As Relações entre a Arte e a Moral em Fernando Pessoa

Não meu, não meu é quanto escrevo.

A quem o devo ?

De quem sou o arauto nado ?

Por que, enganado

Julguei ser meu o que era meu ?

Que outro mo deu ?

Fernando Pessoa

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem um alcance muito preciso que é, simultaneamente, a sua circunstancial limitação. A nossa proposta centra-se na actividade crítica de Fernando Pessoa - concretamente, os seus escritos a propósito das relações entre arte e moral - e não o Pessoa Poeta, cuja análise imprimiria uma dimensão que por agora nos escapa. Contudo, o que desde logo emerge como ideia central é a completude de uma sensibilidade imagística e reflexiva, enquanto criadora e crítica do acto poético. " Em todas as suas páginas persiste a grande alma do autor, uma alma ávida das alturas, estimulada pelo mais incondicional dos entusiasmos pela arte e pelos interesses do espírito ".

Ler Pessoa é penetrarmos num universo marcado por uma genialidade complexa, confrontando-nos com uma obra, na sua unidade e pluralidade, que constitui um permanente desafio de perturbação para o seu leitor. Perturbação vivida na luminosidade que obscurece e na obscuridade que ilumina. Como nos diz Eduardo Lourenço: " Antes mesmo de saber com o máximo de plenitude o que os poemas de Pessoa são, aparecem-nos originalmente como a luz na qual nos é dado ver o que até eles não víamos ".

Há em Pessoa uma forte necessidade de libertação literária, um desejo de estilhaçar quaisquer limitações temáticas ou formais. Influenciado pelo Simbolismo, superou-o na tentativa de aprofundar as virtualidades poéticas do uso da língua, traçando novos campos de exploração estética e literária, sobretudo na sua primeira fase, a modernista. O subconsciente, o inconsciente, a interioridade indecifrável, constituem a motivação para nomear uma realidade sugerida por imagens e símbolos.

A crítica social que percorre o Realismo é deslocada para um outro nível, para a dramaticidade de um " eu " face ao mundo. A consciência abre-se a si mesma, descobrindo uma sensibilidade que pensa ou um pensamento que sente ("O que em mim sente está pensando "). A tensão poética não descura " o aperfeiçoamento do mundo exterior " -, mas centraliza-se privilegiadamente nas relações eu / mim mesmo ou eu / criação estética.

Pessoa é um personagem universal e a sua universalidade é desdobrável. O " eu " fragmenta-se, melhor, des-substancializa-se numa pluralidade levada quase até ao impossível, ao infinito. Esta interioridade múltipla, onde convivem diferentes personae, é um jogo de criação de vozes, de relações labirínticas (de vários matizes onde confluem personalidades sem nome, o intelectual e o místico, o intuitivo e o astrólogo, o ocidental e o oriental), que exprimem um horizonte ontológico, psicológico e cultural para melhor entender o Homem, o mundo e o processo estético de criação.

Poderíamos ser tentados a reconhecer no Pessoa ortónimo a unidade psicológica e nos heterónimos, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro (entre os principais), simples manifestação da mais vulgar pseudonímia. Contudo, essa seria uma tentação ilusória. " Com efeito, a heteronímia não se distingue da pseudonímia como o mais do menos. Há entre elas uma diferença de estatuto, por conseguinte, de significação. O autor não esconde um mesmo texto sob nomes diferentes: ele é vários autores apenas e na medida em que é vários textos, isto é, textos que exigem vários autores. Tem sido o exame desta famosa heteronímia e da sua significação enquanto modelo espectacular da história da consciência moderna o que sobretudo tem interessado a mais estruturada exegese de Fernando Pessoa " .

O que decorre do fenómeno da heteronímia tem, pois, um alcance que não se circunscreve a uma mera curiosidade literária. É um facto, unanimemente aceite, que não há na nossa história literária uma tão profunda e original interioridade plural, assumida na indistinção ficção/realidade ou heteronímia/ortonímia. Pessoa é um espaço de inscrição de uma multiplicidade poética onde coabitam vários poetas nele e fora dele mesmo. O " eu " já não é a "res cogitans", realidade ou substância permanente e imutável, identificado como o fundamento do saber e da verdade. A essa unidade, a esse substrato fixo que a reflexividade revelou como a ideia mais clara e mais nítida, Pessoa introduz uma fractura que nega toda a substancialidade ao sujeito, encarando-o como um lugar ficcional, uma rede de sensações e impressões, palavras e inteligência.

