Amigos e Inimigos

Trecho da poesia traduzida Desejo, de Victor Hugo.

“...Desejo ainda que você tenha inimigos

Nem muitos, nem poucos

Mas na medida exata para que

Algumas vezes você se interpele

A respeito de suas próprias certezas.

E que entre eles

Haja pelo menos um que seja justo...”

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Alguém está à porta a bater.

Alguém está ao sofá a beber.

Um copo d’água? Ou cerveja? Vinho da última safra? Uísque? Vodka? Não, alguém está a beber um copo de veneno com gelo e um pouco de açúcar para adoçar o momento da morte.

Alguém parou de bater.

Alguém parou de beber.

Não sabe quem está à porta. Um vizinho? Um parente? Um filho desconhecido? Um cobrador de impostos? Um policial? Um ladrão? Um refugiado do oriente médio que traz em si (sem seu conhecimento) uma bomba que se estourará assim que ele pedir socorro? Não, quem bate é o seu melhor inimigo.

Alguém está a esperar.

Alguém está a caminhar.

A porta se abriu para ele.

Alguém está na frente dele.

O silêncio permanece. O dia entardece. Um menino na rua desaparece. Alguém vai a farmácia comprar remédio e na hora se esquece. Quem dependia da droga agora perece. Não me enraivece mais uma vez! O que você tem? O que te entristece?

As estrelas fora do lugar.

O possível sumiço da linha do horizonte.

A perda dos dentes de leão.

O azar de um trevo-de-quatro-folhas nascer no dia da morte daquele que o cultivou.

E também por acabar de saber que o veneno que estou usando já passou do seu prazo de validade.

Há quantos dias está adiando sua morte?

Desde o dia que nasci. Desde esse dia já há um veneno preparado para eu tomar e nunca tive coragem, sempre adiei e hoje resolvi tomar, mas você apareceu.

Quando foi que venceu esse veneno?

Ontem, justamente quando fez um ano que nós somos melhores inimigos.

Uma bela data para se lembrar. Começamos bem, não?

Muitíssimo, mas eu desisti do meu intento, perdoe-me por te decepcionar.

Que pena, mas você sempre foi um inimigo ausente. Sequer foi no enterro de minha mãe para cobrar a dívida que eu te devo. Não me entregou a polícia quando seqüestrei sua esposa.

Ex-esposa!

É verdade! Agora ela é minha. Bendita síndrome de Estocolmo.

Não tenho tempo para cultivar nossa inimizade.

Vim para lhe perguntar como você quer seu velório?

Sem muitas flores, sou alérgico.

Posso chamar meu irmão violinista?

Não, quero a fanfarra municipal. Já passei por essa vida em branco, que pelo menos minha morte tenha uma nota de cinco linhas na imprensa alternativa dessa cidade reles.

Admiro seu jeito espirituoso.

Se você me matar estará fazendo um grande favor.

Desse jeito estou no papel de amigo, coisa que não quero. Faço questão de ser o melhor inimigo.

Então não me mate.

Estrangular-te-ei?Sufocar-te-ei?

O silêncio invade o recinto como um grito ensurdecedor e ali permanece como espectador daquele diálogo que não se sabe o fim. Mudez, surdez, estupidez.

Alguém está a enlouquecer.

Alguém está a empalidecer.

O sol arde

No fim da tarde

O silêncio ainda permanece. O vento corre, mas não arrefece. A dor atenua, mas não desaparece. A lua chega, mas ainda não escurece.

E como um sopro de vida os dois inimigos voltam a falar.

Quem ganha mais com a perda do outro?

Os instantes são infinitos, mas as sensações são eternas.

A sua dor não é maior que a minha, mas o que sinto tem a força de mudar todo um destino.

Ninguém vive duas vezes, ninguém ama duas vezes, é possível odiar duas vezes?

Diz que sente saudade, muita saudade, chega a chorar, fica triste, angústia? Até que ponto sentir saudades faz bem?

Que horas são?

Arroz, feijão, ovos mexidos e carne.

Ainda temos tempo?

Chove muito, mas o sol se nega a se esconder, faz questão de ser o dono da situação. Enquanto estiver dia fará de tudo para aparecer.

O silêncio quando veio da primeira vez trouxe consigo a loucura que dominou ambos.

O silêncio se foi, a loucura ficou por um tempo até ser despejada pelo sofrimento.

Minha vida acabou, minha mulher faleceu.

Como?

Dependia de um remédio, foram comprar, mas esqueceram o nome, voltaram de mãos vazias e daí ela se foi.

Se você sofre por isso, eu sofro pelo menino que acabou de desaparecer, não sei quem era e não sei por que desapareceu, mas não sei por que isso me faz sofrer.

O sofrimento é uma lágrima.

A alegria é um sorriso.

Tristeza não tem fim?

Felicidade tem fim?

