Mudar
Nossa fiel e pontual ambigüidade diária...
Se tem uma coisa que nos acompanha por toda a vida é esse dualismo natural e, por que não dizer, instintivo de cada dia.
Hoje se é um jovem revolucionário com milhões de idéias, argumentos – nem sempre válidos -, ambições, dúvidas e desconfianças; amanhã um funcionário público de vida pacata, acomodado ao rodar da engrenagem sem freios comandada por aristocracias e toda aquela velha sujeira da corrupção burguesa – mais ou menos nesse tom castrista de diálogo e persuasão.
Hoje se quer manter um relacionamento a qualquer custo, imaginando que a perda de uma pessoa é o túnel da infelicidade, que o ciúmes é uma forma de demonstrar apresso e a possessão é para quem valoriza o que tem; amanhã não importa o outro lado, a mesma história de sempre: ''eu sou homem, a carne é fraca'', as mesmas mentiras e o mesmo jeito esnobe de encarar um compromisso.
Hoje, o cara nerd da primeira carteira parece um idiota que não sabe aproveitar a vida e vive com a cara nos livros, babando equações e puxando o saco do professor; amanhã, um cara inteligente, sensível e esforçado será o que você mais deseja depois de tanta gente errada cruzar o seu caminho e te machucar.
Hoje, os sermões ''infinitos'' do seu pai lembram o bem aproveitado tempo da homília cristã e não fazem a menor diferença pra você – a não ser quando toda aquela falação é procedida de um ''tudo bem, você pode ir'' ou do tradicional ''você sabe o que o meu pai faria numa situação como essa...'' (você sabe que lá vem mais uma cansativa história de família e pega no sono quando seu pai rememora o tempo em que ele lavava banheiros e trabalhava de dia para poder estudar à noite... um tédio, né?); amanhã, estará contando aos seus filhos o quanto seu pai foi importante na sua vida, dando as mesmas lições de moral e lembrando a falta que ele faz para toda a família... relaxe, as crianças preferem histórias infantis como a do ''chapeuzinho vermelho'', mas experimente uma dessas quando houver princípio de insônia.
Sabe, hoje as coisas parecem muito fáceis, acessíveis, ajustáveis. O computador vem pelo correio. A conta é paga pela internet. Estarei do outro lado do mundo em 24 horas. Liga pra mim, preciso ouvir sua voz quando eu estiver na Lua.
E amanhã? Será que vai haver alguma coisa boa pra se aproveitar? Será que alguém vai chegar e nos dizer o que é bom para nós e o que não é, resolvendo todos os problemas? Será que podemos justificar nossos atos com lágrimas? Será que suportaremos ser afagados pela mesma mão que nos apedreja? Será que nossa idade importará à alguma função? Será que alguém vai te ouvir ou ter piedade da sua fome? Será que alguém vai querer compartilhar da sua miséria genética volúvel? Será que os pólos derreterão junto com seus sonhos e o Sol, enfim, poderá queimar verdadeiramente e tirar a vida que ele próprio ajuda a proporcionar? Será que você está pronto para suportar? Será que você quer? Será tarde demais?(!).
Seria errado dar alguma resposta para essas perguntas, ninguém sabe o que está por vir, não é isso que dizem? Pois bem, ignoremos hipóteses e continuemos a viver como neanderthais do mesmo feudo, enganados pela religião fanática e pelo ceticismo. Descrentes da fé verdadeira e confundindo amor com casamento.
Vamos apostar pra ver até onde o sistema suporta esse nosso ''protesto pacífico'' de auto-submissão, de exclusão, de conformidade mútua, de não-existência.
Vamos fingir a vida descompromissadamente, tolerar o mal(a) do seu lado e destilar nossas melhores intenções aqui mesmo. Quem quiser um cigarro, é só pedir, as agências funerárias agradecem a preferência.
Ouço tanta falsidade, mas dizem que é por respeito. Ouço tanto desrespeito, mas dizem que é mau-humor, assisto tanto bom humor, mas dizem que é televisão. Assisto novelas, mas dizem que é mentira. Vejo tantas mentiras, mas dizem que é política. Vejo tantas promessas, mas dizem que amanhã será melhor. Ouço tanto conformismo que me enojo, não me controlo, e termino por vomitar mentiras sinceras que não interessam a ninguém. Sinto cheiro de mudança, deve ser o tempo agindo, sempre entregam esse ônus a ele por tudo o que acontece. Pobre tempo, leva as mágoas de uns, traz novas, troca de hóspedes, apenas. Quem perguntou se o tempo quer mudar? De fato, ele é o único que determina nossos caminhos e nosso destino, fato consumado, é claro. Mas quem controla esse tal tempo, essa é a grande dúvida. Passou. Vai passar. Será? Espere, amanhã será diferente. Vejo tanta maldade, mas sempre dizem que é o melhor, que nada é por acaso, que ''Deus escreve certo por linhas tortas''. Precisam ser tão tortas assim?
Cansei de ser tratado como um pedaço sem encaixe de um quebra-cabeças, aliás, o que mais fizeram foi aumentar e tornar mais difícil o jogo que eu nem ao menos escolhi jogar.
Não quero ouvir mais desculpas, já chega de tentar ser amigo de alguém que não quer sequer ser humano.
Não existe hora errada, existem erros. Todos os cometem, mas querer enxergar um problema é o maior de todos. Exageros? Não, não são problemas, são necessidades de se expressar alguma coisa. Talvez não as mais certas, mas, com certeza, as mais espontâneas. Controle-se, tudo em excesso faz mal, inclusive arte, amor, poesia e sexo.
Ser bonzinho demais não é bom, mas a gente pena pra aprender isso. Esqueça, meu Martini está esquentando, você tem gelo? Parei de beber, sobrevivi ao coma alcoólico chamado você.
Um olhar. Uma palpitação. Um cruzar de dedos. Um entrelaçar de pernas. Um sonho. Um despertar. Um final trágico. Um filme de terror. Um filme de comédia. Um beijo tão frio como o inverno. Uma luz opaca como o vidro fosco reflete. Um peso arrastado como cruz em procissão. Um lembrete no papel de bala. Um recado no ''correio elegante''. Um atraso de trinta minutos e dois anos. Um pesadelo acordado. Um cartaz sem outdoor. Um milhão de cartas sem entrega. Um avião sem destino. Uma passagem só de volta...
Foi flecha certeira no alvo cardíaco, foi feito enchente que lavou louça do jantar, foi metade de tudo o que pretendia na vida, foi praticamente unânime em ser incompleto, foi flor sem pétalas, foi poema sem entrega, foi sorte sem jogo, foi medo sem perigo, foi norte para o erro, foi sul para o pecado, foi correndo ao teu encontro, foi andando pra bem longe. Foi longe demais...
Existe uma tênue linha que divide a educação e o cinismo, de que lado você está?