Na viragem do século XIX para o século XX, Fernando Pessoa é o representante de uma estética nova, estética que entra em ruptura com os códigos e os valores artísticos tradicionais, apelando para a dimensão irracional do homem que recusa a liguagem baseada na mediação do logos. O expressionismo na pintura e o dodecafonismo na música (Schonberg), por exemplo, traduzem a busca de vias originais de expressão e de definição do belo (ou mesmo a sua recusa), a partir de um processo que é mais de desconstrução do que de construção.

Se a "teoria da relatividade", a "mecânica quântica" e a queda dos "absolutos matemáticos" provocaram uma revolução epistemológica, também as formas plásticas e artísticas foram objecto de uma subversão.

Todo o século XX não apagou os traços ou os vínculos de uma crise da racionalidade que se foi esboçando ao longo da sua primeira metade. Vivemos o fim das certezas racionais, não só no domínio da ciência, condenada à plausibilidade e ao indeterminismo, mas também no domínio da axiologia e da arte, caracterizadas por incessantes transformações e descontinuidades. Todas as formas tradicionais da linguagem estética se esboroaram. A definição da beleza é, sobretudo, um projecto “vazio", que se preenche na conflitualidade complexa das múltiplas expressões artísticas.

A reformulação das normas do discurso científico, dos valores estéticos e das práticas culturais em geral, colocam no eixo do pensamento ocidental uma concepção de razão doravante privada de fundamentos insuspeitos.

A obra de Fernando Pessoa, feita no anonimato (foi necessário esperar pela geração da Presença para que fosse iniciada a sua autêntica reabilitação face ao público e à maioria da crítica), constitui um permanente desafio que colocamos a nós mesmos e a ele próprio, um pretexto para a aventura de um "drama em gente". No fundo, um anónimo trágico que "exigiu os títulos de glória e não os achou. É no mais simples sentido da expressão um marginal, um habitante do deserto que cresce quando as ilusões que permitem viver naufragam. É esta nudez abrupta que muitos acham intolerável e puro niilismo gratuito ou injustificável. Mas é por ela e nele que o amam os que vêem nessa nudez a forma suprema e nunca mais ultrapassada em nossas letras da recusa da figura do mundo, da história e da existência tal como um homem da primeira metade do nosso século, profeta e lúcido, a ressentiu em sua carne e seu espírito"

I A OBRA CRÍTICA NAS PÁGINAS DE ESTÉTICA

(Breves considerações)

A actividade crítica do autor da Mensagem, e em geral a sua produção em prosa, não mereceu uma atenção especial por parte de um grande número dos seus exegetas.

G. Lind, editor e prefaciador das Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, é uma excepção a essa tónica, que teve, nas novas gerações, comentadores interessados na revelação do Pessoa Doutrinador, doutrinador enquanto se moveu na urgência de assimilar à produção poética reflexões sobre arte e estética, estendendo a sua curiosidade por outros fenómenos da actividade espiritual humana.

As Páginas têm a vantagem de nos revelar a turbulência de um génio em diálogo consigo mesmo, estabelecendo hierarquias, definindo gostos e opções, buscando juízos que esclareçam a inteligibilidade do(s) mundo(s). É assim que sabemos que a música, a literatura e a filosofia são artes cujo fim é influenciar; que a pintura visa agradar; que sentimento, cor e forma são os três elementos essenciais da poesia; ou que " a ciência descreve as coisas como são; a arte descreve-as como são sentidas, como se sente que são ".

Sabemos também do seu apreço pelo paganismo e pela cultura clássica grega em geral (de que faz uma interpretação própria), procurando o ponto de conciliação entre a inteligência, a emoção e a imaginação. Em oposição ao culto e à radicalidade do " eu " dos românticos, reclama o gosto por essa antiguidade helénica, por uma estética da objectividade, da impessoalidade, capaz de atender às exigências da poesia e da estética modernas. Um dos princípios " da arte é a universalidade. O artista deve exprimir, não só o que é de todos os homens, mas também o que é de todos os tempos. O subjectivismo cristista, além do erro pessoalista, produziu esse outro erro, a preocupação de interpretar a época. A frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o assunto, é de mestre; com efeito, "um homem de génio é da sua época só pelos defeitos. A nossa época deduz-nos da humanidade. Como o artista deve procurar erguer-se acima da sua pessoalidade, deve procurar levantar-se fora da sua época "

A personalidade de Pessoa revela-se, ainda, na admiração que nutria por criadores como Shakespeare, Dante, Milton, Goethe, Homero, ou Quental e Cesário Verde (o mestre de Álvaro de Campos). Se aprecia, não sem reservas, os românticos ingleses, não tem grande entusiasmo pelos românticos e simbolistas franceses.

