Análise crítico do conto O AMOR de Clarice Lispector.
O AMOR NO MEIO DO MUNDO
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Oh, amor... enquanto puderes,
não te percas de mim...
(Djavan)
Escrito em 1974, O Amor é parte integrante do livro de contos Laços de Família de Clarice Lispector. Escrito na terceira pessoa, o conto é, antes de tudo, um momento de epifania. Autora e personagem se fundem num momento de êxtase revelado pela vida. Este instante já é a própria realidade. A linguagem é o sentimento que revela um mundo povoado pelo caos e a ausência de lei, das pessoas e das coisas.
Ana é a mulher mãe, casada que tem a responsabilidade de organização como seu objetivo principal. A ordem é necessária para se viver bem. E esta concepção é quebrada quando se depara com o mundo lá fora. O mundo desordenado a impressiona. Para ela é o novo. E esta estranheza se dá pelo fato de que nunca tinha notado a verdadeira essência deste mundo. Como uma ostra ela está presa ao seu próprio mundo. Imaginário. Correto. E torna-se uma mulher forte por ser parte deste mundo que só a ela pertence. Criado, acima de tudo, para que seja ela o fator determinante. É em sua família que se dá esse processo de passível aperfeiçoamento em que todos dependem dela. E esta dependência entre o seu marido e filhos a contenta por se sentir útil. Deve-se viver com utilidade. E este, casulo mundo, é o seu apartamento. É ali, que com perfeição, Ana convive em seu cotidiano com extrema satisfação. O ato de se fazer as coisas rotineiras, todos os dias, é para ela um momento de puro amor. Sabe apenas que é necessário fazer. Criar raízes. E acredita que a vida pode ser feita e tornar-se perfeita pela mão do homem.
É preciso que esta mulher comum saia à rua para fazer compras para poder notá-lo. Num bonde, sentada, olhando pela janela, num dia quente e insuportável, Ana choca-se com o que vê através da janela, como num filme que lhe vai passando em movimento. É também sentada naquele bonde que ela começa a refletir sobre a sua vida, sua rotina. Percebe que este novo mundo não é apenas povoado por ela. Há pessoas. Diferentes pessoas. Também há coisas, animais. E há vida. Este encontro que, aparentemente chega a ser surreal para ela, vai impressionando-a cada vez em que se depara com a realidade nunca antes percebida. A cegueira. A presença de um cego, que masca chicletes e sorri, expondo uma felicidade em seu modo de vida, na escuridão que o impede de ver as cores e todo ser vivo, transpassa seu coração de forma abrupta. Ali também há vida. Há felicidade. A felicidade negra.
A perda temporária da auto-afirmação faz com que Ana grite. O grito foi a reação imediata ao que sentia. A rede de tricô desprende-se de suas mãos quebrando os ovos. A fragilidade dos ovos ao chocar-se com o chão do bonde transcende a sua própria. O medo fez-se presente nela por significar a queda um momento de desarrumação. Todos os demais ocupantes do bonde a nota. A atenção é voltada para o grito, que por alguns segundos, funde-se aos dois mundos. Ana consegue distinguir o contraste da sublimação desse mundo e o seu, travando um conflito íntimo, uma inquietação, levando-a a reflexão extrema. Perde-se em devaneios ao ponto de desligar-se do tempo em que se encontra e a direção sem sentido. A natureza mostra-se contrária ao seu desespero mostrando-lhe o ciclo da vida. Este conhecimento de mundo causa-lhe repulsa em relação ao social, refletida na fome das crianças.
O ambiente muda ao deparar-se no Jardim Botânico, ao descer, sem saber o porquê, em um ponto de ônibus que não é o seu. Amplia-se também o seu campo de observação. Tem contato com a beleza da natureza, como se a visse pela primeira vez. Tudo ali faz sentido. As plantas, os animais, os insetos. Sente-se também inserida neste novo mundo, como parte deste imenso conjunto que transforma esta natureza. O tempo não importa. Ana deixa-se ficar consumida por ele. É tarde. Mas nunca para conhecer-se. Contrasta a beleza existente do lugar com o próprio mundo. Já não se refere ao seu próprio mundo, e sim ao que se tornou novo. A realidade crua do cego e do Jardim Botânico lhe desperta um novo olhar direcionado para dentro de si. O olhar de dentro para fora lhe causando culpa por não ter sido parte deste mundo único que não via. Sente nojo e amor ao novo mundo criado.
Ana reage com horror. Depois do êxtase o que lhe restou foi apenas a triste verdade. O mundo, a vida, tudo é horrível. Percebe que o seu mundo não tem sentido nenhum a não ser para si mesma. O cotidiano, a rotina de seu dia, os afazeres domésticos, o cuidado em excesso com os filhos, o marido. A dependência. O amor que é atribuído por ela. O vazio. É o que lhe resta. O rompimento se faz necessário por já não caber mais em seu mundo a omissão do outro. Já não sente mais a necessidade de ser útil para com os seus familiares e sim para quem realmente precisa dela. Como o pó enraizado em seus móveis a sua espera a cada novo dia.
Ao voltar para casa já não é mais a mesma. Algo mudou. Partiu-se dentro de si. Olha ao seu redor como se o seu apartamento fosse a sua própria ostra. A camuflagem do horror de sua própria cegueira. Estranha a sua nova realidade. Os filhos, os móveis, a vida, o lar. É necessário um novo tempo. Para assimilar melhor as coisas. Acostumar-se com o seu novo eu. Criar raízes novas que transformem também sua família. De frente para janela ela vê esse novo mundo que lhe sorri como fez o cego. De braços abertos. Sente-se volúvel. Desperta por perceber que algo se quebrou com o estouro do fogão. Na cozinha. O barulho rompe o devaneio. Sente-se encurralada de frente ao marido. Descobrem-se. A realidade. Ela o vê como nunca o tinha visto. Presa a sua própria insensatez. Tem medo de perdê-lo. Vê-se uma nova Ana carente. A que precisa de proteção. No fim de tudo deixa-se abraçar pelo marido. Sente a necessidade agora de ser também protegida. Sem perceber começara ali naquele instante uma nova aliança. A transformação. Acabara-se a vertigem de bondade apenas em um dia, como uma pequena chama de uma vela que se apaga antes de findar por completo, afastando-a do perigo de viver.
BIBLIOGRAFIA
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.