AMANHÃ NÃO SEI...

AMANHÃ NÃO SEI...

(Parte II do Ensaio sobre o Remorso)

E agora o que sei... Eu, neste lugar, sentindo-me um ser abrutalhado a lançar palavras mal colocadas, a mente confusa, esperando por ela... a Serenidade... Ela, que baila com as palavras, que parece conhecer os segredos das almas inquietas, que ameniza o remorso... Ela: a única. Mas seria muita pretensão minha... Meus sapatos estão empoeirados, a minha barba por fazer, peco até nas coisas mais elementares. Como combater o remorso? Escrevendo? Há um sinal de “Pare” bem à minha frente, tenho que ser rápido, o tempo anda sempre esgotado, vigiado. Resta alguma esperança? Procuro inventar outras coisas. Há uma regra nos Alcoólicos Anônimos que diz “hoje eu não bebo, amanhã não sei”. A coisa parece que funciona. Resolvi não aplicar essa regra na bebida, porque não bebo. Apliquei-a de outro modo. Dizem que banho frio faz bem para o corpo. Faz uma semana que estou tomando banho frio. Sempre que vou tomar banho, digo para mim: hoje vou tomar banho frio, amanhã não sei. Sabe que está funcionando? Vou ver se faço o mesmo com os meus sapatos e com a minha barba. Mas, e o remorso? Ora pombas outra vez!...

%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%

Mas sou assim... Feito de pedaços de vida que ainda não juntei. Talvez me falte o ramo de oliveira que nenhuma pomba me quer trazer. Nada, no fundo as pombas são como as pessoas: enquanto dura a côdea de pão, elas ficam. Quando acaba, debandam. (Ainda nenhuma voltou atrás, trazendo-me a gratidão num ramo de oliveira... nem sequer um ramo órfão de azeitonas maduras...).

E eu prometo a mim mesmo que, hoje, o meu banho vai ser quente. Talvez assim o remorso amoleça, se desfaça, se dilua... Amanhã, então, prometo que vou recomeçar o ritual da água fria... Ah, como queria que a minha água fosse a tua!! Minha Serenidade, minha Paz... (vês, já te chamo por um nome pequenino, diminutivo, como se fosses da família... prima afastada que se quer perto...)... Talvez assim os nossos remorsos, juntos, achassem a costa... do paraíso onde se anda descalço, onde não há espelhos que nos digam que a nossa barba está por fazer... Espelhos-olhos que nos gritem que é preciso correr...

Hoje, vou entregar-me, inteiro, nas águas que me aqueces... amanhã não sei...

%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%

E hoje é esse amanhã que amanhã não sei. Só sei que hoje não quero falar de remorsos, basta apenas saber que os sinto... nenhuma palavra será dita. Hoje, não amanhã, porque amanhã já sabemos que nada sabemos, quero nadar nas suas águas, sentir seu carinho de pacífico de mulher, mãe, amiga, flor... talvez até me arriscasse a transformar o ramo de oliveira em José e a oliveira em Maria, seriamos assim João e Margarida em carne e osso. Margarida, Margarida... Margarida sempre linda, que, em meus sonhos, aparece sempre baixinha e com olhos enormes e donos de si. Quanto a mim, eu queria transformar-me num beijo quente e de verdade, num abraço forte e duradouro, num rolar de corpos e poemas, em amor... apenas sabemos que em muitos amanhãs passados aproximamo-nos, entendemo-nos, emocionamo-nos... nossos pensamentos tocaram-se. João ficou encantado.... Margarida, não sei. As margaridinhas são para serem vistas e admiradas por todos, para fazer a vida mais bela, enquanto os Joões...

%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%

...Os Jõoes desta vida, os que ainda esperam o ramo de oliveira, os que guardam dobrões de remorso no bolso das calças gastas, os que admiram margaridas em vasos de arco-íris cristalizado... esses nunca foram colhidos, nem tão pouco chuvas fartas lhes regaram as raízes... Esses ficam-se na berma da estrada, de sol a sol, de botão a fruto, de Primavera a semente, esperando ser poupados pelas pisadelas de sapatos bem engraxados... Esse sou eu. João. João ninguém, João vintém, João remorso. Remorso infinito, por não ter vivido o meu amanhã no ontem que se fez tarde. Ou não viver hoje o meu ontem, porque a brisa se ergueu cedo e me trouxe odores de margaridas... e fico preso, na berma, à espera das águas perfumadas da minha Serenidade... da prima Serenidade. (Primas são cúmplices de amores, muitas vezes...) ...Mas não de Joões e Margaridas!

***

(textos sempre escritos por duas mãos, intercaladamente, à deriva, sem programa ou rota previamente definida)

***

CONTINUA...