"Nascimento da Tragédia" (Nietzsche)

Algumas Considerações Sobre

" NASCIMENTO DA TRAGÉDIA”

(F. NIETZSCHE)

Carlos Frazão

1.A filosofia de Nietzsche ergue-se, nas suas pretensões mais profundas, como uma filosofia dos contrários e sobre os contrários.

- A obra de Nietzsche é, antes de mais, uma obra profundamente crítica, em relação quer ao plano teórico quer ao plano moral, ou seja, uma crítica dos valores, do ideal e da verdade. Propõe um pensamento antimoral, um pensamento artístico, enquanto reconhecimento de que não é desvendamento do que é (real), mas criação permanente, melhor, re-criação conforme a própria criatividade da vida. Pensamento que é também crítica do saber, na qual a ciência é examinada à luz da arte. E é, aliás, neste terreno do saber, que ele enuncia os grandes temas da sua obra: Vontade de Poder, Eterno Retorno, Niilismo, Super-Homem. O pensamento não é um exercício de teorização, diríamos de uma teorização obsessiva, como o que caracteriza a filosofia ocidental, mas uma atitude, um Patos, uma experiência, um estado que subentende emoção, sofrimento. O que está em causa é uma dimensão de outra ordem, a existencial. Patos e pensamento são indissociáveis.

- Nietzsche integra na filosofia dois meios de expressão: o aforismo e o poema. Estas formas não são opções arbitrárias, mas reflectem uma concepção nova da filosofia, uma perspectiva inovadora do pensador e do pensamento. “ Ao ideal do conhecimento, à descoberta do verdadeiro, Nietzsche substitui a interpretação e a avaliação. Uma fixa o sentido, sempre parcial e fragmentário, de um fenómeno; a outra determina o valor hierárquico dos sentidos e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem suprimir a sua pluralidade. O aforismo, precisamente, é ao mesmo tempo a arte de interpretar e a coisa a interpretar; o poema é ao mesmo tempo a arte de avaliar e a coisa a avaliar. O intérprete é o fisiólogo ou o médico, aquele que considera os fenómenos como sintomas e fala por aforismo. O avaliador é o artista, que considera e cria perspectivas, que fala pelo poema. O filósofo do futuro é artista e médico – numa palavra, legislador” (G. Deleuze)

- Este estilo, esta postura de filósofo, decorre de uma visão crítica, poderosa e original da filosofia tradicional e da humanidade. Também da humanidade, necessariamente. O pensamento do filósofo alemão é indeterminado, indeterminável em estreitas linhas condicionadores de uma legibilidade que se queira apreender facilmente. Para Nietzsche o real é plurívoco, inesgotavelmente aberto e criativo. É por esta razão que a linguagem unívoca da ciência e da lógica, dos seus conceitos e categorias intelectuais, não é conveniente para descrever a exuberância da realidade; apenas uma linguagem metafórica, mais conotativa que denotativa, exigindo a interpretação criativa, é capaz de exprimir a multiplicidade do mundo. De facto, a linguagem é primitiva e profundamente metafórica. Os conceitos não são mais que antigas metáforas, usadas, gastas e mortas. É por ser metáfora e analogia que a linguagem pode introduzir unidade no caos dos fenómenos, reunindo o diverso, ordenando o interminável fluir do todo. A analogia permite aproximar e reagrupar as coisas que não são idênticas. Estabilizados, estes reagrupamentos tornam-se categorias, conceitos ou essências. O erro consiste em tomar estas conceptualizações como verdade e realidade, quando não passam de interpretações no seio de uma diversidade de leituras analógicas possíveis. E se esta sintomatologia revela o quadro cromático da linguagem, então a metalinguagem, a crítica, seguirá o mesmo caminho. Eis os textos aforísticos como prova maior dessa intenção.

- Para o verdadeiro poeta, a metáfora é uma imagem substitutiva que lhe entra no espírito, em vez do conceito; os conceitos são generalizações, abstracções a que escapa a pluralidade do real.

- O saber acerca da essência das coisas é impossível. Não existe real em si, nem verdade absoluta, nem um sentido único e fundamental que esgotaria os significados múltiplos do ser. O que se identifica como real, realidade, verdade, depende da perspectiva escolhida. Ao abordarmos o real colocamo-nos sempre segundo um determinado ponto de vista, uma determinada perspectiva, perspectiva que vai condicionar a nossa visão sobre esse real que se quer apreender (apropriar). - Não há possibilidade de escapar a este perspectivismo, ou seja, não há nenhuma possibilidade de captar o real em si mesmo. Como a escolha do posicionamento depende dos valores – interesses, objectivos – privilegiados pelo sujeito que interpreta, toda a dimensão apropriativa – toda a leitura do que é o real – é axiológica, orientada pelos valores, fundacionada nos valores. Nenhuma perspectiva, repita-se, é puramente lógica, isto é, neutra, objectiva, absoluta, independente da valorização subjectiva. Há uma distância intransponível entre os instrumentos que o sujeito possui para conhecer e o ser das coisas ou a sua identidade. Talvez se possa até dizer que o ser é a sua perspectiva. Sim, deve-se dizer.

