REMORSO EM MIGALHAS (Ensaio sobre o Remorso)

REMORSO EM MIGALHAS

(Ensaio sobre o Remorso)

Não sei, eu, naquele lugar... as pessoas passavam, algumas olhavam-me... e eu, eu, ah!, eu, eu apenas observava. Via gente passar com olhos lindos, mas de olhares horríveis; via gente de belos rostos, mas uma expressão ôca, vazia; via gente de dentes perfeitos, pareciam teclados de piano, só que o sorriso era falso, infraternal, se é que essa palavra existe. Engraçado e chocante é essa vida... Olhos e olhar, dentes bonitos e jeito de sorrir, rostos de maçã argentina fresca, colhida recentemente, e expressões de fruta podre...

É, tudo indica que muitas pessoas só vêem a lua, não conseguem ver o luar, vão pelo lado do exibicionismo barato, ignorando a graça, a beleza da simplicidade e se armam de pompa. Ora pombas!

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Pombas?!... Uma revoada de pombas invadiu o meu ar parado e agitou-me os pensamentos suspensos. Pombas, sem sorrisos falsos, mas olhos de verdade, vivos e perscrutantes. Vieram até mim sem medo, debicando o chão. O mesmo chão espezinhado pelo brilho dos sapatos caros das gentes que passavam sem olhos de verdade. Pombas, famintas, que me observavam com olhos de viés, mas familiaridades de amigo... Cercaram-me, temerárias, sem parecerem incomodar-se com o meu ar andrajoso de sem-abrigo... Talvez me confundissem com um espanta-pardais, quem sabe?... quem sabe o que vai na alma das pombas?...

De repente lembrei-me que tinha no bolso uma côdea de pão seco...

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Sem a menor pompa, acabei por atirá-la às pombas... pedacinho por pedacinho, até não restar mais casca de pão alguma. Depois, não sei, acho que sai de mim, passei a pensar coisas do tipo "estamos todos certos e errados ao mesmo tempo"... mas o que mais me intrigava foi algo que lera, algo em que todos os caracteres escritos pareciam providos de um microfone potente, pois se soltavam do papel e diziam em alto e bom som, bem junto aos meus ouvidos quase sexagenários, fora os nove meses que passei na barriga da minha mãe, "só é feliz o homem que não tem remorsos". Depois, tem sempre um depois, vi que as aparências enganam mesmo... as pombas, vistas de perto, são aves insaciáveis, como comem, meu Deus! e, no entanto, ficam lindas quietinhas por sobre os telhados e até simbolizam a paz... a paz, a paz que só parece ter quem não tem remorsos.

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E naquele momento, ali, senti remorsos... As pombas pareceram sentir os estilhaços da guerrilha que eclodiu no meu íntimo, e bateram em retirada. Ingratas, cobardes! Não quiseram ficar, nem para serem mediadoras do conflito, nem para serem mensageiras da Paz, que, alegadamente simbolizam... (Ah, os dogmas desta vida feita de aparências!...).

Fiquei ali, parado, os dedos ainda ensaiando o gesto mecânico do esfarelar das (minhas) migalhas e o olhar à deriva, no meio das gentes que passavam e que mo empurravam, em encontrões apressados e indiferentes. E, no mais fundo de mim mesmo, o fervilhar amargo e queimante do remorso...

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(textos sempre escritos por duas mãos, intercaladamente, à deriva, sem programa ou rota previamente definida)

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CONTINUA...