O desamor e a desordem das idéias apaixonadas

Vive pela metade aquele que não tem um amor, come pouco, bebe pouco, caminha lento, e toda distração é parcial: apenas parte dele se ri ao assistir a comédia famosa na TV. Complicado ser inteiro se o amor não se mostra por nenhuma parte.

O mais sozinho, porém, é decerto, o mais romântico. Tem só a idéia do amor como companheira, não tem nenhuma companheira real e ninguém é tão amoroso do que aquele que não tem com quem ser amoroso, aquele que não só se imagina tratando do melhor jeito a pessoa amada como também, incluso nesse sonho apaixonado, pensa em toda a tensão de uma briga de casal, da tristeza infinita de uma noite infinita que acaba com o dia amanhecendo e a doçura do momento da reconciliação, a troca de palavras, os olhares atravessados e o beijo derradeiro e inconstante selando a tudo como válido, como necessário, como um “Sim, eu aceito que o homem do noticiário não fale o sentido explicador da vida, pois eu me sinto vivo e isso me basta e é isso que eu quero para sempre”.

Ama-se primeiro a idéia do amor e, então, direciona-se esta idéia para aquele que melhor se enquadre nos conceitos pré-estabelecidos de como seria o par perfeito, mesmo cheio de imperfeições, tudo isso contando o momento em que se encontra somado aos resquícios de outras relações, e arrisca-se, aí, à loteria romântica. Na loteria romântica os que ganham mais sempre ganharão mais, os que perdem mais sempre perderão mais e os que não jogam definham por si sós. Os vencedores esbanjam, podem refutar muitos amores, podem ser frios com todo mundo, pois todo mundo os quer mesmo e só são vencedores por isso, porque os tratam como vencedores e isso gera que sejam eles mais confiantes, mais corajosos e é nisso que reside grande parte de continuarem a ocupar os postos mais altos na escala do amor: ser objetivo, ser corajoso é muito mais amável do que aquele que reflete sobre a ação, pondera e muitas vezes não age ou age tardiamente. Estar enfrentando a surpresa iluminada das ruas, puxar conversa com outra pessoa e tentar beijá-la é muito mais lucrativo e apaixonante do que teorizar e escrever sozinho sobre isso numa noite de verão que mais parece um convite para sair e ver se ela durará para sempre.

Por isso, talvez, o fracasso dos pensadores e escritores quanto ao tópico amor. O poeta, antes de tudo, percebe o arredor, escreve o que vê e exagera no olhar, captura a exatidão dos fatos, compreende e, o mais incrível, consegue pôr em palavras e explicar as coisas do mundo, tudo isso muitas vezes decorado num arranjo bonito de versos. E só. Muito mais apaixonante é fazer um gol: o grito do narrador, o pulo do torcedor, a comemoração em massa. Ou mesmo ganhar a corrida: o grito do narrador, o pulo do torcedor, a comemoração em massa. O poeta fez um verso que exprimiu magnificamente a chegada da hora confusa em que a noite se torna manhã: aham, tá bom. Ninguém viu, ninguém gritou, sem comemoração: ele relê 50 vezes e tudo bem, levanta, toma água, tem mais idéias que o verso magnífico lhe traz à cabeça, O.K. sem platéia, emoção de um só. Jamais irá sair correndo, acordar o vizinho, dar-lhe um abraço e gritar “Descrevi de maneira fantástica a hora estranha do dia!”, jamais.

