John Searle - Vias para Pensar a Mente

1. Sentido e Intencionalidade

" Em qualquer livro sobre filosofia da mente o autor, explícita ou implicitamente, tem uma visão geral da mente e da sua relação com o mundo natural. O leitor (...) não terá dificuldade alguma para reconhecer qual é a minha visão. Vejo o cérebro como um órgão como qualquer outro, como um sistema biológico. Sua característica específica, no que diz respeito à mente, é a característica em que ele difere notavelmente de outros órgãos biológicos, ou seja, é a sua capacidade de produzir e manter toda a enorme variedade que constitui a nossa vida consciente ".

Esta citação de J. Searle permite-nos situá-lo no âmbito das posições que tem assumido relativamente a uma filosofia da mente. A sua perspectiva " naturalista " leva-o a recusar tanto as formas de dualismo de origem cartesiano como o antimentalismo contemporâneo que se lhe opõe. Segundo Searle, os fenómenos mentais estão biologicamente fundados e estruturados: são causados pelos mecanismos cerebrais e realizados na estrutura do cérebro. A consciência e a intencionalidade dependem da biologia humana, do mesmo modo como a digestão ou a circulação sanguínea, isto é, " os estados mentais são fenómenos biológicos. A consciência, a intencionalidade, a subjectividade e a causação mental fazem todos parte da nossa história vital biológica, juntamente com o crescimento, a reprodução, a secreção da bílis e a digestão ".

Numa obra de 1983, intitulada Intentionality An Essay in the Philosophy of Mind, é possível tomarmos contacto com as teses essenciais defendidas por Searle e, posteriormente, desenvolvidas pelo conjunto dos seus ensaios. Nessa obra, o autor elabora uma " teoria da Intencionalidade ", escrevendo o termo com maiúscula, com o objectivo de se afastar do sentido que a filosofia escolástica lhe atribuiu (intencionalidade significava a propriedade do pensamento ser sempre pensamento de um objecto que lhe é distinto; o mesmo conceito foi, mais tarde, reactualizado por Brentano e pela fenomenologia de Husserl), fixando-lhe um novo conteúdo que recusa toda a concepção que coloque o sujeito na origem dos estados de consciência. Afastando-se da perspectiva subjectivista ou personalista, por " Intencionalidade " pretende significar que a relação que o organismo estabelece com o mundo reside na capacidade biológica fundamental da mente. A partir daqui, Searle reconhece que esta mesma propriedade atravessa tanto os actos mentais como os actos da fala. A problemática do " sentido de um enunciado " deve, pois, ser formulada de acordo com as relações entre mente e linguagem, ou seja, a análise do sentido deve orientar-se nos termos de comparação de ambos os actos.

Segundo Searle, no caso dos estados mentais a questão do sentido não se coloca. A intencionalidade é inerente, intrínseca à capacidade representativa de uma crença ou de um desejo. Mas a questão é diferente no caso de um acto de fala. Uma frase - som ou marca sobre um papel - é um objecto como qualquer outro que pertence ao mundo físico. A capacidade de representar uma coisa não lhe é intrínseca, nenhuma frase é intrinsecamente intencional, a sua intencionalidade é derivada, deriva da intencionalidade da mente. O problema do sentido é, por conseguinte, a questionação relativamente ao processo pelo qual o homem atribui intencionalidade a entidades que não são intrinsecamente intencionais, isto é: como entender a intencionalidade derivada, como é que ela se estrutura? A resposta é suficientemente elucidativa para entendermos a hipótese de Searle : " Há quase duas décadas comecei a trabalhar sobre os problemas da filosofia da mente. Necessitava de uma explicação da intencionalidade, para proporcionar tanto um fundamento para a minha teoria dos actos da fala, como para completar a teoria. Do meu ponto de vista, a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente; por conseguinte, nenhuma teoria da linguagem está completa sem uma explicação das relações entre mente e linguagem e de como o significado - a intencionalidade derivada dos elementos linguísticos - está ancorado na intencionalidade intrínseca, biológicamente mais básica, da mente/cérebro " . O que fundamenta a capacidade dos actos da fala representarem coisas e objectos do mundo é uma extensão das capacidades fundamentais da mente humana, e aí poderemos identificar, entre outras, as crenças e os desejos, assim como a acção e a percepção. Tratam-se, efectivamente, de capacidades biológicas da mente (ou do cérebro) que permitem concretizar e incrementar as relações do organismo com o mundo.

De acordo com a sua perspectiva naturalista, Searle propõe a " dissolução" do problema Mente-Corpo ou Mente-Cérebro, afirmando que a realidade dos fenómenos mentais deve ser apreciada segundo a sua natureza biológica e em função da especificidade do " mental ". Deste modo, deveremos aceitar como um princípio óbvio a existência de estados de consciência qualitativamente subjectivos e intrinsecamente intencionais, provocados por processos biológicos a nível neuronal (cerebral). Por seu turno, resulta também clara a indissociabilidade da consciência e da intencionalidade, de modo que um estado intencional inconsciente só se entende enquanto acessível à consciência (é o que designa por princípio de conexão).

2. O "Pretendido" Problema Mente-Corpo

Searle considera que o problema Mente-Corpo, isto é, a forma como a mente se relaciona com o cérebro, tem uma solução ("uma solução muito simples "). Esta assenta nos conhecimentos e nos contributos que a moderna neurofisiologia nos pode fornecer, em conjugação com os dados mais evidentes que nos são facultados pela natureza dos estados mentais, como as crenças, os desejos, as dores, ou a percepção. Contudo, uma incursão pelo campo da Filosofia, ou de certas áreas da Psicologia, e mesmo no âmbito da Ciência Cognitiva, é suficiente para depararmos com dificuldades que obliteram qualquer solução consentãnea para o problema em causa. Daí a interrogação de Searle: " Como é que tantos filósofos e cientistas cognitivos podem dizer tantas coisas que, a mim pelo menos, me parecem obviamente falsas? ". A resposta remete-nos para o contexto dos pressupostos e dos requisitos epistemológicos e vocabulares que fundamentam essas posições teóricas. De facto, os problemas, as problemáticas, organizam-se sempre a partir de um corpo conceptual, que é fixado e configurado por um determinado tipo de discursividade. É no exercício de um uso da linguagem que as questões emergem e são pensadas. Ora, o vocabulário que hoje continua a dominar o estudo dos fenómenos mentais remonta ao século XVII, logo é obsoleto e os seus pressupostos apresentam-se como falsos. Tanto o dualismo como o materialismo, que é actualmente prevalecente, não são respostas eficazes que possam contribuir para a elucidação do problema Mente-Corpo. " Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo é assustadoramente difícil, talvez mesmo totalmente irressolúvel. Os materialistas estão de acordo em que se a intencionalidade e a consciência existem realmente e são irredutíveis aos fenómenos físicos, então teríamos realmente um difícil problema mente-corpo, mas esperam " naturalizar " a intencionalidade e mesmo a consciência também. Por " naturalizar " os fenómenos mentais entendem reduzi-los a fenómenos físicos. Pensam que aceitar a realidade e a irredutibilidade da consciência e de outros fenómenos mentais nos compromete com alguma forma de cartesianismo, e não vêem como tal ponto de vista pode ser consistente com a nossa representação científica global do mundo " .