O que nos parece de realce, é que o Pessoa crítico nunca deixou de se rever naqueles que mais tocavam a sua sensibilidade e a sua existência. Lendo os outros era a si mesmo que se lia, o " eu " era o " outro ", num jogo de espelhos indefinível. A referência sistemática a Shakespeare é desse processo o melhor exemplo, como se Pessoa se sentisse um personagem inventado pelo criador de Hamlet.

Gostaríamos, antes de nos limitarmos à analise do texto em questão, de fazer referência a mais alguns aspectos que nos surgem como essenciais na avaliação das Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias.

Em primeiro lugar, esta obra deverá ser objecto de uma avaliação mais global, que a articule com os textos das Páginas de Doutrina Estética (reunidas por Jorge de Sena, 1946 ) e com os das Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Jacinto do Prado Coelho alerta-nos para a necessidade deste trabalho de intertextualidade, ao mesmo tempo que refere: " Não causarão estranheza certas flutuações e até contradições, explicáveis por essa mesma elaboração imperfeita, pela complexidade dos objectos sobre que incide a reflexão do Autor, pelo facto de os textos pertencerem a diferentes fases da sua vida (repare-se: tendo sido adoptado, na arrumação dos fragmentos, não um critério cronológico mas sim um critério temático, aparecem contíguos ou próximos fragmentos muito distanciados no tempo), enfim, pelo facto de as anotações de Pessoa poderem corresponder a diversos momentos dum processo dialéctico de captação do real, porventura em diálogo interior, em diálogo cujas falas poderiam ser atribuídas a diferentes personagens. Apesar de, no conjunto, ressaltar neste volume a unidade duma orientação mental, diria até dum pensamento estético-literário, com as suas preocupações dominantes e as suas ideias-mestras, "o certo é descobrirmos ainda sinais do desdobramento em heterónimos "

Efectivamente, o fenómeno da heteronímia não se confina à actividade poética. A despersonalização e a simulação têm um alcance mais amplo. A Mora, helenista e pagão, entra em cena para ser outra personalidade outra no confronto das suas ideias e reflexões com as ideias e reflexões de A. de Campos. Múltiplos heterónimos configuram uma personalidade sem centro, plural, aberta, indeterminável.

Não se coloca aqui a questão, levantada por muitos e pelo próprio ( talvez ainda um jogo de simulações ), de estarmos perante factos de natureza psíquica ( Fernando Pessoa levantou a hipótese de sofrer de uma histero-neurastenia ). Julgamos não ser esta, como já o demos a entender, a melhor via para compreender a complexidade do problema em causa. Trata-se de uma des-personalização porque se trata de uma des-substancialização do sujeito, reconhecido como figura onde ocorrem pulsões que o próprio não domina mas que o domina e determina. Pensamos que a leitura psicanalítica poderá prestar contributos válidos a este terreno, quando se refere à fractura do " eu ", ou quando identifica vários níveis no psiquismo humano. Mas não só. Há toda uma tradição filosófica relativa à des-centração do sujeito, de Marx a Nietzsche, passando por Freud, evidentemente, ou pelos pragmatistas americanos, ou por Heidegger e Wittgenstein. Pessoa assumiu em acto criativo uma existência incontornável e fatalista, até às últimas consequências. Assumiu querer ser tudo e todos ao mesmo tempo.

Após estas breves considerações, inflictamos para o texto de Pessoa, com as limitações resultantes de nos fixarmos nele, mas movidos pela curiosidade de penetrar no interior de um pensamento analítico ao relacionar a arte e a moral.

II O TEXTO (ARTE E MORAL)

1. Arte e prazer

Pessoa esboça e estabelece uma hierarquia das artes, quanto ao fim que preconizam. A arte pode entreter, como a dança, agradar, como a arquitectura, ou influenciar, como a música e a literatura.

Agradar é dar ao que é útil uma dimensão estética de fruição, sem descurar a finalidade última a que se destina. A arquitectura tem um duplo estatuto, vai ao encontro de necessidades práticas e torna a sua utilidade um objecto em si de prazer artístico. Influenciar significa, por seu turno, o que é perene, o que passa civilizacionalmente de geração em geração, o que fica como magma da herança colectiva das sociedades e das culturas. O artista influenciador tem consciência de cumprir a missão de transmitir aos epígonos o que em cada época é mais elevado, valorizando o " património espiritual da humanidade ", em detrimento da glória e das honras pessoais.