Os poetas, os perdedores da loteria, são, talvez, os mais profundos, os mais exagerados e os mais sinceros. Mostram-se e não vêem a hora de dizer o tão esperado “Eu te amo”, de gritar a todos “É ela!” (ou “É ele”, claro, claro). E é aí, ao se mostrar é que falham: são capazes de fazer o que for que a pessoa amada quiser fazer e essa obediência se torna previsível, conhecida, mostrada por demais. Acabam por se tornar transparentes por demais, e transparente é aquilo que olho algum vê. Sucesso mesmo faz aquele que mantém em si mistérios, que deixa a pretendente esperando: “o que de mais importante que eu que o fez atrasar?”. A não prova do amor alheio é a sede de que se prove a si mesmo e a frieza é que, hoje em dia, esquenta as relações românticas. Para as relações românticas iniciarem é necessário, na verdade, uma distância, um não conhecimento um do outro, um mistério e não uma transparência, pois não se beija na boca o amigo, afinal é o amigo, eu o conheço muito, não o vejo como namorado. “Não o vejo”. Transparente é aquilo que olho algum vê. Cor, não transparência que é nenhuma cor, se precisa. Cores, mesmo as mais frias, fazem se notar, elas são vistas e pintam a vida de muito mais pessoas do que aqueles que por se mostrarem em abundância acabam inodoros, insípidos e incolores: a tinta cai no asfalto e deixa sua marca verde para sempre, a água cai no chão e evapora rápido como se nunca tivesse caído.

As relações românticas são o assunto maior, todos falam sobre, todos amam falar sobre o amor. Todo mundo que se embaralha nas ruas, que entrega as nossas cartas, que nos coleta o lixo, que fecha o sinal, que atropela os transeuntes quer mesmo é ter um lugar nesse mundo e para isso não basta entregar bem as cartas, fazer uma boa coleta do lixo ou mesmo atropelar quanto mais pedestres puder. Sem amor, de 8 no acidente morrem só 4. Metade. É preciso para ser inteiro de outro. De outro para se falar coisas de amor. Um amor falado. E é no mundo verbal que muitas vezes acabamos nos confundindo: Amor, Paixão, Destino, Amizade, Acaso, Deus e ainda outras palavras com iniciais maiúsculas são signos que se nos estabelecem como uma escala romântica, como uma escada do amor cujos degraus são nos impostos e nos quais acabamos tropeçando, confundindo-se em palavras e conceitos sem saber direito o que tais nomes tão cheios de significações realmente significam, se significam: a palavra “paixão” é que é momentânea, é ter essa palavra em nós o porquê de não pensarmos que é “amor”. O amor então é dividido em grupos, imaginemos os diferentes ritmos que o coração tem que pulsar em cada um deles: o amor dos amigos, o amor das paixões passageiras, o amor à vida, às coisas, à aceitação do destino, o amor verdadeiro, o de mentira, o desamor. Tudo erro de distância entre as palavras e as idéias apaixonadas.

Um homem sem amor fica chato, fica triste, fica burro: se vai praticar algum esporte, pratica mal, se vai arrumar a fiação elétrica, não tem paciência, se vai escrever, embaralha e atropela os versos, se perde nas vírgulas e nos parágrafos. Joga mal o jogo da vida sozinha e quer e pensa se lançar à loteria romântica, mas esse jogo é de azar. E não há TV que o distraia. E parece não mais haver saída: todas as pessoas já amam, já são casais, já são complicadas demais. Já não acreditam nas palavras, não nas certas. Já não te vêem, seu transparente de merda. Nunca te viram, bastardo do amor! E nem no verão, nem no inverno. Sem noite eterna maravilhosa para você, sem Amor, Paixão, Destino, Amizade, Acaso, Deus, nem aqui nem por carta, nem a coleta de lixo veio hoje, nem o carro quis te beijar a 100 por hora!

É metade de si apenas para manter-se de pé, para haver ainda esperança. A cruel esperança que há enquanto houver vida... Agarremo-nos nessa palavra então, seja lá o que ela signifique, e esperemos o dia em que também possamos rir da comédia famosa, arrumar a casa, marcar o gol, chutar a lata de tinta, ganhar na loteria, organizar as idéias, colocar a cabeça no lugar por sentir que o coração já está e, finalmente, escrever bem sobre aquilo que nos falta, que será outra coisa e não o amor.

Do transparente e mau escritor Adrian Lincoln F. Clarindo