Diário da Exilada - A Mulher Desconhecida de Schrödinger
Eu me perco em meus sonhos tão lúcidos e reais, que quando acordada não sei se durmo, pois tão fantasiosa e fictícia me parece a realidade que a cada instante se modifica bruscamente como sonhos que emergem confusos e sem ordem e sentido que ao abrir os olhos, não sabemos como contar.
Vez ou outra eu sinto que não faço parte deste mundo, tão estranha consigo ser e por me ver constantemente entre brechas difusas que ora enxergo, ora expresso, tornando-me viajante do tempo, no tempo, no espaço que sem espaço não possui tempo...
Eu ainda não conhecia o mal que caminhava livre pelo mundo quando descobri na gata que me olhava, uma lição estranha... Ela tão estranha quanto eu... Ela que me abandonava e após retornava como se possuísse asas aladas invisíveis... Ela queria ter seus filhotes na minha presença, como que insistindo que eu aprendesse algo que não podia ainda compreender... E arrumei-lhe um canto que ela mesma escolheu, e diante de seus apelos ali ao lado me deitei e observei tudo... Dias depois, olhava-me e miava novamente seu apelo para que mudasse seus filhos de lugar, e o fiz com seu consentimento, colocando-os numa caixa que ela mesma escolheu. Havia momentos que pensava estar a ver coisas, quando ela olhava-me demoradamente e esperava como que esperando que eu caísse em mim e a seguisse... Eu a seguia e ao nos aproximar da caixa, ela olhava-me como quem diz: '- Observa!'
Ela olhava a lateral da caixa, alta o suficiente para que seus filhos não saíssem, mas ela entrasse. Depois de tanto olhar, em um salto entrava dentro e começava a lamber seus filhinhos... E assim foi por muitos dias... Semanas até que certa vez eu percebi algo estranho: ao pular para dentro da caixa, ela nunca pisava em nenhum filhote sequer. Intriguei-me... Ela olhava sempre a lateral da caixa antes de saltar para dentro... E eu compreendi.
E depois disto, passei minha vida tentando saltar para dentro de caixas: corpos de seres, olhando antes de saltar... E eu bem sei a visão de uma mosca quando voa nos ares... E posso detalhar como uma mosca voa: o vento forte que passa não leva para longe o minúsculo corpo, e o bater de suas asas é mais forte que a força do vento que para nós é brisa... Tudo no mundo é a vastidão gigante que ela nada enxerga...E foi assim que pude ouvir a canção das flores... E posso descrevê-la: o momento do canto é quando os polens discretamente se soltam...E descobri a sensação do passarinho que guarda seu ninho entre as folhas no galho mais alto: uma de suas unhas entra na fenda entre as cascas da árvore, mas não se prende... Ele olha pelo canto dos olhos acompanhando os sons que ouve... Pula e se volta para a direita, pula e se volta para esquerda, como se tivesse um radar, oculto e microscópico debaixo da delicada plumagem...
E foi quando descobri o felino que existe em mim... Meu espírito é de um Lince que olha de longe, desconfiado, selvagem arisco... E descobri como há entre minhas pernas um abismo que as mantém afastadas, pois um de meus pés está aqui... Meu outro pé eu não sei onde está... E assim, nunca sei quando sonho e quando estou de fato acordada... Auto-sugestão? Imaginação fértil? Loucura?
Pois eu vou e volto numa velocidade absurda, que já não sei naquele momento onde realmente estou... E há momentos que não sei se de fato existo... Se eu sou o que penso ser, ou sou o ar pensando ser gente... Ou sou o vento, pensando ser um sonho alado... Ou se sou bicho que pensa ser luz...Ou se sou o sonho que desejou despertar e viver uma vida própria que nunca pode dominar... Ou se sou o corpo onde entrei que sonha ser eu... Ou se sou fruto de minha própria imaginação... Imaginação de quem não se deu conta do que de fato é...Talvez, sou a realidade que resolveu sonhar... Já não sei... Ás vezes eu esqueço quem de fato sou e onde estou...
Minha realidade... Minha vida é tão Schrödinger... Meu corpo... Nada humano e tão gato... Gato disfarçado... Faz-me cigana das Eras... Sem morada fixa, sem projetos consistentes...Faz-me uma metamorfose contínua, serviçal de quem criou a falsidade cujo nome é tempo e a mentira chamada espaço...
Quando eu pisco meus olhos e os abro é o tempo que entro e saio e trago comigo tudo o que pude ver e absorver numa fração de milésimos de segundos... Não sei pra que e porque... Só ouço uma ordem que manda... Eu sinto um imã gigante que me atrai e puxa... Eu sinto e vejo um buraco negro enorme que se abre, como um olho de tufão me sugando e me vomitando de volta...
E me pergunto se estou sonhando... Ou se esta é a realidade sem disfarces... Pois a vida disfarça-se de vermelho intenso e vaza pela minha narina... Minha doçura dissolve-se e desaparece antes que encontre vazão... E meu corpo treme, e sucumbi... E ouço as vozes, e sinto os toques, e me sufoco com os estímulos e não posso me mover...Não posso falar... Nada obedece e pareço numa urna esperando para ser enterrada viva... E não sei se é sonho... Ou de fato é realidade...
São Paulo, 27 de Janeiro de 2009.