Independentemente dessa classificação, ou talvez não, toda a arte visa provocar prazer. " O tipo de prazer é que varia. A arte inferior dá prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupações da vida; a arte superior menor dá prazer porque alegra, liberdade porque liberta da imperfeição da vida; a arte superior dá prazer porque liberta, liberdade porque liberta da própria vida " .

A arte é " divinização da existência ", como dizia Nietzsche. Liberta porque abre para uma ordem harmoniosa, para um espaço de embelezamento da vida e de estetização do humano. O supremo da arte é o prazer que sente aquele que, movido pela transfiguração e pela emoção estéticas, se eleva para dentro, libertando-se dos estreitos limites que a vida concreta propicia, acima da fealdade de um real vulgar, alcandorando-se a superar o que é imperfeito e a perseverar no ser.

Se o prazer é ínsito, pregnante à afirmação da arte, à sua contemplação e fruição, não é a sua finalidade última. O prazer estético é um meio para que o homem se transcenda a si mesmo, se supere, se eleve por intermédio do que a arte pode proporcionar à existência: a manifestação da beleza.

A este sentido da finalidade da arte, se associa, numa dimensão mais ampla, a filosofia, que visa elevar através do conhecimento, a ciência, que busca a elevação na procura incessante da verdade, e a religião ("Uma religião sem Deus - uma religião puramente do homem, cuja base seja a benevolência e a bondade, em vez de a fé e a crença "), por acção do bem.

Mas, "elevar e libertar não são a mesma coisa. Elevando-nos, sentimo-nos superiores a nós mesmos, porém por afastamento de nós. Libertando-nos, sentimo-nos superiores em nós mesmos, senhores, e não emigrados, de nós. A libertação é uma elevação para dentro, como se crescêssemos em vez de nos alçarmos ".

Esta distinção pessoana configura a ideia de que o estatuto ontológico do homem é o de um ser que se faz, que se transmuta, reposicionando-se num processo dialógico face ao mundo, para ser continuamente um outro superior, mais perfeito. O belo, a verdade e o bem são as condições de um projecto "puramente humano".

2. A relação arte/moral

A propósito desta relação, acentue-se que o pensamento de Pessoa se integra dentro da mentalidade característica dos finais do século XIX, início do século XX. Contra o prognóstico de Hegel que anunciara a morte da arte, vive-se uma época que procura reabilitar o Belo, dando-lhe uma perspectiva mais relativa e contingente, em oposição à teoria do belo único e absoluto, ao mesmo tempo que, circundando o âmbito ético, impõe um campo extra-moral. De Baudelaire a Nietzsche, a estética, a arte e o belo não deixam de ocupar um lugar de destaque.

Ao privilégio conferido à arte, associa-se a ideia da verdadeira autonomia do criador, que defende a sua liberdade e impõe o seu estilo. É no limiar do século XX que nasce o artista moderno, independente dos favores de qualquer mecenas que patrocine a sua obra, à maneira do século VXIII, como no caso de Mozart, mas também a crítica e a sociologia da arte alcançam um estatuto novo no plano da constituição dos saberes.

Pessoa identifica-se com essa autonomia e liberdade do artista. E reclama-as invocando a própria idiossincrasia do criador e da arte. A independência implica, como o dissemos, que a arte não tem que ser, enquanto finalidade a que se dirige, moral ou imoral. O contrário seria introduzir um elemento espúrio que adulteraria o estatuto da criação. Não há, pois, relação "strictu sensu" entre a arte e a moral.

Analogamente, também não há relação entre a arte e a ciência. É certo que ambas são produto do pensamento e tendem para a universalidade. Pessoa recusa a dicotomia arte/ciência pela oposição subjectividade/objectividade. O que as distingue não é o factor pessoal, a individualidade, mas um carácter com outra dimensão. Aquela o que procura é criar, produzir o seu objecto como foi sentido, como o sentimento o expressou, dar-lhe vida sugerindo a realidade. Esta o que procura não é a impressão mas a interpretação da realidade. " (...) Interpretar é o papel da ciência. A ciência procura compreender uma coisa por meio das outras, interpretar uma série de fenómenos por meio de todas as outras séries de fenómenos. ( que para isso sirvam ). A arte procura reproduzir sem interpretar ( daí o contraste vulgar entre o génio e a " inteligência fraca " de certos homens superiores ) ". Por outras palavras, a ciência e a arte são invenções humanas que procedem do instinto intelectual ( a invenção resulta da união do instinto, que é a coordenação genial dos meios e dos fins, com a inteligência ), ora com valor de verdade a que se submete no confronto com os factos, ora com um valor absoluto na intensidade da verdade que cria, respectivamente.

