O corpo como medida de todas as coisas
“Desse mundo físico, em si mesmo desinteressante o homem é parte. Seu corpo, como qualquer outro tipo de matéria, é composto por elétrons e prótons, que, até onde sabemos, obedecem às mesmas leis a que se submetem os elétrons e prótons que não constituem animais e plantas. Alguns sustentam que a fisiologia jamais poderá ser reduzida à física, mas seus argumentos não são muito convincentes, de sorte que parece prudente supor que estejam errados. Aquilo que chamamos de nossos “pensamentos” Prece depender da disposição de trilhos em nosso celebro, do mesmo modo que as jornadas dependem de rodovias e das estradas de ferro. A energia utilizada no ato de pensar parece ter uma origem química; por exemplo, uma deficiência de iodo fará de um homem inteligente um idiota. Os fenômenos mentais parecem estar intimamente vinculados a uma estrutura material. Se assim é, não podemos supor que um elétron ou um próton solitário seja capaz de “pensar”, seria como esperar que um indivíduo sozinho pudesse jogar uma partida de futebol. Tampouco podemos supor que o pensamento individual possa sobreviver à morte corporal, uma vez que ela destrói a organização do cérebro e dissipa a energia por ele utilizada.”
(Bertrand Russell No que Acredito/ tradução de André de Godoy Vieira. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 31)
Raramente nos damos conta do quanto a vida é essencialmente determinada pela carne e pelo sangue, o quanto somos essencialmente nosso corpo físico, que não é apenas cede do desejo, do prazer, da necessidade e da dor, mas a medida de todas as coisas humanas, a começar por aquilo que concebemos como realidade.
A tradição judaico cristã, uma das matrizes do imaginário ocidental, fundamenta-se, entretanto, justamente sob a recusa do corpo e do mundo material em beneficio de um ideal vago e abstrato de espiritualidade. Mas tal tradição hoje em dia foi de muitas maneiras ultrapassada pelos novos saberes constituídos pelas ciências medicas/biológicas cuja aplicabilidade no cotidiano complexibilizou consideravelmente nossas representações e experiências do corpo e suas dinâmicas. Nosso corpo já não é mais uma silenciosa sombra opaca, como se manteve na cultura ocidental até, pode-se dizer, o séc. XIX. Tornou-se, ao contrário, objeto de atenções e cuidados, de uma estética e disciplina, que pouco a pouco promovem a superação de suas representações como um mero objeto, como algo externo ao nosso “eu”, para transformá-lo em sujeito, como aquilo que essencialmente somos.
A importância de tal reconfiguração cultural mostra-se decisiva para redefinição do locus do indivíduo, especialmente no caso da afirmação dos direitos das mulheres, quando pensamos na descriminalização do aborto como condição da conquista do livre arbítrio e dominio sobre o próprio corpo em exercicio de subjetividades, escolhas e vivências.