Searle procura superar as duas doutrinas em confronto ( e que se oferecem a si mesmas como únicas alternativas ), visando, como objecto privilegiado de crítica, o materialismo dominante, que se afirma mais pela recusa das teses opostas, a que atribui um carácter anticientífico, do que propriamente pela convicção e coerência interna dos seus enunciados.

A concepção materialista da mente subentende várias perspectivas (Searle enumera seis), tendo em comum o facto de negarem, ou pelo menos duvidarem, da existência dos fenómenos mentais, como a consciência, a intencionalidade e a subjectividade. Sucintamente, poderemos identificar algumas modalidades, como o " materialismo eliminativo ", que recusa em absoluto qualquer fenómeno mental, ou o " funcionalismo ", que descreve a mente segundo relações causais que se estabelecem com base em inputs e outputs. Outra perspectiva, com alguns adeptos, recusa a existência da consciência, ou pelo menos, retira-lhe qualquer conteúdo subjectivo ou qualitativo, desloca os fenómenos mentais do plano pessoal para um plano objectivamente observável de terceira pessoa. Contudo, a concepção que parece hoje suscitar maior entusiasmo é a que Searle denomina por " IA forte ". Segundo esta visão, o cérebro é comparado a um computador digital e a mente a um programa de ordenador, com inputs e outputs apropriados. As consequências são óbvias, o cérebro, tal como um computador ( não se trata de uma comparação figurada ou metafórica, mas literal ) não se caracteriza ao nível do seu funcionamento neurofisiológico e consciente, mas ao nível de um sistema de processamento de informação.

Searle reconhece uma tradição no materialismo moderno que permite compreender os fundamentos epistemológicos que estruturam a defesa das suas posições, relativamente a uma filosofia da mente. É possível identificar um corpo teórico organizado com base em alguns princípios fundamentais. Por um lado, afirma--se o carácter intrinsecamente objectivo da realidade, a que o conhecimento científico tem acesso. A ciência é objectiva não, apenas, porque é independente de todos os pontos de vista, mas, sobretudo, porque possui os mecanismos teóricos e instrumentais próprios que lhe permite apropriar-se objectivamente da realidade. A este princípio associa-se, por outro lado, a certeza de que a realidade física, objecto da ciência, é susceptível de uma total apreensão cognitiva. Para a ciência todo o universo é cognoscível, e é-o, porque, em última instância, a multiplicidade do real encontra a unidade das coisas no facto de todas elas serem de natureza física.

Transpondo estes mesmos princípios para o plano de uma filosofia do mental, as consequências parecem evidentes. Há que recusar todo o tipo de dualismos e de mentalismos. O estudo da linguagem, das crenças e desejos, ou da cognição, isto é, dos estados mentais em geral, deverá obliterar, pura e simplesmente, o recurso à consciência ou à subjectividade. A ciência cognitiva institui, como objecto da sua investigação, os fenómenos que são estrita e objectivamente observáveis, ou seja, adopta o ponto de vista de terceira pessoa. O estudo da mente integra-se, deste modo, dentro de um quadro de contornos precisos, que é a metodologia que assenta na observação da conduta. Trata-se de uma exigência radical de cientificidade, em que a objectividade e o rigor são condições de base. É mediante a conduta que poderemos entender se algum outro sistema ( metodologia de terceira pessoa ) tem ou não tem estados mentais e quais são as suas propriedades. Identificam-se aqui as posições radicais do " condutismo " e do " funcionalismo ", com as suas nuances, ao estabelecerem a conexão mente-conduta ou processos internos-critérios externos, respectivamente.

Searle, como dissemos, é um critico acérrimo da concepção materialista do mental, tal como recusa as posições defendidas pelas teses dualistas. O facto de se centrar, particularmente, em torno dos argumentos dirimidos pelos materialistas, resulta, tão só, do carácter de alguma consensualidade que estes suscitam no mundo da filosofia e da ciência da mente.

Vejamos, então, quais são os contra-argumentos que Searle nos oferece.

Em primeiro lugar, o autor afirma a importância da consciência como uma das características dos fenómenos mentais. É suficientemente claro quando refere: " não há maneira de estudar os fenómenos da mente sem estudar, implícita ou explicitamente, a consciência. A razão básica é que não temos realmente noção alguma do mental fora da nossa noção de consciência ". Parece-nos que esta é uma das afirmações mais importantes e de maior alcance para compreendermos a postura de Searle em relação à compreensão da mente. É através da interpretação da consciência que se pode oferecer um quadro de elucidação do que é especificamente humano, como a linguagem, o conhecimento, o amor ou a angústia. Um mundo sem tais estados e eventos mentais conscientes, perde qualquer conteúdo de sentido para o homem que se situa face a ele. A questão não será, então, a existência da consciência, mas como é possível o cérebro, entidade fisiológica, produzi-la, porque é um facto real e irredutível que existe como qualquer outra coisa no Universo.

Da consequência deste princípio resulta que só é possivel conceber um estado mental desde que ele seja dado à consciência. Por outras palavras, se a maior parte dos fenómenos mentais ocorrem, num momento dado, independentemente da consciência, tal significa apenas que estamos perante estados inconscientes derivados dos fenómenos conscientes. De outro modo, não haveria possibilidade alguma para se enunciar esses fenómenos. " A noção de estado mental inconsciente implica acessibilidade à consciência. Não temos noção alguma do inconsciente excepto como aquele que é potencialmente consciente ".

Em correlação com a existência irredutível da consciência, é necessário afrimar, em oposição a uma perspectiva epistemológica e ontológica de terceira pessoa, a dimensão subjectiva do mental. Consciência e subjectividade caracterizam a actividade mental humana. A relação que cada um estabelece com o mundo, no plano ( consciente ) das suas crenças e desejos, insere-se no âmbito das suas perspectivas pessoais e subjectivas. Negar a subjectividade vivida no plano da consciência individual é tratar o mental segundo um sistema de produção de causas e efeitos ( " funcionalismo " ), ou reduzi-lo ao que é objectivamente observável ( " condutismo " ) ou, simplesmente, elidir os estados mentais, por se tratar de algo vazio e pouco sério ( " materialismo eliminativo " ). Ou, ainda, atribuir aos estados mentais características computacionais ( " IA forte " ). Qualquer uma destas posições alicerça--se no pressuposto de que uma concepção científica da realidade exige a eliminação de toda a componenente subjectiva ( preocupação de ordem epistemológica ) e de que não há elementos subjectivos no real que não possam ser convertidos a uma ordem de objectividade ( preocupação onto-epistemológica ).

