Só estar só
De antemão afirmo não querer alguém em minha vida...
Estou farto de olhos, bocas, perfumes e quem os usa - de fato, até de mim estou cansado.
O mesmo corte de cabelo há anos: curto, raspado, sem graça e sem homéricas descrições. Quem disse que eu as quero? Não preciso ser prolixo, fútil, criativo ou marxista para saber o que quero. Não preciso de opiniões, não as quero, tenho as minhas, satisfaço-me com essa carcaça que me sobrou na distribuição de corpos e almas. Nasci por engano, por erro de dois seres que igualmente foram enganos na vida.
Meu berço? Uma cesta feita de jornais velhos, quase artesanato, quase bela, quase um leito, quase um berço. Brinquedos? Latas, garrafas, papéis... alguma dúvida de que eram todos sujos, usados ou quebrados? Contento-me em reconhecer o brinquedo que melhor fiz uso nesses anos de existência opaca: minha vida.
Puxei o cartão errado do jogo de dados. Dei xeque-mate em tudo o que fora real em mim, abandonei a majestade mentirosa, a opulência que nunca existiu, cortei a cabeça do rei e roubei-lhe o cetro da autonomia, da minha autonomia.
Perdi o coletivo vazio na imensidão de pecados que nunca cometi. Esqueci de dar satisfação às minhas promessas e de responder à
multidão de meus anseios. Sucumbi.
Cresci em meio a gritos e silêncios profundos. Dispenso carinhos
porque dispensaram a mim. Não quero ouvir segredos e verdades, não há diferenças entre estes e o meu tédio. Ó tédio mortal, irreal capacidade ociosa de ignorar a vida e o passar do tempo, ó horas infindas, ó calamidade juvenil, monstro anacrônico e futurista, criança senil e frágil... Ó nada!
Não aprendi a andar, engatinho até hoje e não quero ajuda. Não caí, escorreguei. Não corri, fugi. Não vivi, apenas errei.
Fiquem longe de mim!
Afastem-se todos! Não venham respirar o mesmo ácido que eu, não peçam desculpas, não tentem impedir minha voz e minha vez, eu já não posso sentir...
Atei meus braços, pernas e mente. Fechei todas as portas do meu coração – nem eram tantas. Menti pra não sofrer, sofri. Mentir para não chorar, chorei. Menti para não aceitar a verdade, ainda sinto... tanto... muito.
Falta alguma coisa...
Convivo com esse amargo gosto de fracasso na boca, esse cheiro podre de enxofre nas mãos e no peito, esse toque cínico em minha face, esse gemido calado de prazer em cada falsa fantasia, em cada nítida máscara facial... é tudo tão vago, sóbrio, densamente alcoolizado.
Não espero nada da vida. Atrasei-me demais para exigir votos e cometer equívocos desculpáveis. Fechado em mim, não perdôo. Não aceito. Não concordo. Não aplaudo. Não respiro!
Quanto tempo mais terei de suportar esse mar de ilusões, sorrindo aos cantos e admirando o céu sem estrelas?
Quantas vezes mais terei de concordar com o mal necessário, a favela familiar, o desconforto estomacal, o aborto de personalidades próprias, a expropriação de sonhos e a coerção de idéias?
Quantas vezes mais terei de assistir, sentado, à destruição das instituições públicas, das estruturas monárquicas recauchutadas, das célebres academias... Ó vãs academias esquecidas no tempo, na tradição e nos museus, quanto tempo me resta para chorar e pedir perdão por meus erros, quanto tempo me resta para pisar no passado e soterrar meu futuro desgraçado.
Parado, esqueço de existir.
Volto, vez ou outra, à varanda de uma vida de outrora. Há pássaros voando e cantando a melodia de desespero e agonia que eu assobio existencialmente. O céu se esconde na opaca luz do Sol. Sozinho, não faz verão, vida ou diferença.
Há tantas nuvens no céu quanto em minha mente, já não sei onde estou e caio sobre a mesa de bar, chorando mais uma vez por ela.
Quanto tempo, mais.