- A verdade é valorizada porque ela é útil para a sociedade e não porque corresponda ao conhecimento das coisas. A linguagem como instrumento privilegiado do conhecimento é essencialmente uma estrutura de dissimulação/apropriação e não uma espécie de espelho da realidade.

- A ciência (gaia ciência) alimenta a pretensão ilusória de escapar ao perspectivismo, produzindo, na sua imaginação totalizante, uma descrição adequada, verdadeira – como um espelho – do real (o tal espelho, a tal ilusão espelhar de que fala Rorty). Ela está associada à lógica, que visa assinalar identidades absolutamente estáveis, não afectadas pelo incessante e caótico devir dos fenómenos, que aparecem e desaparecem ou se modificam sem cessar. É uma ilusão repetível, ilusão no cerne do seu próprio perspectivismo incontornável.

- Contudo, é importante referi-lo, Nietzsche assume uma posição ambivalente relativamente à ciência da sua época. Reconhece, por um lado, que esta modalidade de conhecimento permite liberdade de interpelação e problematização, recusa de preconceitos e dogmas, interesse efectivo pelas questões concretas que afectam o mundo. Mas, por outro lado, censura a ciência pela sua pretensão ontoteleoteológica de uma Saber Absoluto, Verdadeiro e Definitivo, incapaz de reconhecer que todo o conhecimento é um processo de “fazer mundos”, utilizando a expressão de L. Goodman. Por isso, a arte é superior à ciência e esta deve fazer do homem um artista, num sentido inaudito.

- A arte não é da ordem da verdade, mas da criação. O que prevaleceu na cultura Oc. não foi o querer, o sim afirmativo da criação autêntica, mas a obsessão pelo saber, não foi o instinto mas a busca permanente pela racionalização, não foram as forças da vida mas as forças da morte com todos os seus substitutos (Deus, moral, religião, razão…), não foi a alegria mas o sofrimento, não foi a força mas a fraqueza. O que imperou e atravessou esta cultura foi o reinado das verdades ilusórias. O que é preciso é regressar ao sentido profundo da vida, à sua manifestação sem apreciações morais, regressar aos instintos últimos que actuam pelo fluido cósmico da vida. A arte e a verdade são inconciliáveis, esta é do domínio do passado com os seus ídolos (Deus, Razão, Moral…), a arte é de outro domínio, o do futuro. “O Nascimento da Tragédia professa a fé na arte, sob o fundo de uma outra crença: a saber, que não é possível viver com a verdade; que a vontade de verdade é já um sintoma de degenerescência”. (Nietzsche)

2- Uma das antíteses mais significativas é a do: Apolíneo versus Dionisíaco.

Da fusão das duas forças, procede a tragédia ática. Este é o tema de “O Nascimento da Tragédia”.

- É nesta obra que Nietzsche exprime a antinomia entre a razão e a vida. Apolo, Diónisos e Sócrates

- Apolo e Diónisos são duas forças primordiais, particularmente actuantes na cultura grega clássica. E o seu significado não é apenas cultural, é mais profundo, revela-se como algo que atinge aquilo que a própria realidade é.

- A obra de Nietzsche desenvolve-se em torno do conceito de arte, sendo esta produto de dois espíritos, o apolíneo e o dionisíaco.

- Forças opostas, contraditórias – mas, simultaneamente, surgem como pólos complementares da criação estética. O dionisíaco deve poder manifestar-se apolineamente.

- O espírito dionisíaco e o espírito apolíneo apresentam-se como vontades que emergem da natureza – essência dionisíaca e aparência apolínea. “ O génio apolíneo e o seu contrário, o génio dionisíaco, surgem como forças artísticas que brotam do seio da própria natureza, sem mediação do artista humano, e na presença das quais as pulsões artísticas da natureza encontram imediata e directamente a sua satisfação: por um lado, sob a forma de um mundo imaginal do sonho, cuja perfeição não depende de modo algum do nível intelectual ou da formação artística do indivíduo; e, por outro lado, sob a forma de uma realidade cheia de embriaguês que não leva em conta o indivíduo e, pelo contrário, procura até o seu apagamento, envolvendo-o num sentimento místico de unidade”.(N)

APOLO: é o deus da forma plástica, simboliza a luminosidade do ser, é o deus da aparência, da ilusão, exprime-se na individualidade das figuras bem delimitadas. Do espírito apolíneo provêm as artes plásticas. Imagem da racionalidade, orientada seja para os valores da verdade seja para o que se veio a qualificar de princípios morais. Apolo como deus da forma, da individuação, da calma sabedoria; a ilusão apolínea oculta a verdadeira natureza do homem e do mundo, sob o véu de Maya.

