DESAFIO MACABRO - Mar e o sonho!
Mar tinha muitas virtudes. Muitas tinham sido colocadas naquela cabeça por uma mãe extremamente religiosa! Outras, naturais dos nascidos em pequenas cidades do interior e criados em meio à simplicidade das ‘poucas necessidades’ dos muito pobres!
Às vezes as tentações crestam as virtudes! Satanás anda à espreita... Seus tentáculos destrutivos estão ao nosso redor, todo o tempo! Não os percebemos, mas eles estão aqui, do nosso lado!
Naquela tarde seca as sombras dos poucos prédios jogavam seus vultos soturnos sobre as ruas fétidas do centro decrépito e já antigo da nova cidade. O coração de Mar batia em suas têmporas suadas do dia tórrido, e uma poeira de dias repetidos emprestava um ar sinistro aos andrajos que cobriam seu corpo esquálido. O olhar vago das alucinações causadas pelo uso constante do crack tinha sido substituído pelo olhar duro da determinação da decisão que tinha tomado, ou, mais propriamente, tinha sido empurrado a tomar.
Agora que chegava a hora de agir, embora mantivesse a mesma resolução, algo dentro dele hesitava um pouco, lutando contra o desejo inerte de suas necessidades egoístas que mesmo em sua mente embotada ainda era tolhido, às vezes, por lições recebidas no lugar que um dia fora seu lar.
O sol bafejava seus últimos suspiros quentes por entre as paredes ao seu redor, o número de pessoas pelas cercanias diminuía e as sombras avançavam, dentro e fora de Mar.
Sua mãe nasceu na Bahia e nunca tinha visto o mar e quando soube que estava grávida, pensou logo em batizar o filho, ou a filha, de Mar. Qualquer sexo que viesse receberia o mesmo nome, que na concepção daquela mulher simples e rija da resignação trazida por infortúnios constantes, compensaria essa grande frustração. Assim, nasceu Mar, antes mesmo de saber se seria homem ou mulher.
A vinda para a cidade grande tinha sido precedida da primeira tragédia na vida daquela mulher franzina e de espírito forte: o marido foi assassinado numa briga de bar! Embora fosse trabalhador, o pai de Mar tinha o vício do álcool e numa tarde de domingo, como muitos amigos avisavam, morreu de beber na ponta da faca de outro bêbedo. Sua mãe ficou com três filhos, sendo Mar o mais velho e ainda criança, e a marca da tragédia nos olhos que sempre refletiam a paisagem sem graça de seus dias sem cor.
Juntou os filhos, mais não tinha para juntar, e desembarcou na rodoviária dos sonhos de uma vida melhor junto do irmão que conseguira emprego de zelador numa chácara das redondezas de Brasília. Mar também sonhou ser mais feliz na cidade grande! Queria ir para a escola, trabalhar, ganhar dinheiro, ajudar os irmãos mais jovens, a mãe... ser feliz, livre! Pelo menos nos sonhos ele já era livre.
Mais uma vez o mau fado teria que atravessar o curso da vida de Mar, aproximando-o do destino que lhe tinha sido dado, assim como seu nome, antes de vir à luz da vida. Aos seus quatorze, e somente três anos depois da chegada em Brasília, um namorado de sua mãe tentou abusar de sua irmã de apenas doze. Quando o tio ficou sabendo procurou o sujeito e descarregou seis tiros nele, que em parente seu ninguém tocava. Depois fugiu, levando o olhar agradecido e assustado de Mar para as brumas do que poderia ter sido uma vida melhor para sua família.
Mar tinha que trabalhar. A máxima leitura de sua mãe não lhe permitia mais que o mínimo dos salários nas faxinas inconstantes e sempre extenuantes. Trocou a escola pelas ruas e, em pouco tempo, deixou de voltar para o barraco que substituíra a chácara em que moravam. O dono precisava de outro zelador e o zelador precisava de um lugar para abrigar os seus.
Mar deixou-se pelas ruas da cidade e seus vícios que não demoraram a se apresentar à sua lista de intempéries. Vendia ‘coisas’ nos sinais que ia trocando sempre que alguém mais velho, ou mais forte, o expulsava daquele que tinha escolhido.