Mas se não há relação entre a arte e a moral quanto ao fim, o mesmo não se pode afirmar quanto ao conteúdo.

Pessoa afasta-se das concepções genealógicas da moral dum Nietzsche, para quem a ética, reduzida às suas condições psíquicas, é um mero jogo de instintos e pulsões. A moral reflecte uma situação de vazio face à vida, de ressentimento, de culpa, de ódio por si próprio. O pensador livre está para além do bem e do mal. Pessoa, contrariamente, vê na moralidade um ideal, presente em todas as épocas, com excepção dos períodos de decadência que, embora não a persiga como ideal, não deixa nunca de lhe reconhecer esse valor de idealidade.

Formuladas as premissas segundo esta perspectiva, e se a arte procura agradar e influenciar (são duas das suas regras), então não pode infringir, quanto ao conteúdo, as normas morais aceites, como, aliás, não pode violar a noção partilhada da verdade. " Um poema que canta, elogiando o roubo, não fará um bom poema; nem o fará um poeta moderno a quem lembre cantar o curso do sol à volta da terra, que é uma coisa falsa. (...) Agradará a mais gente um poema que, sobre ser belo, seja moral, que um que, sendo belo, seja imoral. E como é improvável que um grande artista, por isso mesmo que é um grande artista, falseie a verdade, é improvável que falseie a moral. Não pertence esse característico aos de um cérebro típico de criador "

Pessoa tem um discurso que se organiza de um modo, diríamos, silogístico. Traduz a necessidade de repensar os problemas de acordo com uma argumentação que se estrutura a partir de afirmações sucessivamente relacionadas. Trata-se de um pensamento exaustivo.

Assim, a questão da arte independente da moral é explicitada ao longo de vários textos, de diferentes datas, para que não subsistam dúvidas quanto às intenções das suas posições, num processo que é também de auto-esclarecimento.

Se a arte é moral ou imoral não é um problema que possa ser esclarecido pela estética. É um equívoco pensar o contrário. " Têm errado aqueles que têm querido achar uma razão, dentro da própria natureza da arte, para a arte ser moral ". Os juízos estéticos dizem respeito apenas à avaliação do sentido e das normas da beleza artística. Ora a expressão artística, a arte em geral, tem como finalidade a produção de beleza. São as categorias estéticas, e não as éticas, que facultam a apreciação de uma obra de arte enquanto objecto de fruição estética. A moral é, por conseguinte, exterior e independente desse juízo que se possa formular. Pretender submeter a arte a considerações de ordem moral, é deslocar a questão para outro âmbito. Para onde? Para a moral. Mas se arte não tem, repita-se, por fim a moral, ela pode, efectivamente ser ou não ser moral, no sentido em que vimos. E ser ou não ser moral é um princípio de dever ser. Ou seja, a arte deve ser moral e não imoral pela moral ( não pela estética ). É que " as épocas têm mais de comum as suas ideias morais que as suas imoralidades. (...) A tendência moral é reconhecida pela espécie (?) humana como superior à realidade (?) imoral. O poeta imoral corre portanto, na proporção em que é imoral, o risco de não influenciar os espíritos superiores ( quando não da sua época, porventura decadente ), das outras épocas pelo menos “.

3. A arte: feição puramente artística/feição social

A arte tem duas dimensões, ou feições. Uma, como resultado da sua própria natureza, é " puramente artística " . Puramente, porque a beleza que cria não depende das opiniões, dos gostos, das avaliações consensuais. Mais, a arte nunca suscita unanimidade. Estabelece, não raramente, rupturas nos juízos dominantes. Provoca dissídios numa época para ser aceite noutra. A sua independência reside neste facto, " nenhum outro fim tem que a criação da beleza, sem outra consideração moral ou intelectual ".

Mas, inevitavelmente, a beleza cria-se em sociedade, não para ela como finalidade, mas nela como realização, como acto. Simultaneamente, impõe um público, como decorre do que dissemos, provocando apreço ou rejeição. Daí, a sua outra dimensão, a feição social.

Pessoa atribui ao artista um triplo estatuto, como seja: o artista em si, o artista para a sociedade e o homem. Esta caracterização elucida-nos, com rigor, a teoria sobre as relações entre a arte e a moral, que temos vindo a tentar expor.