DIÓNISOS: representa a dissolução da individualidade, a desmesura e a superabundância. Representa o deus do prazer, é a energia universal, o ser nas suas profundezas, ao mesmo tempo violento e escondido. Do dionisíaco procede a “arte sem formas ou musical”. Irrompe sempre como uma consciência do seu contrário apolíneo, interpretando este como acontecimento de superfície, até mesmo como aquilo que nunca se liberta totalmente da categoria do convencional.

- A evolução da arte resulta do duplo carácter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco. Estes devem ser pensados como tendências ou impulsos artísticos antitéticos. A natureza de qualquer arte, em qualquer época, varia conforme o impulso ou tendência que é operativo. A arte, segundo Nietzsche, nasce de um impulso constitutivo da natureza e não do indivíduo. Os espíritos apolíneo e dionisíaco correspondem a forças artísticas que, como já o dissemos, brotam no seio da própria natureza. A diferença entre esses impulsos determina a variedade das espécies artísticas, divididas em três grandes grupos: as artes plásticas (género puramente formal), a música (sem forma) e a tragédia (arte superior por fundir os dois princípios). As modificações históricas sofridas pelos diferentes géneros decorrem igualmente do modo como os dos espíritos se manifestam. Só a interferência de um terceiro processo, o socrático, com o seu optimismo racionalista, provocará a morte da tragédia, cujo nascimento e renascimento constituem o eixo das preocupações nietzscheanas nesta obra.

-Um dos argumentos mais pertinentes exposto na obra de Nietzsche desdobra-se em alguns pontos essenciais:

I) A nossa cultura moderna foi dominada por uma espécie de socratismo estético, cuja matriz reside nas tragédias de Eurípedes;

II) A tensão entre os dois princípios contrários e vitais foi obliterada com o triunfo do racionalismo elaborado pela filosofia intelectualista de Sócrates e pelas novas concepções de Eurípedes.

III) Triunfou uma forma estética inadequada que visa tornar objectivo o que é da ordem do irrepresentável, pretende-se racionalizar uma ordem que se move por princípios que não são apreensíveis segundo as categorias da interpelação teórica do real. “Sócrates estabelece o cânone do pensar correcto que busca a verdade segundo as regras da lógica. Eurípedes é, no essencial, um artista socrático e nas suas tragédias o apolíneo já não consegue ser mediação, exibição simbólica do dionisíaco”. Eurípedes introduziu as modificações necessárias para operar a mudança para o cânone da inteligibilidade, modificações a nível da linguagem, dos caracteres, da estrutura dramática, da música do coro. A oposição inequívoca Ésquilo-Eurípedes é desenvolvida por Nietzsche como essencial para sublinhar que:

“Não é a estrutura euripidiana, que incorpora elementos da lógica e do racionalismo socráticos, que o mito trágico exprime o verdadeiro ser”. Este encontra a sua autenticidade nas tragédias de Esquilo, onde a forma trágica resulta do desenvolvimento directo do coro e do ditirambo ou da poesia e música populares. Essa forma já é o meio adequado para a representação da ordem primordial, atitude que o conceito e a argumentação lógica (socratismo) irão anular.

- A outra linguagem, a alternativa radical à linguagem conceptual, encontra-a Nietzsche na música, pelo menos num determinado tipo de música. Daí que a mais original tragédia grega tenha a sua origem na música que Nietzsche agora vê actualizável na ópera wagneriana”. O núcleo destas teses apenas se pode compreender considerando a defesa de um pressuposto marcadamente Kantiano: “ o sujeito, seja ele entendido como sujeito cognoscente seja como sujeito estético, está limitado ao mundo fenoménico, assim como o artista apolíneo possui efectivamente essa limitação. Este apenas compreende aquilo que ele próprio produz, segundo as suas características racionais. Também nas formas trágicas da estética dionisíaca, o Uno Primordial nunca pertence à verdade, ou seja, nunca é objecto de um conhecimento verdadeiro”.

3- Considerações breves ao modo de ditirambo, antes de terminar com uma referência à música e ao riso.

- A música parece encerrar em si algo que pode escapar à tentativa conceptual de estabelecer uma lógica limitadora do inaudito. Contudo, a tragédia perdeu-se. Talvez Nietzsche, mesmo assim, tivesse pensado que não era uma perda fatal, haveria ainda um futuro para o riso. “E vós, meus irmãos, também acreditais na lei do fluxo e do refluxo? Também nós teremos a nossa hora” (N)