeira camarata até a casa do médico, onde encontraram um lugar perfeito, limpo e agradável diferente daquele que havia na cidade. A chegada do grupo à casa do oftalmologista, foi como a perambulação do povo de Israel pelo deserto, onde estes passaram fome, frio e medo.

Da libertação do povo de Israel até sua chegada a Canaã, a terra prometida, eles fica vagando pelo deserto por quarenta anos. Esse é um período de aprendizagem, onde sofrem muito e, por vezes, chegam a duvidar de que Moisés saiba para onde os levará.

“O povo de Israel saiu de Elim e foi para o deserto de Sim. Ali no deserto, todos eles começaram a reclamar contra Moisés e Arão” (...) (Ex 16 1-2).

Assim como Moisés, a mulher do médico é quem guia os cegos da primeira camarata durante o período de quarentena (quarenta dias) e posteriormente pela cidade:

“A mulher do médico voltou para junto dos seus (...), Vamos disse, encontrei um abrigo e conduziu-os à loja donde os outros tinham saído”. (pg 217)

As pessoas que estão cegas, no romance, constituem uma terceira intertextualidade, encontrada no livro de Atos 22.6:

“De repente uma forte luz brilhou em volta de mim, então caiu no chão (...) aquela luz brilhante me deixou cego”.

O texto bíblico acima fala da cegueira pela qual Saulo passou. Essa ceguidade foi necessária para que Saulo pudesse “ver” os caminho de Deus para ele. Depois desse fato Saulo deixa suas ambições e maldades, então passa por mudança muito grande tornando-se Paulo, um dos maiores pregadores da palavra de Deus. Assim como Paulo, as pessoas que sofreram do “mal branco” precisaram cegar para ver-se por dentro, ou seja, para deixar suas maldades e passar a ter uma vida nova.

As pessoas foram tomadas pela cegueira porque estavam sujas, não somente no corpo, mas na alma, encontravam-se cobertas pela iniqüidade. A condição para transformare-se foi o sofrimento que levou a uma completa alteração de valores, tal como lemos em Mateus 23.4: “Fariseu cego lave primeiro seu corpo por dentro e então a parte de fora ficará limpa também”.

Em Lamentações também se observa uma alusão à cegueira com conseqüência da maldade e da falta de valores:

“Tudo isso aconteceu por causa dos pecados e maldades (...). Andavam pelas ruas como cegos tão sujos de sangue, que ninguém tocava nas roupas deles”.

Nesse texto as pessoas são chamadas de cegas devido as suas maldades. Na obra Ensaio Sobre a Cegueira as pessoas estão cegas também por causa de sua sujeira moral.

Desde o início do romance percebe-se a caminhada sofrida para o manicômio devido à cegueira. No isolamento do hospício as pessoas modificam suas relações sociais.

Quando ficam livres do manicômio os cegos passam por uma nova peregrinação agora feita pela cidade. Eles buscam alimento e abrigo sempre orientados pelo olhar da mulher do médico. Nessa caminhada pela cidade eles presenciam (não pela visão) a podridão que o mundo se tornou, isso os torna sensíveis . Quanto, enfim, chegam à casa do médico ela está intacta:

“Foi, portanto uma espécie de paraíso que chegaram os sete peregrinos, e tão forte foi esta impressão, a que, sem demasia ofensa do rigor do termo”. (pg 257)

Quando os afetados pelo “mal branco” chegam à casa do médico parece-me que tem fim o caminho necessário para que voltem a ver, pois nesse ponto já deixaram seus velhos valores de lado e estão prontos para uma vida nova. No paraíso, que se opunha ao inferno da cidade, lamparina de azeite causa-lhes uma transformação:

“(...) foi à cozinha sabia onde tinha guardado o azeite, não precisava muito, rasgou de um pano de secar a louça uma tira para fazer de torcida, depois voltou à sala, onde a candeia estava, ai ser útil pela primeira vez desde que a fabricaram, ao principio não parecia ser este o destino, mas nenhum de nós, candeias, cães ou humanos, sabe, ao princípio, tudo para que tinha vindo ao mundo”.(pg 260)

É também neste paraíso que se dá à expurgação das mulheres, pela força da água que cai do céu (pp. 266-267) Em Gênesis, Deus dá origem primeiramente à luz, depois ao firmamento "que separa as águas das águas" e ocorre a separação da terra e dos mares (Gênesis1. 1-9). No banho as três mulheres se purificam – num momento do qual Deus é excluído: “Nem mesmo Ele, o céu está tapado, só eu posso ver-vos" (p. 267). Este parece ser o momento aonde a visão começa a voltar, pois esta cena quer representar o fim da peregrinação do povo, cujo ponto culminante é a purificação dos seus interiores. Todos já cumpriram seu caminho e estão prontos para constituir valores diferentes dos que possuíam antes.

Conclusão

Saramago diz assim, no terceiro volume de Cadernos de Lanzarote, sobre seu modo de percebe a intertextualidade:

“Todo o discurso, escrito ou falado, é intertextual, e apeteceria mesmo dizer que nada existe que não o seja. Ora, sendo isto, creio, uma evidência do quotidiano, o que ando a fazer nos meus romances é procurar os modos e as formas de tornar essa intertextualidade geral literariamente produtiva, se me posso exprimir assim, usá-la como uma personagem mais, encarregada de estabelecer e mostrar nexos, relações, associações entre tudo e tudo “.

Levando em conta as palavras do próprio autor de Ensaio Sobre a Cegueira arrisco-me a dizer que a obra constituiu um mundo de universos intertextuais. Um dos textos que dialoga com este escrito é a Bíblia vislumbrada por mim neste breve ensaio.

Já na epigrafe do livro “Se podes olhar, vê, se podes ver repara” podemos perceber que a cegueira desses personagens foi uma odisséia na busca pela visão, por mim entendida como uma revisão da essência moral de cada indivíduo. Todos vivemos sob máscaras que só serão lançadas fora quando conseguirmos rever nossos valores.

A obra de Saramago procura mostrar que o homem precisa evoluir e transformar-se. Carecemos desconstruir para construir uma nova identidade, como Saulo que se tornou Paulo. Atualmente muitos de nós perdemos nossos valores essências, não sabemos mais distinguir o bem do mal o certo do errado Esse texto quer que pensemos até que ponto nós temos vivido conformados e acomodados com nossa cegueira moral. Precisamos, nós, olhar-nos por dentro?

Em Ensaio sobre a cegueira torna-se difícil desligar os intertextos presentes, mas não podemos deixar de vê-lo como uma recriação sempre possível, quando se descobre a vida como lugar de encontro com o outro. Um encontro que só é verdadeiro quando o homem que deixou de respeitar a si mesmo descobre o amor como características genuinamente humanas.

nádia flores
Enviado por nádia flores em 19/03/2009
Reeditado em 05/06/2009
Código do texto: T1494283