O artista em si perde toda a pessoalidade, o sentimento estético é impessoal e objectivo. A sua única responsabilidade é criar, autonomamente, a beleza. O compromisso que tem é perante a arte, o vínculo é a estética com as suas leis. A este nível, o criador é como que uma abstracção que se concretiza na busca do belo que produz, confundindo-se com ele para já nada ser de si. O artista em si é a arte em si. Não poderá ser esta uma interpretação possível para entendermos que " o artista tem de nascer belo e elegante, pois o adorador da beleza não deve ser feio ele próprio. E é seguramente uma dor terrível para o artista não lograr descobrir em si mesmo aquilo que forceja por alcançar. Quem olhando para os retratos de Shelley, Keats, Byron, Milton e Poe, pode interrogar-se se foram poetas ? Todos eram belos, (...) todos tinham o gozo celeste (...) " de o serem ?

Mas o artista, como sujeito social que é, vive em sociedade e, pelo facto, tem como único fim agradar. Aqui confronta-se com um duplo sentimento. Pretende agradar porque quer que a sua obra tenha um público e seja por ele admirada. É um sentimento pessoal de ver reconhecido o seu mérito e valor. Contudo, o sentimento impessoal não deixa de estar presente, porque o agrado que visa obter é o que decorre da beleza que criou, e esta é, como vimos, puramente artística. O criador ao produzir a sua obra não tem em mente a humanidade, não se sente condicionado pelas regras do sucesso ou do insucesso. Apenas a atitude estética o determina. A beleza des-personaliza, o público a que se pode destinar numa fase ulterior e o próprio operário que a construiu ( operário, no sentido de que " a obra de arte é primeiro obra, depois obra de arte ". ) A impessoalidade é sempre um "a priori" face à pessoalidade. Tal não significa atribuir à beleza um carácter de essência, de objectividade des-contextualizada. Pessoa fala das nossas noçôes de beleza, o que, desde logo, confere a consciência que tem da historicidade dos valores. O que está em causa é a relação entre o criador e a obra criada, cuja lógica é regulada apenas pelas categorias estéticas.

O artista em sociedade é artista, é o seu ofício social, e é também homem como todos os outros homens. A finalidade agora (enquanto homem) é obter glória, um sentimento inteiramente pessoal e interpessoal, porque é um desejo partilhado por todos.

Agradar e obter glória transcendem o campo e as leis da estética, resultam da dimensão social do artista e da arte que veicula uma mensagem. Nenhuma obra é apreciada por um público (condição para o agrado e para a glória, não para a criação) que atenda exclusivamente a critérios estéticos. " A natureza da humanidade é uma só, não se divide em estética, moral, intelectual, etc. (...) o amor da beleza é fundamental na sua alma - é arte; mas não só isso reside nela, não só com isso critica e aprecia. Outros elementos entram inevitavelmente nessa apreciação. Um grande poema revolucionário agradará mais a um republicano do que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades críticas, a mesma dose de estética. Os homens não apreciam só esteticamente, apreciam segundo toda a sua constituição moral. Por isso cousas grosseiras, impuras, lhes desagradam, não na parte estética neles, mas na parte moral que não podem mandar embora de si ".

Toda a obra de arte é um objecto da cultura, constituindo a experiência estética uma das vivências do ser humano, uma das suas formas de relacionamento com a realidade. A obra divulga-se, difunde-se, expressando não apenas o sentimento interior do seu criador, mas também comunicando uma informação sobre o mundo ( humano). A ciência escolhe, no todo da experiência humana, os elementos quantitativos, mensuráveis mediante instrumentos e susceptíveis de serem interpretados por uma teoria matemática. Só à custa desta redução pode o conhecimento científico suscitar um consenso universal. Mas a beleza é igualmente um elemento presente na cultura humana e a arte possui os seus próprios meios de verificação adequados à sua natureza. Arte e ciência são invenções e têm um público. Um teoria científica não é uma mera descrição de " coisas ", mas uma invenção criativa com a marca do paradigma que a fez emergir e do contexto cultural em que surgiu.

Mas voltando à relação entre a arte e a moral, que Pessoa procura explicitar, uma reflexão se impõe que debata o que está em causa sobre a arte imoral. Não, propriamente, pelo lado da arte ( " o problema estético da ética, se assim lhe podemos chamar, ou, formulando-o ao invés, o problema ético em estética ". ), mas pelo lado do público que a consome.

4. Um problema em análise: a arte imoral

A análise de Pessoa incide sobre um problema concreto: a pornografia.

