A verdade e sua malversação.

Desde que fora descrito o mito da caverna, especula-se sobre o temor do homem. Decerto não serão as sombras que o projetam, fiel escudeiro do instinto de auto preservação; o que mais se aproxima deste temor atávico é a capacidade humana de fabular e criar.

Assim uma justificada convenção, que não será nunca confrontada, ou quando muito superada pela necessidade de uma nova ordem, disfarçará o nosso medo e a nossa ignorância.

A compreensão da natureza, seus fenômenos sempre representou uma proximidade com as teorias e ensaios sobre a origem das coisas. Ainda que não haja consenso, seja no aspecto científico, ou teológico, a realidade flutua num mar de convenções. Sempre rasas e voltadas para os homens mais simples; interessadas, de fato, num novo artifício à nossa real condição de perplexidade diante dos fenômenos.

Desta forma, para tudo que não conhece a humanidade criou uma convenção, um mito, que envolvesse numa certa fantasia ou alguma fantástica alegoria, até que os homens de ciência desenvolvessem qualquer tese que ratificasse aquele mito, aquela crença; onde uma poeira fina de vago conhecimento, um arremedo de ciência a serviço da submissão do mais fraco pelo mais forte.

A nossa natureza se constituí do que admitimos pacificamente e ao que rejeitamos categoricamente. Em meio a esses extremos está à perseverança e uma vocação particular para, em determinado momento, confrontar com valores que não resistiram ao desgaste com seus conflitos.

Apesar de em determinados temas sermos ainda escravos de um temor e nos situarmos sob frágeis teorias que mais parecem fabulações, continuamos subordinados aos nossos medos, temendo sombras e inseguros dos nossos mecanismos de investigação.

Para quê serve?

Para quem serve?

Necessitamos de explicações que acomodem nosso senso crítico, que justifiquem nossos posicionamentos e nos absolva dos diversos conflitos efêmeros, que pontuam a dinâmica dos juízos.

Criamos conceitos que se perpetuaram para além de sua própria transitoriedade. Existe, ainda, o vício de não deixar quaisquer ponderações sem respostas, a despeito do real valor deste processo, e da qualidade das respostas obtidas.

Diante desta implacável relação com o próprio senso e a limitação em obter a satisfação plena de suas incertezas, resta o expediente da criação dos juízos provisórios; ou seja, o que é sem explicação, plausível ou razoável, não deverá ser contestado, ao menos sem argumentos consistentes; deveria ser assim.

Então encontramos e necessitamos da perversão da verdade. Esta tentativa anacrônica de recriar um espaço/tempo superado, de trazer para algum ponto de um evento, um espectador ao qual não fora possível a condição plena de ator, ao menos a condição de testemunha do fato em questão.

Geralmente o expediente de se evocar a verdade está na fragilidade e necessidade de justificar ou mesmo esclarecer o fatual, quando este se mostra, invariavelmente, inverossímil ou não assimila pacificamente as conexões em torno de um determinado evento.

A verdade, como convenção, não admite nenhum tipo de confrontação, ela pode ser amoral, imoral, sensata, insensata; a ela comporta todo tipo de definição, desde que se disponha a dar substancia a uma abordagem racional/artificial de determinado evento. Embora não haja qualquer componente racional na verdade, esta se comporta como obedecesse a uma seqüência em que a racionalidade fosse um dos seus principais caracteres.

O que parece ser a seara da verdade seja o incomum, o incoerente; o que confronta de forma radical a ordem instituída e carece de certa, ponderação, até que possa ser superada pela relação cotidiana da repetição dos eventos, ao ponto de transformar o extraordinário em ordinário.

A verdade necessita de certa contundência para adquirir a sua legitimidade, de modo a aplacar a sede de coerência, mesmo que traga mais contradição que o fatual pareça comportar.

Se interpretarmos esta contundência como uma relativa ruptura do ordinário; a verdade terá servido como uma tentativa de justificar uma resposta ao extraordinário, e assim, uma assimilação ao que a relação entre os homens não deveria acatar, a não ser sob determinadas ponderações.

Quais ponderações seriam estas?

Toda uma série de justificativas racionais anteriores ao ato, que o tornaria racionalmente justificável e assim, aceitável. Que seria senão a motivação de um crime; ou então ponderação sobre a culpa?

A auto censura não seria um componente do indivíduo, mas um agente coercitivo da verdade com origem no seio da sociedade; que o binômio aceitação-rejeição e a relação interpessoal validaram.

Talvez a idéia da verdade derive de uma ordenação do fatual, mas o arbítrio e os limites que as relações conseguiram negociar tornaram a verdade uma instituição maior que o evento fatual pode determinar.