Poderíamos atender aos contributos da física quântica e da teoria da relatividade e reconhecer o papel da subjectividade (e da consciência) na definição e construção do objecto do conhecimento. Mas, continuando com a análise dos argumentos de Searle em defesa da sua filosofia do mental, esta supõe uma ontologia subjectiva dos estados mentais, o que conduz, liminarmente, a recusar a metodologia de investigação que se orienta, em exclusivo, para as condutas objectivamente observáveis.

A preocupação epistemológica objectivista sugere que se não escaparmos da subjectividade e da consciência não será possível constituir uma ciência da mente. O problema é, então, colocado

(erradamente) em termos de ou " introspecção" ou "conduta ". A conduta observada é que pode eleger-se como objecto da ciência, sendo intolerável que haja ontologicamente realidades não observáveis, privadas, subjectivas, e que epistemologicamente se assista a uma dissonância entre o plano individual das experiências mentais vividas e o que os outros conhecem como observadores exteriores. Assim, se impõe uma ontologia de base epistémica, condutista e de terceira pessoa.

Para Searle tudo isto resulta de equívocos. A "solução " tradicional para o " problema das outras mentes " é inconsistente. A legenda mesma-conduta-ergo-mesmos-fenómenos-mentais não é aceitável. Se pensarmos em objectos do mundo com comportamentos conscientes ( cães e gatos, por exemplo ) e objectos que o não são ( um automóvel, um rádio ), reconhecemos que não nos baseamos, para fazer essa distinção, no fenómeno da " conduta" que esses objectos nos podem oferecer, mas na concepção causal que nós próprios construímos relativamente ao funcionamento das coisas no mundo. Estaria aqui, segundo o autor, o erro do teste de Turing. Melhor, a evidência dessa distinção reside no conjunto dos nossos próprios saberes e capacidades mentais ( Background ), que nos leva a estabelecer relações com o mundo, integrando- -nos nele. Isolar a conduta é um erro, erro que reside na ilusão de que a simples observação é suficiente ( e desejável ), para termos acesso ao conhecimento dos fenómenos mentais. O que devemos é atender à " combinação da conduta com o conhecimento dos apoios causais da conduta que forma a base do nosso conhecimento " .

As relações entre a epistemologia e a ontologia não são questões despiciendas. Sabemos que a construção de processos eficazes ( a nível da metodologia e da definição do objecto científico ) de inteligibilidade do " real " coloca problemas de natureza epistémica. Searle reivindica ( é um facto a polémica que a problemática aqui envolvida coloca à epistemologia contemporânea ) uma espistemologia do mental definida em termos de uma investigação orientada, não para a determinação de uma ontologia a posteriori, mas para a identificação de uma ontologia preexistente.

É para nós evidente o núcleo de questões aqui suscitado. As relações entre uma filosofia do mental e uma meta-filosofia do mental exigiriam uma investigação própria, cujo alcance não se pode limitar a breves referências. A obra de Searle é, no seu conjunto, um corpo teórico complexo e controverso, suficientemente motivador para ulteriores análises e reflexões. Limitemos-nos, por agora, em assinalar aqueles aspectos que nos parecem essenciais e que ancoram as suas posições, no que concerne à compreensão do fenómeno dos estados mentais.

O fenómeno que Searle desinga por causação intencional permite-nos compreender melhor a sua afirmação sobre o carácter meramente contingente que caracteriza as relações entre os estados mentais e a conduta.. A consequência significa que é possível a existência de estados mentais sem a conduta e vice-versa. " Na vida real a nossa conduta é crucial para a nossa mesma existência, mas quando estamos a examinar a existência dos nossos estados mentais como estados mentais, a conduta correspondente não é nem necessária nem suficiente para a sua existência ". A perspectiva condutista é aqui particularmente atingida na visão que formula ao encarar como essencial a conexeção entre mente e conduta. Searle sugere várias experiências no campo da neurofisiologia para criticar essa visão e confirmar a sua teoria da intencionalidade, que recusa toda a visão reducionista e simplista acerca das relações mente-conduta ( experiências realizadas por Wilder Penfield de Montreal e outras que remontam a William James ).

Antes de explicitarmos, concretamente, como Searle entende que o problema Mente-Corpo pode ter uma solução, refira-se os últimos argumentos com que pretende abalar os princípios teóricos que enformam as concepções actualmente dominantes no âmbito da filosofia da mente.

Contra a visão optimista da cognoscibilidade total da realidade ( logo o mental, como coisa real, não escapa a esse optimismo ) , propõe-se um ponto de vista mais moderado. Se potencialmente é positiva essa crença, é necessário reconhecer que são as características dinâmicas do nosso cérebro que nos colocam, por intermédio dos seus produtos, numa atitude cognitiva face ao mundo. Construímos a filosofia, a ciência, a linguagem ( segundo Searle, por excesso de neurónios ) como instrumentos de interpelação da realidade, mas não podemos captá-la na totalidade dos seus fenómenos. Sabemos que há limites, embora não possamos fixar esses limites. O processo de cerebralização ( estruturas neurofisiológicas ) condiciona-nos e determina-nos. Mas a essa crença associa-se o conceito de " físico " como res extensa ( de origem cartesiano ). Curiosamente, tanto o dualismo como o monismo materialista partilham, em traços gerais, da mesma concepção acerca do que é o " fìsico ". O importante, como nos diz Searle, é retorquir a falácia da oposição entre o " físico " e o " mental" que daí decorre. A teoria da res extensa cartesiana não é aplicável nem à compreensão do que é físico, nem à compreensão do que não é.

Que alternativa se pode oferecer, então, ao estudo das relações Mente-Corpo? Como entender os fenómenos mentais? As perspectivas dicotómicas ( ou dualismo, ou materialismo ) não parecem satisfazer qualquer resultado que se pretenda sério. No mundo parece-nos óbvia a existência de realidades mentais, como os sentimentos e os pensamentos, as crenças e os desejos, com características que nos levam a classificá-las como conscientes, subjectivas e imateriais. Também as realidades físicas são para nós evidentes, possuem extensão, massa e interagem em processos de causalidade. Ao transpormos estas evidências para o problema Mente-Corpo, deparamos com dificuldades, dificuldades que resultam de se procurar negar ou desvalorizar um ou outro tipo de realidade. A doutrina com mais seguidores é, como já o dissemos, aquela que, bebendo no desenvolvimento das ciências físicas, tende a negar, de um modo ou outro, a existência de estados mentais subjectivos e conscientes.

Segundo Searle, a nossa via mental é um facto e nela se alinham quatro características, a consciência, a subjectividade, a intencionalidade e a causação mental. Perceber a actividade mental e as relações Mente-Cérebro exige, precisamente, que se considerem essas várias dimensões.