Conheceu o crack dois dias depois que começou sua carreira de vendedor. No início a droga era uma fuga da dor, depois virou só dor! Nova obsessão, Nova tragédia para Mar! Sua primeira pipada foi oferecida por um colega de rua. Naquele dia Mar estava muito triste! Tinha deixado a escola, os poucos amigos e uma paixão platônica que despertava nele os primeiros desejos de homem. Ficou tudo para trás.
Aspirou profundamente aquela fumaça e em poucos segundos sentiu o coração acelerado, seu corpo começou a suar numa excitação incontrolável, provocando um bem-estar que nunca sentira. De repente a dor, o cansaço físico e mental e o medo, principalmente o medo, sumiram! Mas, como tudo na vida de Mar, durou pouco, e a euforia foi substituída por uma prostração incrível e uma tristeza diferente, avassaladora. Aí ele começou a usar mais e mais e logo passava seus dias sob o efeito do crack.
Mar entrou na fase de nóia! Pensava que estava sendo espionado o tempo todo. Ficou ainda mais desconfiado e violento, recorrendo a agressões físicas para conseguir a droga, fosse praticando pequenos furtos ou tomando a droga das mãos de colegas de rua.
Sua irmã engravidou aos dezesseis anos e ele deixou de ser expulso dos sinais aos dezoito. O caçula da família se juntou a ele e juntos passaram a expulsar os outros vendedores, mimetizando o comportamento que lhe fora ensinado nos últimos anos da vida crua. Comprou uma arma e virou ‘bandidão’. Quando levou seu irmão ao primeiro assalto ele foi morto. Tentavam entrar numa casa na W3 Sul e o irmão caiu do muro e morreu enquanto o dono da casa chamava a polícia!
Onde estavam os sonhos que tinha? Onde estava o futuro? Onde ficaram os olhos cinza e ternos da mãe? Pensou em voltar ao barraco, abraçar a mãe e nunca mais soltar, fundir-se àqueles braços que tantas vezes o carregaram pendurado à cintura, que tantas vezes representaram o único bastião para a fuga das tragédias que a vida insistia em jogar na sua cara de barba rala e traços duros. Mas não poderia contar à mãe que deixara o irmão morrer enquanto fugia da polícia. Recorreu aos braços do crack!
Escureceu! Mar tinha que escolher alguém! Já estava sem o crack há dois dias e na noite anterior tinha matado uma pessoa. Tentou assaltar uma mulher que saía de um caixa eletrônico. O marido, esperando-a no carro, reagiu e levou dois tiros! Mar tinha ultrapassado a última fronteira. A falta da droga aumentou sua sensação de medo, e o medo é mais forte que a coragem!
Viu uma mulher carregando uma grande bolsa, saindo do Bradesco... Qualquer coisa serviria para comprar uma dose de crack. Não podia esperar mais! Saiu da esquina em que se escondia e começou a caminhar na direção da mulher. Seu aspecto sombrio e suas roupas sujas assustaram a mulher que começou a atravessar a rua. Ele atravessou também. Já não via mais ninguém. Como um predador que identifica a caça via apenas a bolsa da mulher. Não viu os dois policiais que passavam de bicicleta por ali. Eles o viram!
A mulher, percebendo o perigo, tentou correr! Mar gritou para ela parar! Ela não parou. Mar sacou a arma! Nem tinha balas, vendidas para o crack três dias antes! Apontou para a mulher. Ouviu-se um estampido! Mar sentiu uma dor muito grande nas costas! Virou-se, viu um dos policiais se preparando para o segundo tiro, levantou sua arma apontando-a na direção deles... sentiu novos estampidos, não a dor! Caiu ao chão... arrastou-se até a parede, sentou-se, olhou as luzes esmaecidas por um resto de crepúsculo, um alarido crescente entre os transeuntes retardatários do trabalho, uma sirene ao longe, um rosto. Seria sua mãe? Seu pai? Seu irmão? Todos que a vida lhe tinha tirado? Sorriu, como não sorria desde que foi jogado no mundo crack... Muitos dizem que os sonhos nos libertam. Mar viveu prisioneiro dos seus!
Este texto faz parte do 1º Desafio Recantista de 2009. O tema definido desta vez foi o de Contos Macabros, contemplando textos sobre horror sobrenatural ou realista, densos e sérios ou divertidos e leves. Não há nada mais macabro que a vida real!
P.S. Os nomes e fatos são fictícios e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.