Mesmo sendo inimigos, torcemos pro mesmo time, mas para conservar nossa inimizade torci contra nosso próprio para te ver triste.

Não acredito que você fez isso. Você é retardado. Que ridículo.

O riso invadiu todo o lugar. As fotos na estante sorriram, o quadro na parede sorriu, o frango dentro do forno sorriu, a Morte que está guardando o copo de veneno também sorriu. Até o sofrimento que estava em outro apartamento também sorriu, os habitantes desse mesmo apartamento que formam uma família a beira do colapso também sorriram.

Passado. Presente. Futuro.

Alguém esteve à porta.

Alguém está à porta.

Alguém estará à porta.

Alguém bebia.

Alguém bebe.

Alguém beberá.

A linha do tempo se entorta, a linha do tempo se enrola, a linha do tempo se parte. Não há mais linha, nem no horizonte, nem nas palmas das mãos, nem nos campos de futebol, nem nas roupas. Trem fora da linha, telefone sem linha, pessoas fora da linha. Mas as crianças no jardim não se importam e se divertem numa rinha de formigas.

Alguém esteve à porta a bater.

Alguém esteve ao sofá a beber.

Ninguém foi atender a porta.

Porque a pessoa que deveria abrir já está morta.

Alguém estará à porta a bater.

Alguém estará à mesa a escrever.

Alguém insistirá a bater.

Alguém parará para atender.

Procuro pelo meu melhor inimigo.

Ele faleceu, feneceu, pereceu, desfaleceu e morreu.

Quem será meu melhor inimigo?

Primeiro terá que conquistar um amigo, ai depois você o trai e será o pior inimigo, e caso você consiga ser alguém que não prejudique a vida dessa pessoa, pelo contrário, ser aquele que motive o outro a tentar sempre se corrigir, fazê-lo lembrar que os elogios demasiados e confetes jogados pelos amigos fazem mal, e adverti-lo de que é melhor ter um inimigo declarado do que ter um amigo falso, ai sim você se torna o melhor inimigo.

Quer ser meu amigo?

Fazemos melhor, seja aquele que me lembre que falsos amigos existem e que uma crítica sempre é bem-vinda, seja qual for. Você pode ser meu inimigo íntimo. Ninguém dos meus amigos te conhecerá, mas você saberá quem os são.

Isso é ideal, todos precisam ter por perto alguém que seja capaz de dizer certas coisas, pode até magoar, mas que abra os olhos da pessoa, pois há pessoas que tem amigos que são incapazes de dizer algo que machuque mesmo que depois faça um bem que supere a dor sentida. Palavras machucam sim, mas ao mesmo tempo podem abrir os olhos e fazer enxergar o que era invisível, tornar audível o que era inaudível, ou tornar tangível o que era intangível.

Alguém está à porta a bater?

Será amigo? Será inimigo? Será aquele que vai me elogiar sem motivo? Será aquele que vai me criticar para que eu possa melhorar? Amigo sincero? Amigo para horas boas? Falso amigo? Pior inimigo? Ou apenas alguém a me tirar de um mundo sem amigos e inimigos.

A porta se abre, alguém entra, é convidado para sentar, é-lhe oferecido uma bebida.

Um brinde a nossa inimizade.

Por que não tentamos a amizade?

Enquanto isso a bebida desce pela garganta do visitante.

Agora é tarde.

Por quê?

Dei-te um copo com veneno.

Até que enfim uma demonstração de inimizade.

Está vencido.

O quê?

O veneno.

Isso é bom ou ruim?

Só o médico vai saber.

Vai me levar ao médico? Vai fazer isso pela nossa inimizade? Não cometa essa traição!

É pra ter certeza que eu fiz conforme o Manual do Inimigo que você me deu de presente.

No meu enterro não quero ver ninguém chorando, se preciso você vai comer bastante ovo pra deixar o ambiente bem cheiroso, ai vão rir bastante, é isso que eu quero. Será um verdadeiro funeral.

Mas você vai ficar feliz por isso?

Claro!

Então farei tocar a marcha fúnebre pelos quatro cantos da cidade e vou descascar todas as cebolas da feira. Não está sentindo nada de estranho?

Não.

De repente alguém invade o apartamento e com uma arma na mão atira naquele que bebeu o veneno vencido, antes de morrer ele diz:

— Era meu melhor amigo.

Quem tem um amigo desse não precisa de inimigo.

Ninguém está à porta a bater.

Ninguém está ao sofá a beber.

Ninguém tem coragem de dizer pelas costas o que de verdade sente sobre o outro alguém. Ninguém se entrega de corpo e alma. Ninguém confia inteiramente em outro alguém. Porque sabe que esse alguém pode te trair, te desmascarar, te enganar, mentir.

Alguém tem um verdadeiro amigo.

Alguém tem um verdadeiro tesouro.

09 de Dezembro de 2008.

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 09/12/2008
Reeditado em 10/12/2008
Código do texto: T1327323
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