Todos os fenómenos mentais são mentais porque são causados por processos que ocorrem no cérebro. Daí se poder aventar algumas hipóteses, como, por exemplo, a que decorre da aplicação da anestesia cirúrgica. É possível accionar o funcionamento do sistema nervoso central, no sentido de ele produzir um determinado estado mental, sem que haja qualquer estimulação externa. Do mesmo modo, acontecimentos que não desencadeiam actividade cerebral não produzem fenómenos mentais.

Os fenómenos mentais são causados pelos mecanismos cerebrais. Mas não é suficiente esta afirmação para compreendermos a sua fundamentação biológica. Causados e realizados na estrutura do cérebro, ou seja, a causa são os processos cerebrais, a nível neuronal ou modular, enquanto se realizam, simultaneamente, na estrutura neuronal

A intuição de Searle para a resolução das relações Mente-Cérebro baseia-se, por analogia, na distinção entre um nível micro e um nível macro, comum nos sistemas físicos. A convivência entre esses duas instâncias leva-nos a dizer que o que se passa ao nível da superfície dos fenómenos advém das características dos sistemas em que eles se inserem. Por outras palavras, os resultados de superfície caracterizam o que é macro no sistema, sendo esses resultados causados pelo comportamento dos micro--elementos.

Transpondo a distinção micro/macro para o cérebro, poderemos encará-lo como um sistema, cujo comportamento é similar ao conjunto dos fenómenos naturais. As coisas mentais são " causadas por " e " realizadas nas " micro-estruturas neuronais que constituem o sistema cerebral.

Se os fenómenos mentais são causados pelo cérebro e são, precisamente, características dele, então a consciência, a intencionalidade, a subjectividade e a causação, têm uma explicação plausível, permitindo-nos uma solução aceitável em termos de resposta para o problema Mente-Corpo.

Mecanismos neurofisiológicos causam a consciência, sendo a maior parte da consciência, se não toda, intencional. " Em geral, em qualquer estado consciente, o estado dirige-se até uma ou outra coisa, incluindo aquele que se dirige ao que não existe, tem neste sentido intencionalidade. Para um grupo de casos muito extenso, a consciência é, efectivamente, consciência de algo e o " de " na " consciência de " é o " de " intencionalidade " .

Há uma conexão íntima entre consciência e intencionalidade. Se se pode proceder a uma análise isolada da estrutura lógica do fenómeno da intencionalidade, qualquer concepção que vise uma teoria geral exige uma compreensão pregnante do fenómeno dos estados conscientes. Mais, a teoria deverá abranger os estados inconscientes, que sendo também eles intencionais, são potencialmente conscientes ( cf. princípio de conexão: todos os estados intencionais inconscientes são, em princípio, acessíveis à consciência ).

As experiências conscientes são experiências dirigidas para alguma coisa e sempre segundo um determinado ponto de vista, uma perspectiva, uma moldura que as configura. A esta perspectiva, Searle designa por contorno de aspecto. " Poderíamos dizer que todo o estado intencional tem um certo contorno de aspecto, e este contorno de aspecto é parte da sua identidade, parte do que o faz ser o estado que é ".

A subjectividade, outras das características dos fenómenos mentais, assume grande importância para os problemas que se colocam a uma filosofia da consciência. Searle refere algumas dificuldades, ancoradas em determinados modelos de interpretação da realidade, que impedem a aceitação de se constituir uma teoria científica que reconheça a subjectividade como um facto objectivo ( um facto objectivo da biologia ). O que ele propõe é que se encare o termo " subjectivo " como uma categoria ontológica ( o que efectivamente existe ) e não como uma categoria epistemológica. O fenómeno da dor pode elucidar-nos. Se eu tenho consciência de uma dor localizada, tenho-a como um facto indesmentível, sinto-a em mim como algo real mesmo. O meu estado de consciência é uma característica do meu cérebro, cuja dimensão consciente não pode ser partilhada por nenhum outro. É este o sentido da existência de subjectividade. " E o que é verdade para as dores é verdade para os estados conscientes em geral. Todo o estado consciente é sempre o estado consciente de alguém. E, do mesmo modo em que tenho uma relação especial com os meus estados conscientes, que não é como a minha relação com os estados conscientes de todos os outros, eles têm uma relação com os seus estados conscientes que não é igual à relação que eu tenho com os seus estados conscientes. A subjectividade tem a consequência adicional de que todas as minhas formas conscientes de intencionalidade, que me dão informação sobre o mundo independente de mim, são sempre de um ponto de vista especial. O mundo não tem mesmo nenhum ponto de vista, mas o meu acesso ao mundo, através dos meus estados mentais, é sempre segundo uma perspectiva, segundo o meu ponto de vista " .

A ontologia de primeira pessoa, defendida aqui de um modo suficientemente claro, não deve deixar dúvidas, no que concerne a tentativas de identificação do autor com a psicologia introspectiva ou com o chamado acesso privilegiado, veementemente por ele recusados como modelos condenados ao fracasso. O apelo de Searle, é que se reconheçam os factos ( factos externos à problemática da distinção observação/ coisa observada ), e estes indicam-nos que o processo de evolução biológica produziu sistemas cerebrais, sistemas que têm a caraterística de causarem estados conscientes irredutivelmente subjectivos.

Ora, o que se releva é que no Universo há estados mentais, muitos são conscientes, têm intencionalidade e todos possuem subjectividade. O pensamento e a liguagem, as dores e as percepções, são produzidos por processos que ocorrem no cérebro. A causação mental pode ser descrita por uma relação causal abaixo-acima, ou seja, " os fenómenos macromentais são causados por microfenómenos de nível inferior " , por outras palavras, ambos os fenómenos são causalmente reais, a intencionalidade de provocar uma acção concreta consciente (nível superior) e a actividade electroquímica que ocorre na estrutura neuronal (nível inferior).

3. Intencionalidade, Rede e " Background "

A propósito do que Searle designa por Background, consideremos o que ele próprio nos diz: " A tese do Background é, simplesmente, esta: os fenómenos intencionais, tais como significados, compreensões, interpretações, crenças, desejos e experiências, somente funcionam dentro de um conjunto de capacidades de Background, que não são em si mesmas intencionais. Outro modo de enunciar esta tese é dizer que toda a representação, seja na linguagem, seja no pensamento ou na experiência, só pode ter êxito ao representar um dado conjunto de capacidades não representacionais. No meu jargão técnico, os fenómenos intencionais só determinam condições de satisfação em relação a um conjunto de capacidades que não são intencionais ".

Os conceitos que estão aqui em causa (o jargão técnico) relacionam-se, directamente, com uma determinada concepção do comportamento humano. Searle constrói uma filosofia da acção (em oposição quer ao mentalismo quer ao behaviorismo), pretendendo dar resposta a alguns dos problemas que constituem o núcleo essencial das suas preocupações, nomeadamente, a questão da relação Mente-Corpo ou da identificação, que rejeita, do cérebro como um ordenador digital.