Num primeiro nível, o autor interroga-se sobre a legitimidade das autoridades competentes intervirem, cerceando e controlando a produção literária e artística no sentido de evitar a eventual influência negativa que pode ser exercida sobre o público consumidor. Havendo legitimidade, deveremos, seguidamente, interrogar-nos acerca da sua viabilidade prática. Contudo, este aspecto, refere o autor, " é muito secundário ".

Colocado o ênfase na literatura, Pessoa desenvolve o seu raciocínio a partir da distinção entre a " literatura propriamente dita " e os " escritos meramente obscenos ". O critério estético surge como essencial para legitimar qualquer intervenção aceitável. A ética não pode prescindir da apreciação estética, sendo, neste caso, por esta determinada. É que há textos cujo conteúdo é declarada e intencionalmente obsceno, não tem outra finalidade. Por outro lado, existem obras de produção literária em que a presença de elementos obscenos não é um fim em si mesmo, mas fazem parte integrante, de um modo implícito ou explícito, de uma estrutura mais ampla que se caracteriza pela sua qualidade marcadamente artística e literária ( parece-nos similar o fenómeno da violência na filmografia contemporânea, onde é possível reconhecê-lo como acto simplesmente gratuito e mesmo apologético, ou como expressão dissolvida num contexto crítico com outras intenções ). Diz-nos Pessoa: " é uma questão de grau. Há obras palpavelmente obscenas e nada mais, sem nada de literário, como os folhetos (...) e que correspondem na forma escrita às fotografias obscenas (...). E há no outro extremo produtos como "Venus and Adonis", como tantas obras clássicas, tanto em verso como em prosa; a dificuldade é maior quando nos encontramos perante grandes obras de arte que são não só imorais mas fazem francamente a apologia de qualquer espécie de imoralidade ".

A actualidade de Pessoa está em centrar o problema no público, o que implica uma classificação própria, sem a qual, " não se pode derramar qualquer luz sobre esta discussão ". Não pretendemos dizer que estamos perante uma teoria da comunicação. Estamos tão só perante algumas reflexões a que não escapa a importância de uma fenomenologia do público e da comunicação. Foi necessário esperar pela segunda metade do século XX para se assistir a uma profunda transformação da cultura ( com o triunfo dos meios de informação ), que definiu a humanidade como comunicação.

Há vários géneros de público: o que não possui sensibilidade estética e artística, o inferior, e o que possui, o superior. Temos ainda o público adulto e o não-adulto.

Perante as grandes obras de arte, como a citada de Shakespeare, como reagem, enquanto leitores, estes diferentes públicos ?

O primeiro, por falta de educação estética, ficará prisioneiro dos elementos imorais da obra, nada mais será capaz de apreciar. O efeito, mesmo depois da leitura, permanecerá, reduzindo o texto literário à influência sexual que ele lhe suscitou. Quanto ao público educado, o efeito inicial é similar. Mais, o leitor culto terá uma excitação mais intensa, pois sendo capaz de decompor as diferentes estruturas substanciais e formais que organizam a obra literária, sentirá com mais fervor e veemência a beleza que o autor, superiormente, foi capaz de criar para construir os elementos imorais e obscenos. Contudo, e aqui está o traço que distingue os leitores, o educado, " passada a excitação momentânea que a obra produziu, permanece antes sob a influência dos elementos artísticos ".

Quanto ao público não-adulto, Pessoa caracteriza-o como o que não se pode defender, por oposição ao adulto, ou seja, as crianças. Ora, curiosamente ou não, o público não-educado é comparado às crianças, isto é, também ele não tem condições para se poder defender.

Definidos os vários tipos de públicos, voltamos à questão inicial: deve-se ou não proibir a venda e a divulgação das obras consideradas imorais ? Fazendo-o, é também a arte que atingimos. Pessoa conclui, defendendo que só às crianças e ao sector não-educado do público se deve limitar os efeitos da proibição.

Independentemente da terminologia pessoana aplicada à caracterização do(s) público(s), parece-nos de fecunda modernidade as reflexões do autor. Já o dissemos, mas não é demais insistir.

Esta segunda metade do século é aquela em que triunfam os meios de informação. Assistimos a uma transformação profunda da cultura, doravante ligada a fenómenos de massas, o que significa que a comunicação aumenta, difunde-se, com tudo o que isso possa suscitar. Instala-se um novo enquadramento, em que os meios de informação desempenham um papel unificador. Entre as duas guerras, a cultura de massas surge como um factor de generalização, que não pára de prosperar. O género humano constitui um conjunto cada vez mais afectado pelas mensagens audiovisuais, exercendo um fascínio e uma sedução que atravessam o espaço e o tempo. Uma matriz cultural e pregnante transporta a comunidade humana para o universo da comunicação acessível e efémera.