A verdade trouxe uma consideração moral que não se encontra no ato, mas na vontade do senso comum em determinar o quanto de contradição e conflito o homem social, e não o indivíduo seja capaz de comportar.

Uma vez que a aceitação e a assimilação conferem uma sensação de segurança e referencia, não é difícil imaginar a quantidade de pessoas que aceitam sem questionamento algum o conforto de proposições em troca de menos conflitos e menos confrontos.

Desta forma, seria a corrupção numa situação hostil onde o indivíduo tem somente sua própria dimensão para enfrentar seus conflitos. A comunhão de valores e a convergência de comportamento criarão uma idéia de confraria e esta abstração que é a coletividade irão se impor para oprimir e transformar o indivíduo em refém de uma imagem do homem convencional, que a sociedade projeta para além do homem real.

Entre todas as convenções é a verdade que mais escraviza, mais submete o indivíduo a exposição e ao confronto com a razão dos próprios atos.

Cada indivíduo se encontra preso a sua percepção e a sua própria consciência, mas o juízo que se aplicará a este indivíduo vem de um mundo exterior, que ora lhe é estranho e ora é familiar; que ora o acolhe e ora o repele.

Que noção racional ou irracional justificaria o ato do suicida?

De onde virão às pressões para as explicações dos atos que nos compelimos a justificar?

O homem em sua trajetória, mais se deixa conduzir que de fato conduz os eventos; apesar desta perversa fantasia, um aspecto etnocêntrico criou a necessidade de um aparato vulgar e incrível, uma cosmogonia que vai se tornando cada vez mais fantástica e inverossímil à medida que cada novo item se faz necessário para ratificar essa realidade de frágeis convenções.

A verdade, como qualquer convenção, precisa de uma oposição para se tornar real, ganhar vida, e a essa oposição que, poderíamos muito bem chamar de irreal ou fantasia; chamamos de mentira, e só por esta terminologia já ganhou má fama e caráter depreciativo, que realmente é o que melhor revela a oposição ao conceito de verdade.

A mentira até em determinados aspectos, consegue obter alguma condescendência pela prevalência da mentira como elemento de legítima defesa. Diferentemente da verdade, a mentira confere um caráter particular e tópico ao seu uso e ao mentiroso contumaz um espectro de descrédito.

A sociedade aceita uma mentira que pretenda evitar um sofrimento maior, uma mentira culposa, mas é inflexível quando se trata da verdade mais trágica.

Ao passo que a verdade se apresenta como um imperativo, a mentira é definida como opcional/facultativa e de exercício individual.

Seria um exercício bastante peculiar imaginar uma mentira sustentada por um grande grupo de indivíduos; mais ainda, imaginar as cadeias de razões e justificativas para sustentar o inverídico.

O fatual seria derivado da verdade, e a mentira seria uma intervenção as motivações que convergiram para fraudar determinado desfecho.

Diante do conceito de virtude que a verdade tomou para si e de defeito ou vício como definição para mentira; chegou-se a simplificação de que o homem virtuoso diz a verdade e que o homem que mente não possui virtudes.

O que estas posições pretendem se exploradas de modo agudo, e com o objetivo de esclarecer, é propor uma valorização menor a esses conceitos relativos e acessórios, que sem estar contextualizados não devam ser considerados.

Verdade e mentira estão dentro das variáveis relativas que o conceito moral, que tem um determinado valor na sociedade, potencializou no seu esforço de moldar a realidade para os seus propósitos, que não são os de um povo, de uma classe ou mesmo de um determinado segmento.

Este império nasceu da equivocada prática de ter posição para todas as questões e da medida real dos conflitos, que às vezes necessitam de certo distanciamento e noutras de um determinado envolvimento.

Como desconhecemos qualquer fórmula para uma atuação que resgate o indivíduo desta disforme massa moralista moldada para o senso comum. Então assistimos a esforços isolados, onde alguns indivíduos operam para despir a verdade de seu elemento ficcional coercitivo, já que em nome da verdade criou-se uma ficção com muitos estereótipos, todos muito bem definidos e com um perfil determinado pelos limites aceitáveis por valores nítidos e inatingíveis; de tal forma que já é comum acompanhar os dramas reais como folhetins que tem rigorosos limites para seus protagonistas.

O que seria a verdade?

Uma convenção, que deveria servir para conduzir os homens para um caminho virtuoso; mas é impossível divorciar o homem de sua natureza, e a sua virtude está em resistir, sobreviver e superar a todas as situações.