Segundo o autor, as acções humanas possuem características próprias, implícitas, que as tornam distintas em relação a todos os outros acontecimentos do mundo natural. A tipologia das acções é mais diversificada que a tipologia dos movimentos corporais; só algumas descrições são relevantes para o propósito das acções; não há nenhum nexo entre a concretização da acção e a sua observação pelo sujeito da conduta; os princípios de identificação e de explicação são inerentes à estrutura da acção.

O cerne de toda a acção humana reside na sua intencionalidade, conferindo-lhe um conteúdo fundado, que se pode realizar em diferentes tipos ou modos psicológicos. O conteúdo da intencionalidade plasma-se num determinado modo ou tipo mental (crença, desejo, intenção; ao mesmo conteúdo podem corresponder diferentes tipos, como vemos). Por outro lado, poder-se-á falar em condições de satisfação, desde que o conteúdo dos estados mentais estejam em harmonia com o mundo que representam, ou não (êxito ou fracasso). No que concerne à causação intencional, essencial para a descrição da estrutura do comportamento, ela diz respeito à relação causal (cujas leis se afastam do princípio comum da causalidade) que se estabelece entre os estados mentais e os efeitos produzidos que aqueles representam. Tal significa que o conteúdo do comportamento são os estados mentais internos que o causaram.

É a intencionalidade que nos esclarece a relação entre as componentes da acção, a mental e a física. Há uma intenção mental em produzir determinados eventos físicos, segundo condições de satisfação. Os fenómenos mentais são causados por processos cerebrais que fazem ocorrer ( mais ) aquilo que mentalmente representam, dando-lhe causa. É este o conceito de causação intencional ou mental que Searle propõe, algo faz acontecer alguma coisa mais.

Searle considera necessário distinguir, na estrutura intencional das acções, aquelas que obedecem a uma prévia ponderação e reflexão (intenções anteriores, resultam do que se disigna por raciocínio prático ) e as que são imediatas e espontâneas ( intenções na acção). Trata-se de uma distinção importante que nos deve evitar cair em equívocos. Se toda a acção é intencional, desde logo porque esboçamos uma finalidade e os meios para a alcançar, ou seja, temos sempre alguma concepção do que fazemos, nem toda a intenção pressupõe deliberação (raciocínio prático), enquanto análise prévia dos " prós " e dos " contra " da realização da acção. Neste último caso, a intenção acompanha o decurso da acção.

Detenhamo-nos agora, concretamente, nas acções que são fruto de um raciocínio prático. Todo o processo de reflexão e de deliberação pressupõe algum conflito. Temos de avaliar situações, poderando os aspectos positivos e negativos, que sempre concorrem na realização de um projecto concebido. Decidir é o acto pelo qual nos determinamos a agir. Perante o quadro das vias possíveis para a acção, optamos por uma delas. A escolha efectuada traduz que da comparação dos motivos resultou a relevância de uns em detrimento de outros. Realizar, efectivamente, a acção é passar da intenção ao acto que a concretiza, mobilizando energias tendentes a executar, na prática, aquilo que se decidiu.

A análise da acção humana (análise que tem sido objecto de investigação por algumas das correntes da filosofia contemporânea, como, por exemplo, a Filosofia Analítica e a Fenomenologia e a Hermenêutica, o que significa que não é um assunto tão negligenciado como Searle chegou a sugerir) revela-nos que agir significa produzir um efeito, implicando a vontade e a consciência. E o que fazemos conscientemente (os estados intencionais inconscientes são potencialmente conscientes, como já o dissemos) envolve, portanto, uma finalidade, uma intenção. Só age humanamente aquele que sabe o que faz e porque o faz. A intenção é a parte activa, é sempre intenção de fazer algo.

Por tudo o que temos vindo a dizer, é agora possível tentar entender o sentido dos conceitos de Rede e Background, e como se articulam em relação à explicação das acções. Deveremos reter, como princípio, que as acções humanas possuem características peculiares que as distinguem de todos os outros acontecimentos naturais que ocorrem no mundo. Daí, se exigir, também, um processo de explicação particular, tendo em conta essas mesmas especificidades. Já o dissemos, quando considerámos que a causalidade dos estados mentais não se confunde com a causalidade dos fenómenos naturais. A filosofia da acção que Searle pretende elaborar, é, neste ponto, suficientemente elucidativa e precisa.

Toda a acção é impulsionada por estados mentais, psicológicos. Ora, estes estados mentais, esta energia mental, sendo a causa são, simultaneamente, a representação dos efeitos que causam. Explicar as acções é reconhecer uma similitude substancial, entre o próprio conteúdo da explicação do comportamento e o conteúdo da causa que o provoca. Se todos os estados mentais são intencionais (são as próprias intenções), são-no pelo facto de se estruturarem na elaboração do raciocínio prático que conduziu à intenção de provocar uma determinada acção.

Vimos que os estados intencionais determinam as suas condições de satisfação. Mas, geralmente, qualquer estado exige um conjunto de outros estados, ou seja, uma crença ou um desejo particulares apelam, como deles fazendo parte, para uma Rede de outras crenças e desejos.

A este propósito, diz-nos Searle:

" 1. Os estados intencionais não funcionam autonomamente. Não determinam isoladamente as condições de satisfação.

2. Cada estado intencional requer para o seu funcionamento uma Rede de outros estados intencionais. As condições de satisfação só se determinam de maneira relativa à Rede.

3. Inclusive a Rede não é suficiente. A Rede só funciona de maneira relativa a um conjunto de capacidades de Background.

4. Estas capacidades não são e não podem ser tratadas como meros estados intencionais ou como parte do conteúdo de algum estado intencional particular.

5. O mesmo conteúdo intencional pode determinar diferentes condições de satisfação ( tais como as condições de verdade ) e com relação a algum Backgroung não determina nenhuma em absoluto " .

A Rede é, por conseguinte, um quadro de estados intencionais, em que cada estado particular só adquire o seu significado próprio ( só funciona ) inserido no conjunto de que todos fazem parte integrante.

Se cada estado intencional tem de ser referenciado a uma Rede de outros estados, esta, por sua vez, é parte do Background .

Os argumentos a favor do Background - visando uma investigação que pretende esclarecer as relações entre a consciência, o inconsciente e a intencionalidade - mereceram de Searle algumas explicações, que desenvolveu ao longo de vários trabalhos, no sentido de explicitar e consubstanciar essa hipótese. Numa obra de 1979, " Expression and Meaning ", propõe-se investigar o sentido oculto que percorre um enunciado ambíguo (rigorosamente nada há de oculto e ambíguo ou metafórico, o que se pretende dizer é que " o mesmo significado literal determinará condições de satisfação diferentes, por exemplo, diferentes valores de verdade, com relação a diferentes suposições de Background, e alguns significados literais não determinarão condições de verdade por causa da ausência de pressuposições de Background apropriadas ".), ou seja, aquele em que o significado expresso não coincide rigorosamente com o significado que o emissor pretende atribuir. Partindo da análise do enunciado " Pode-me passar o sal ? ", desenvolve e estabelece um " princípio de conversação ": em todo o processo de comunicação o locutor emite uma mensagem que diz mais ao receptor do que diz efectivamente, apoiando-se sobre um Background de informações partilhado por ambos. Os interlocutores entendem-se em função das regras fixadas pelos actos de fala directos. O receptor reage sempre de um modo esperado pelo emissor, pois identificou os elementos linguísticos que presidem em cada " acto ilocucionário".

