E O REMORSO EXISTE?...

(Parte III do "Ensaio sobre o Remorso")

EPÍLOGO

A esses... remorsos infinitos retêm, nos acostamentos das estradas. Agarram-se a eles, como plantas trepadeiras. Parecem ser herdados, estão no sangue, nos genes... não se consegue precisar a causa, e não há pílulas que os acabem de vez, apenas amenizam; contra os remorsos... podemos ter um exército de sentimentos prontos a combatê-los, como o disfarce da alegria, o trabalho compulsivo, uma viagem, tudo isso ajuda... mas não vence a guerra! A inveja é tão fácil de ser destruída, basta apenas que não nos comparemos com ninguém; para a raiva, um simples palavrão costuma mandá-la às favas.... e por aí vai... No entanto, para o remorso só há o consolo do verso e o sonho impossível de João, que espera sentado numa nuvem de ilusão, pela Margarida, num eterno anacronismo de ontens, hojes e amanhãs. Queria colocar ordem na casa... talvez um banho frio me ajude por hoje... amanhã não sei.

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Nem sei se amanhã saberei se o remorso é eterno ou mortal. Se é herança ou aquisição. Se é culpa ou desculpa. Se é culpado ou inocente... Ou se a água fria e dura, por tanto bater, o conseguirá furar, minar, destruir. Talvez não. Ou talvez não seja isto remorso, sequer. Este sentimento que se agarra a mim, pegajoso, praga, sitiante: será mesmo remorso? E o que é o remorso? A ferida que fica, quando conseguimos extrair o espinho da culpa? E o que é a culpa? A inocência do não saber, a arrogância do poder, ou o instinto de sobrevivência?... Que nos é dado escolher, no cubículo apertado da nossa própria herança de genes?... Dizem que Deus nos criou, com os defeitos e as virtudes todas, inatas e inegociáveis... Temos nós culpa da nossa ponderabilidade?... Das nossas imperfeitas proporções, dos nossos feitios toscos, desarmoniosos??... Até que ponto a culpa existe?... Ou se existe, estou cada vez mais em crer que ela tem o poder da ubiquidade. E o poder da sedução, da traição. Nunca dorme com um homem só...

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É, talvez a palavra, os mil pontos de vista disponíveis no teatro da mente não sejam "a coisa", o remorso. Mas uma coisa é certa: sofremos; daí, dei em pensar que o remorso era a causa... a idéia de que "só é feliz o homem que não tenha remorsos" fixou em minha mente feito prego na parede. No entanto, a causa da causa ficou mesmo a ver navios... realmente não sabemos se é herança ou aquisição. Claro que fingimos, apegamos, entramos no jogo da sedução, intuimos, traimos, inventamos Joões e Margaridas... acho que é fuga. Então, para evitar o sofrimento ou deixá-lo domado ou entorpecido fazemos versos, bebemos, tomamos banhos frios, indisponibilizamos nossos cérebros a encarar frente a frente os sentimentos de culpa que carregamos, sem lançarmos mão de nenhum artificio, seja ele de natureza boa ou má. Vamos beber ou fazer versos? Fugas, fugas... como viver sem elas?

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Fujo dali. As pombas há muito me abandonaram, espantadas pelo meu ar de caminhante sem norte. Fugir às vezes é coragem. Deixar de olhar para gente de cara fresca e alma apodrecida, é coragem... Deixar de esperar que as pombas voltem, desinteressadamente, é coragem. Deixar de esperar pela chuva, para que a terra amoleça e se possam mondar as ervas daninhas, é coragem. E depois... fugir não é mais que mudar de rumo. Ou olhar as coisas sob outro ponto de vista...

Quem sabe o remorso nem sequer existe, é só a sombra de culpas alheias?... Quem sabe?...

(textos sempre escritos por duas mãos, intercaladamente, à deriva, sem programa ou rota previamente definida)