De Repente
O dia amanheceu enjoado. Uma constante nos últimos tempos. Os remédios definhavam como vermes vorazes a uma carcaça pútrida, o corpo de quem um dia jogou futebol, como um daqueles zagueiros que faziam tremer o ataque adversário.
Pensou alguns minutos sobre sair da cama, pois não sabia muito bem o que iria fazer. Decidiu ficar ali mesmo. Fora despedido quando descobriram sua doença. Não sabia se iria à justiça, ou se simplesmente procuraria outro emprego. Já tinha problemas demais para entrar numa briga, e tão somente, para ficar numa empresa que já não mais o queria, que já o enxergava como morto espiritual, e não queria compartilhar sua morte física, que poderia ocorrer num daqueles corredores, ou pior, numa das intermináveis reuniões de sua área.
Lá fora a cidade acordava. Podia ouvir crianças entrando num ônibus de escola, algumas mães atentas davam as mesmas recomendações de sempre. Podia ouvir a passagem dos carros vindo de lugares que desconhecia e indo para lugares menos conhecidos ainda. O burburinho da rua, ultimamente, deixava-o com medo. Mesmo antes de ser despedido, desde que recebera o diagnóstico, dado pelo hematologista como quem abre a caixa de Pandora, passou a ter um medo muito grande de fazer todas aquelas pequenas coisas que construíam seus dias, e perfilavam ao longo de sua vida como os fatos banais que muitos chamavam de passado, história.
A única coisa de que não tinha medo era de morrer. Quando recebeu a notícia, foi invadido por um medo muito grande. Mas, aos poucos, perdeu o medo mais óbvio no seu caso. Morrer. Sentia-se livre, sem medo de morrer. Da última vez em que foi à clínica, já iniciando a fase de tratamento, viu a cara da morte, entrou nela e saiu, não sabia como. Aí ela passou a fazer parte dos planos para o futuro. Ele se acostumara a não temer nada que pudesse planejar, que pudesse antecipar.
De repente, percebeu que as coisas que julgava importante, todas aquelas para as quais se preparou muito, e trabalhou mais ainda, não tinham mais importância. Lamentava apenas as mulheres que não amaria, os filhos que não teria, as muitas outras manhãs como aquelas que não veria.
Sua mãe entrou no quarto, deu-lhe um sorriso daqueles que somente as mães sábias sabem dar: sem piedade, sem medo, apenas ternura, amor no mais puro estado!
Abriu a cortina, deixando que a luz do dia invadisse seu reino de dor, provocando-lhe certa revolta de ver um sol tão brilhante e cores tão vivas ao seu redor, quanto tudo que podia enxergar, em seu espírito, era cinza. Trazia, como vinha fazendo nos últimos meses, suco de laranja, a única coisa que ele conseguia ingerir naquelas horas, e quase uma dúzia de pedaços de esperança, uns brancos e redondos, outros vermelhos e trapezóides e ainda outros, amarelos redondos, maioria. Colocou tudo na boca, misturou com o suco de laranja, que para suas enzimas confusas tinha um sabor que não podia determinar e somente aí tomou coragem de deixar sair um bom dia tímido de sua boca sempre seca e com um terrível mau-hálito. Tinha medo de cumprimentar as pessoas, medo de se comprometer com ter que responder à inevitável pergunta de como estava.
Sua mãe não precisava de respostas. Simplesmente sabia. Buscou nos cantos do quarto para ver se ele tinha deixado sua roupa e sapatos preparados para levantar correndo e ir trabalhar. Não viu nada, e entendeu tudo. Sorriu para ele... ternura. Aquele sorriso o confortava e angustiava! Conforto por saber que aquele sorriso foi a primeira coisa que viu na vida, e, tinha certeza, seria a última. Angústia por que sabia o quanto ia enfraquecendo aos poucos aquela mulher antes forte e dona de seu destino, desde a separação do seu pai, nos seus doze anos, ver o seu filho ficando cada vez mais esquálido, ver a cor da pele mudando, a voz sumindo e o brilho dos olhos se apagando.
Ela o olhou de novo, ternura, não disse nada, não precisava, entendiam-se um ao outro, assim mesmo, sem palavras ou gestos: apenas olhares e silêncios. Pegou a bandeja, deu-lhe um beijo na testa, ajeitou seu edredom, fechou as cortinas, voltou-se para a porta, ele já adivinhando algumas lágrimas em seu rosto, voltou-se mais uma vez, foi até o aparelho de som, ligou, estava, com sempre, numa rádio que somente tocava jazz e a voz de Norah Jones invadiu seu espaço:
“Like a flower waiting to bloom
Like a lightbulb in a dark room
I'm just sitting here waiting for you
To come home and turn me on”.
Em passos rápidos, dirigiu-se à porta novamente, e me deixou ver pela última vez aqueles olhos profundos, aquele sorriso doce... ternura. Fechou a porta e gritou!