Não pretendemos afastar-nos demasiado da questão essencial que aqui se coloca. Contudo, parece-nos importante reter algumas ideias essenciais relativas à pragmática da língua.

Searle e Austin, filósofos pertencentes ao movimento da filosofia analítica ("Escola de Oxford "), dedicaram-se ao estudo das linguagens quotidianas, particularmente à análise do uso de determinadas expressões dentro de contextos linguísticos e extralinguísticos precisos. Influenciado por Austin, Searle constrói a sua própria teoria, que elimina toda a significação prévia ao acto de fala. "Acto", porque acção que se realiza através de uma emissão linguística. Por outro lado, este " acto " ilocucionário é a unidade primordial que está na base de toda a comunicação humana. Em cada acto de fala Searle distingue um conteúdo proposicional e a força ilocucionária que o acompanha. Frases diferentes, ou a mesma frase em contextos distintos, podem ter em comum a mesma proposição, e a força ilocucionária variar, segundo o modo como a frase é proferida, ou de acordo com o objectivo que é explícito.

A filosofia da linguagem definida por Searle tem consequências amplas. Na base das suas teses reconhece-se a impossibilidade de separar a actividade falante do seu contexto interhumano, o que desde logo implica que os comportamentos coerentes, no que concerne ao uso da linguagem, se apoiam em regras pragmáticas e não na lógica pura. Regras que impedem a retradução das linguagens naturais numa linguagem simbólica formal. Se tivermos que falar na moderna teoria da significação e da comunicação, apercebemo-nos que estas concepções rompem com o logicismo de Russell e do Wittgenstein do " Tractatus " , aproximando-se das posições de Perelman e Meyer, por exemplo. A significação é hoje perspectivada em função dos contextos do uso comunicacional da linguagem, e não já apenas em função de um sistema formal de regras lógicas, sistema que é sempre redutor.

Voltando à hipótese do Background, poderemos agora compreender, com maior rigor e precisão, como tal hipótese é subsidiária de uma teoria da representação. Partindo da análise das proposições, " a mesma expressão literal pode assumir a mesma contribuição na emissão de uma grande variedade de orações e contudo, embora essas orações se compreendam literalmente - não há questão alguma de metáfora, ambiguidade, actos de fala indirectos, etc. -, a expressão será interpretada diferentemente nas diferentes orações. Porquê ? Porque cada oração interpreta-se tendo em conta um Background de capacidades humanas (habilidades para tomar parte em certas práticas, saber como, modos de fazer coisas, etc.), e essas capacidades fixarão diferentes interpretações, mesmo se o significado literal das expressões permanece constante ".

O significado literal das proposições é absolutamente essencial, temos de atender à composição semântica e estrutural das frases, mas essa componente representacional não é só por si suficiente, é necessário apelar a outros elementos não representacionais e que produzem os seus efeitos, isto é, todo o enunciado postula um Background de capacidades. Todo o enunciado e não, como aparentemente se poderia supor, apenas aqueles que, pelas suas características lexicais e estruturais, encerram alguma ambiguidade ou simulam conteúdos implícitos que a emissão literal oculta. Nenhuma mensagem, nenhuma oração é suficientemente explícita, ou se quisermos, literal em absoluto, o que implica que qualquer esclarecimento adicional à interpretação, na tentativa de fixar um sentido preciso, é por si inconsistente. Não só porque seria sempre possível recorrer a novos esclarecimentos suplementares, mas também porque estes seriam objecto de diferentes interpretações num processo interminável de representação.

Searle alerta-nos para o facto de que as suposições de Background têm um alcance mais amplo que a mera interpretação de orações, afectam a estrutura formal de toda a linguagem. Sem essas suposições qualquer significado literal é ininteligível. Por mais que se preencha a sua inevitável incompletude, as condições de verdade só se podem determinar em função de capacidades de Background. " Se se faz uma ruptura radical entre significado e Background então, pelo que respeita ao significado, qualquer coisa vale; isto implica que a compreensão normal ocorre só relativamente a um Background ".

Procuremos agora entender as relações entre a consciência, o inconsciente e a intencionalidade, que Searle estabelece a partir da tese do Background. O que importa aqui não é aprofundar uma teoria da representação, mas recorrer a esta para elaborar uma teoria da mente.

Primeiramente, deve-se recusar a imagem do mental como um repertório (um inventário) de estados mentais, alguns conscientes, outros inconscientes. As crenças, os desejos, os nossos conhecimentos, não estão armazenados no cérebro. O que ocorre a nível cerebral são conexões neurofisiológicas complexas, distintas da consciência, mas que causam, às vezes, estados conscientes que possibilitam o pensamento e a conduta em situações determinadas. Por seu turno, os estados inconscientes significam as capacidades cerebrais para gerar consciência.

É a hipótese do Background que nos esclarece as várias relações que aqui se cruzam. Todos os conteúdos mentais requerem, por mais explícitos que possam ser, um conjunto de capacidades de Background. A intencionalidade consciente exige, como condição de satisfação, algo mais que não é, nem pode ser, dado pelo conteúdo, em si, desse mesmo estado. " Para ter um pensamento consciente, tem-se que ter a capacidade de gerar muitos outros pensamentos conscientes. E esses pensamentos conscientes requerem todos eles capacidades adicionais para a sua aplicação " .

A distinção entre Rede e Background (assim como a afirmação de que a Rede é parte do Background) surge de um modo claro se considerarmos que, no âmbito das capacidades referidas, algumas foram adquiridas de um modo consciente, permitindo-nos realizar acções conscientemente, aplicando regras, leis, desejos, crenças. Searle sugere o exemplo das regras de basebol que qualquer um pode saber se lhe ensinaram. Por outro lado, o exemplo ainda é seu, ninguém nos ensinou que os objectos são sólidos. O essencial da distinção decorre deste facto. Contudo, as condições de satisfação dos estados intencionais são sempre relativas a um conjunto de capacidades de Background. " Embora o Background não seja, em si mesmo, intencional, qualquer manifestação do Background, quer seja na acção, na percepção, etc., tem que entrar em jogo sempre que há alguma intencionalidade, consciente ou inconsciente. (...) O Background consiste em capacidades mentais, disposições, posturas, modos de comportamento, saber como, savoir faire, etc., os quais só podem manifestar-se quando quando há algum fenómeno intencional, tal como uma acção intencional, uma percepção, um pensamento, etc. "