A sociedade industrial, de que a produção " em massa " é a imagem mais perfeita, impôs um determinado tipo de conteúdo e sentido à comunicação. De facto, as sociedades modernas da produtividade e da rendibilidade exigem comportamentos específicos aos indivíduos, definindo os modelos culturais necessários. Nesta comunicação cultural, os mass-media têm uma acção de massificação da cultura, anteriormente personalizada em função de gostos, interesses ou preocupações individuais. Assim, a nova cultura de massas tem por função a estandardização de maneiras de pensar, sentir e agir conformes aos códigos culturais vigentes na sociedade.

Novos paradigmas se instalam nas práticas sociais, alterando e moldando as fontes de transmissão do saber. Se a rádio fez concorrência à imprensa escrita e o cinema adquiriu um verdadeiro desenvolvimento, a televisão, meio privilegiado de comunicação, " alterou o mundo ".

São, precisamente, estes novos paradigmas que colocam hoje em equação a necessidade de repensar uma rede de fenómenos, de implicações múltiplas, e que passa por uma fenomenologia e sociologia da comunicação. Uma teoria que tenha em conta o público a quem se dirigem as mensagens, o modo como estas são recebidas e interiorizadas pelos seus destinatários e os processos de mediação da comunicação, é um desafio que se tem colocado ao saber contemporâneo. Para citar apenas alguns, refira-se os contributos analíticos de Jacques Mousseau, Jean Cazeneuve, Edgar Morin ( a "cultura de massas" ), Jean F. Lyotard ( " A Condição Pós-Moderna " ), J. Habermas ( A " Razão Comunicacional " ) e Karl Popper. Este último autor, em "A Lição deste Século", revela a sua preocupação por certas formas de violência ( no sentido amplo da expressão ) endémica nas sociedade modernas, a começar por aquela que exercem sobre os espíritos, insidiosamente, os meios de comunicação audiovisuais, nomeadamente a televisão. Popper atende, em especial, o efeito que esse meio de comunicação pode ter de negativo sobre o público infantil ( e mesmo sobre camadas mais vastas de audiência, ao cercear o sentido crítico e liberdade de pensamento ), chegando a propor um controlo sobre os seus " abusos e omnipotência ".

Fernando Pessoa, considerando a sociedade do seu tempo, as particularidades conceptuais de uma modalidade de discurso e os instrumentos críticos e de análise, não deixa de estar presente numa problemática mais do que nunca hodierna, ele que foi: "da sua época só pelos defeitos ", ele que foi génio.

BIBLIOGRAFIA

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Citações

_ Fernando Pessoa, Páginas de estética e de teoria e crítica literárias, Lisboa, Ed. Ática, 1973, p. XI.

_ Eduardo Lourenço, Pessoa revisitado, Porto, Ed. Inova, 1973, p. 14.

_ Fernando Pessoa, op. cit., cap. I, nº 14, p.18.

_ Eduardo Lourenço, op. cit., p. 20.

_ Ib.,p. 201.

_ Fernando Pessoa, op. cit., cap. I, nº 3, p. 4.

_ Ib., cap. I, nº 15, pp. 19-20.

_Cf. Jacinto do Prado Coelho, " Tópicos para uma leitura crítica" , em Fernando Pessoa, op. cit., p.XVI.

_ Ib., pp. XVI-XVII.

_ Fernando Pessoa, op. cit., cap. III, nº 1, p.53.

_ Ib., cap. I, nº 19, p. 27.

_ Ib., cap. I, nº 21, p. 30.

_ Ib., cap. I, nº 17, p. 24.

_ Ib., cap. III, nº 2, p. 54.

_ Ib., cap. III, nº 3, p. 55.

_ Ib., cap. III, nº 2, pp. 54-55.

_ Ib., cap. III, nº 3, p. 56.

_ Ib., cap. VI, nº 1, p. 117.

_ Ib., cap. I, nº 13, p. 12.

_ Ib., cap. III, nº 3, pp. 56-57.

_ Ib., cap. III, nº 4, p. 60.

_ Ib., cap. III, nº 4, p. 61.

_ Ib., cap. III, nº 4, p. 63.

_ Ib., cap. III, nº 4, p. 63.

(1999)

Carlos Frazão
Enviado por Carlos Frazão em 27/11/2008
Reeditado em 02/12/2020
Código do texto: T1306614
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