4. Crítica ao Paradigma Dominante

As posições de Searle defendidas e propostas como solução para o problema Mente-Corpo, articulam-se, coerentemente, com a crítica que formula às concepções, dominantes em Filosofia e Psicologia, que pretendem estabelecer uma analogia entre os processos realizados a nível do cérebro e o funcionamento dos computadores digitais. De acordo com este paradigma dominante, a analogia sugerida fornece-nos uma interpretação dura, isto é, deve ser encarada num sentido literal e não metafórico. Há algumas ideias básicas que nos dilucidam sobre as teses essenciais da afirmação computacional. Desde logo, trata-se de negar o carácter substancialmente biológico da mente humana. A inteligência pode ser definida segundo uma actividade de simples manipulação de símbolos físicos. É possível pensar-se em sistemas, tecnologicamente evoluídos, capazes de produzirem inteligência, desde que tenham um hardware compatível e programas correctamente concebidos. No cerne deste argumento, ressaltam alguns dos princípios que enformam a corrente principal da actual Ciência Cognitiva: o cérebro é comparado a um computador e os fenómenos mentais comparados a um programa computacional. A Ciência Cognitiva só tem a beneficiar se atender aos contributos que a inteligência artificial (IA) puder facultar. Por outro lado, afirma-se, com alguma ênfase, que a cognição humana é, fundamentalmente, resultado de processos mentais inconscientes e, por esse mesmo facto, computacionais. Não é exagerado concluir, que a descrição do funcionamento cerebral é análoga à descrição do funcionamento dos ordenadores digitais.

Searle, procurando ser preciso na sua crítica à razão cognitiva, estabelece, com precisão, as versões que caracterizam o paradigma dominante: " Chamo IA forte ao ponto de vista de acordo com o qual tudo aquilo que consiste em ter uma mente é ter um programa. IA débil ao ponto de vista de que os programas cerebrais ( e os processos mentais ) podem simular-se computacionalmente, e cognitivismo ao ponto de vista de que o cérebro é um ordenador digital " .

A crítica de Searle centra-se, particularmente, nos princípios que configuram e sustentam a versão cognitivista (cujos pressupostos já foram expostos).

O cognitivismo, nos seus fundamentos essenciais, tem uma origem, uma história. Searle designa-a por História Primigénia, fazendo-a remontar aos trabalhos de Turing, que, em traços gerais, procura relacionar a inteligência humana e os processos computacionais.

Turing propõe um jogo ("o jogo da imitação "). Nele competem um ser humano, A, e um computador, B. Perante as perguntas formuladas, A tem como objectivo convencer, com as suas respostas, uma terceira entidade, C, que é o ser humano, e B visa que C o identifique (erradamente) como humano, ou, pelo menos, que tenha dificuldade em destrinçar o humano e a máquina. Diz-nos, a propósito, M.S. Lourenço: " O argumento de Turing é o seguinte: se acerca de uma pessoa que desempenhe o papel de A se está autorizado a afirmar que ela pensa, na base das estratégias que ela desenvolveu para iludir C, então também se está autorizado a dizer que o computador pensa, se este desempenha o mesmo papel do que A ou o seu comportamento é idêntico ao deste. O teste de Turing é típico da tendência behaviorista. De acordo com esta tendência, um computador tem estados ou operações que podem ser considerados como estados de consciência de um ser humano, de tal modo que se pode fazer a atribuição destes estados ao computador. Inversamente, como o computador é destituído de intencionalidade, o mesmo argumento pode ser usado para demonstrar que se pode eliminar a intencionalidade na filosofia da consciência "

Os pressupostos teóricos deste jogo estão, nesta citação, devidamente explicitados. Se admitirmos que algumas das capacidades mentais humanas são algorítmicas e que para todo o algoritmo há sempre uma máquina de Turing que pode processar o cálculo algorítmico, então é possível simular o mesmo programa implementado no cérebro num ordenador digital. Poderemos dizer que, embora se trate do mesmo algoritmo, a nível do cérebro humano estamos perante processos conscientes (intencionais), enquanto que a nível mecânico os processos não são conscientes (intencionais). Mas o argumento da simulação em nada reduz a sua pertinência, pois é razoável admitir que muitos processos mentais não são conscientes e são, de igual modo, computacionais. O que se pretende é construir programas que, sendo análogos aos implementados no cérebro, nos esclareçam sobre o modo de funcionamento dos processos mentais. Daqui se infere que se consideram similares os processos internos realizados pelos dois modelos de ordenadores, o humano e o mecânico.

Para se compreender, com rigor, as críticas de Searle às teses cognitivistas, é necessário atender a mais algumas questões, que são cruciais. Não são os programas computacionais meramente sintácticos, enquanto as mentes, além de uma estrutura formal de sintaxe, não possuem um conteúdo semântico ?

De acordo com a hipótese cognitivista, o problema é irrelevante. À estrutura formal sintáctica são intrínsecos os conteúdos semânticos, o que significa que qualquer alteração no plano semântico arrasta, implicitamente, alterações no plano estrutural. A ciência cognitiva viabiliza, assim, a investigação dos processos cognitivos como computacionais, entendendo que estamos perante a manipulação de elementos sintácticos que simulam, ajustadamente

(no jogo de Turing o que está em causa é o ajuste do computador ao humano), a sintaxe cerebral.

Searle recusa a afirmação da inerência da semântica à sintaxe. É famoso o argumento do " quarto chinês ". Com ele pretende assinalar uma demarcação fundamental: as mentes são mais complexas que qualquer programa computacional, pois além de possuírem uma estrutura sintáctica têm um conteúdo semântico, enquanto os computadores digitais (seja qual for o estádio do desenvolvimento tecnológico) se limitam à manipulação de símbolos sem " significado " . Se se aceitam fenómenos de simulação, não se podem aceitar fenómenos de duplicação, pelo facto de que nenhum ordenador digital é capaz de realizar operações com as características que são inerentes aos estados mentais.

O argumento do " quarto chinês " é reformulado numa fase posterior à sua apresentação. É necessário ir mais longe. Não só a semântica não é intrínseca à sintaxe, como a sintaxe não é intrínseca à física. " Não há nenhuma maneira em que se possa descobrir que algo é intrinsecamente um ordenador digital, posto que a sua caracterização como um ordenador digital é sempre relativa a um observador que atribui uma interpretação sintáctica aos aspectos puramente físicos do sistema. (...) Aplicado genericamente ao modelo computacional, a caracterização de um processo como computacional é uma caracterização de um sistema físico do lado de fora; e a identificação do processo como computacional não identifica um aspecto intrínseco da física; é esencialmente uma caracterização relativa ao observador ".

Conclui-se do enunciado que há coisas no mundo que dependem da interpretação de um observador e coisas cujas qualidades, por serem intrínsecas, são exteriores a qualquer interpretação, existem por si e em si. A computação pertence à primeira categoria de coisas, é uma atribuição relativa a um sujeito exterior ao mundo físico.

A partir daqui, Searle explora a sua crítica, referindo-se à " falácia do homúnculo como endémica ao cognitivismo ". Concretamente, qual é o problema que está aqui em causa ? Vimos que se a sintaxe não é intrínseca à física e se os programas de computador se definem em termos sintácticos, então nada é intrinsecamente um ordenador digital pelas suas qualidades físicas. O recurso a um observador exterior é essencial. A solução pode ser, aparentemente, encontrada (não nos esqueçamos do problema original: a analogia entre o funcionamento do cérebro humano e o funcionamento dos ordenadores digitais) se se admitir que, a nível dos estados mentais, o sistema funciona como se, no seu interior, houvesse um intérprete, um homúnculo, que realizasse as operações computacionais. Searle refere-se a esta solução como uma variante da falácia do homúnculo

Uma outra solução é a chamada decomposição recursiva. Sendo os processos computacionais organizados a vários níveis, pode-se reconhecer que nos níveis superiores do sistema as operações exigem a presença de um observador. Contudo, a um nível inferior mais simples, o modelo reduz-se a um mero esquema " acendido-apagado ", rebocando o observador, o homúnculo. Diz-nos a propósito Searle. " A intenção de eliminar a falácia do homúnculo mediante a decomposição recursiva falha porque a única maneira de obter a sintaxe intrínseca à física é colocar um homúnculo na física. (...) Conceder que os níveis mais elevados de computação não são intrínsecos à física é conceder de imediato que os níveis inferiores tão pouco o são " . O problema da sintaxe e da semântica mantém-se, portanto, relativamente à simulação por computador dos processos mentais. Os argumentos do cognitivismo não convencem.

Ora, o que é convincente afirmar é que os programas computacionais não são mentes, nenhum ordenador tem poderes análogos ao cérebro humano. Vimos que as estruturas sintácticas são insuficientes para assegurar um contéudo semântico. Por outro lado, a sintaxe ( e símbolos ) não é uma qualidade intrínseca da física, mas relativa a um observador. O cérebro não é um computador digital, causa mentes que têm uma estrutura formal e um conteúdo significativo, e intencionalidade e consciência. Deste modo, não é suficiente nem aceitável explicar o funcionamento cerebral a partir das propriedades computacionais. Dito de outro modo: "Não se pode descobrir que o cérebro ou qualquer outra coisa seja um ordenador digital, embora se lhe possa atribuir uma interpretação computacional como se pode fazer com qualquer outra coisa. O assunto não é que a afirmação " O cérebro é um ordenador digital " seja simplesmente falsa. O assunto não tem um nível de falsidade, simplesmente não tem um sentido claro. A questão " É o cérebro um ordenador digital ? " está mal definida. Pergunta-se: " Podemos atribuir uma interpretação computacional ao cérebro ? ", a resposta é, trivialmente, que sim, posto que podemos atribuir uma interpretação computacional a qualquer coisa. Se o que se pergunta é: " São os processos cerebrais intrinsecamente computacionais ? " , a resposta é, trivialmente, que não, excepto, naturalmente, no caso dos agentes conscientes que intencionalmente levam a cabo computações " .

Para concluir a crítica à razão cognitiva ("o que está mal na filosofia da mente ", expressão que esteve para constituir o título da obra de Searle que mais temos citado, expressão que só por si nos esclarece o posicionamento do autor), Searle desmistifica o conceito de processamento da informação. Os estados mentais são causados pelas operações internas cerebrais, não há processamento de informação. O cérebro é um orgão biológico como qualquer outro, cujas características próprias, a nível mental, produzem formas específicas de intencionalidade. Tem uma actividade neurofisiológica que causa e realiza os processos mentais, conscientes ou potencialmente conscientes. " O sentido de processamento da informação que se usa na ciência cognitiva está a um nível de abstracção demasiado elevado para captar a realidade biológica concreta da intencionalidade intrínseca. A " informação " do cérebro é sempre específica de uma ou outra modalidade. É específica, por exemplo, do pensamento, ou da visão, ou da audição, ou do tacto. O nível de processamento da informação que se descreve nos modelos computacionais de cognição da ciência cognitiva é simplesmente, por outro lado, um assunto que consiste em obter um conjunto de símbolos como output em resposta a um conjunto de símbolos como input " .

CONCLUSÃO

A proposta de Searle para a solução do problema Mente-Corpo determina, no essencial, as teses que consubstancializam a sua concepção sobre os fenómenos mentais.

O que desde logo releva é a afirmação da consciência como fenómeno mental central. Consciência, intencionalidade e subjectividade são manifestações da biologia humana, constituindo fenómenos específicos, susceptíveis de abordagem e investigação científica. Os estados mentais são causados por processos cerebrais e realizam-se a nível das suas estruturas. A crítica que empreende dirige-se não só ao " dualismo ", mas também a todas as expressões que o " materialismo " assume, nomeadamente, o condutismo, o qual, em relação aos fenómenos psíquicos, elide as pretensões cognitivas de acesso à consciência ( à intencionalidade, à subjectividade ), propondo uma metodologia baseada nos dados objectivamente observáveis.

A realidade dos fenómenos mentais é um facto - " (...) entre os acontecimentos físicos do mundo há fenómenos biológicos, tais como os estados de consciência qualitativamente internos e de intencionalidade intrínseca " . -, trata-se de os apreciar correctamente de acordo com a sua natureza biológica, como a digestão ou a respiração, e segundo a sua especificidade " mental ". A alternativa não é entre a consciência ou a negação da sua realidade, por imposição de critérios de objectividade científica. Se a "autoconsciência", a "incorrigibilidade", a "introspecção" são equívocos, são-no enquanto expressões de concepções filosóficas erróneas sobre a consciência.

Um outro ponto relevante da filosofia da mente de Searle, e que decorre das questões anteriores, é a crítica ao programa cognitivista de investigação, o qual sustenta a tese da analogia entre os ordenadores digitais e a mente humana.

Essa analogia, nas suas formas mais ténues ou mais radicais, como a que identifica o cérebro com um computador digital e a mente com um programa de computador, é, segundo Searle, absolutamente irredutível. O cérebro é um orgão biológico específico, cujos processos particulares neurofisiológicos causam fenómenos mentais específicos. Os processos cerebrais não são intrinsecamente computacionais, embora se possa fazer uma interpretação computacional do cérebro, como, aliás, se pode fazer de muitas outras coisas. Um índice macroeconómico é susceptível de tradução e avaliação computacional, mas não é intrinsecamente computacional.

Através da filosofia da linguagem (que afirma ser um ramo da filosofia da mente, o que estrutura, coerentemente, as suas concepções), dos conceitos de Rede e, em particular, de Background, da recusa do carácter intrínseco da sintaxe à física e da necessidade da presença de um observador/usuário que torna superveniente a computação, entre muitas outras áreas de investigação, Searle traça um quadro de reflexão alargado, que permite repensar os caminhos para a Redescoberta da Mente.

BIBLIOGRAFIA

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