A Utopia na obra de Oswald de Andrade - Análise sobre as peças teatrais O Rei da Vela e A Morta
Introdução
Na chamada Trilogia da Devoração, as obras de Oswald de Andrade, A Morta, O Rei da Vela e O Homem e o Cavalo, são representativas principalmente de uma ação estética e política, do autor que nessa década de 30 já estava engajado no Partido Comunista e procurava um campo de desenvolvimento para suas idéias, elegendo o teatro como a vitrine ideal para seus experi-mentos, sempre da forma inquieta e radical que o caracterizou.
O objetivo desta análise, ao enfocar de modo comparativo as peças O Rei da Vela e A Morta, ambas publicadas em 1937, é buscar um ponto de contato e dissertar sobre a questão da utopia, sempre presente nas obras de Oswald, procurando visualizar como o autor aborda o tema, trazendo ao palco teatral esta proposta.
Análise
Oswald de Andrade já havia colocado anteriormente, desde a publicação do Manifesto Antropófago, Serafim Ponte Grande e O Homem e o Cavalo, por exemplo, que a proposta utópica se fazia presente e necessária em sua obra, pois ao ser denominado como representante da produ-ção cultural de sua época, por suas posições vanguardistas e provocadoras das mais diferentes reações, ele antevê a essência de uma utopia analítica, radical e catalisadora de mudanças no contexto sócio-político-cultural da época.
O Rei da Vela, peça em três atos, publicada em 1937 e montada pela primeira vez apenas em 1967, ao contrário do teatro de tese, presente em O Homem e o Cavalo, onde Oswald defende a idéia do comunismo e do socialismo como o ideal utópico modelo para a sociedade da época, faz um recorte de toda a consciência revolucionária do autor, explicitando através de suas analogias entre fatos, personagens e lugares, uma visão crua e desmascarada do País e de sua História.
A visão crítica, além do tempo e do espaço, tão característica do autor, está aqui exarcebada ao colocar personagens como Abelardo I, protótipo do oportunista e inescrupuloso, repre-sentante legítimo do que mais tarde se convencionou chamar de “jeitinho brasileiro”, administrador impiedoso do capital amealhado durante anos, através da usura e da exploração.
Não há culpa alguma, o personagem justifica, já que “... sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você...” , dirigindo-se a sua noiva, Heloísa de Lesbos, figura propositadamente andrógina e representativa da hipocrisia de uma união calcada em interesses mútuos de propriedade, família e manutenção do status quo.
Conforme bem apanhado por Sábato Magaldi no prefácio O País Desmascarado, Oswald “...propõe uma reflexão sobre a realidade nacional através de uma visão desmistificadora, com a substituição da ficção construtiva pela paródia”, onde a metalinguagem remete às referências do romance histórico, como Abelardo e Heloísa, porém descartando a ingenuidade e proclamando que seu matrimônio é um negócio.
Ao apresentar um personagem como Abelardo II, Oswald faz outra paródia, desta vez com o duplo, ou alter-ego, presente em Willian Wilson, de Edgar Alan Poe, onde um personagem pode agir descompromissado da sua ligação com o outro, pensando e realizando outras coisas, mas porém intimamente identificado com seu “original”.
Abelardo II, caraterizado com chicote, botas e arma, é a própria encarnação do domador de circo, mantendo os clientes afastados, na jaula, selecionando aqueles cuja dívida ou necessidade seja mais relevante para que seja entrevistado por Abelardo I.
Da mesma forma, os outros personagens obedecem a um critério de representatividade, que faz analogia com pessoas e fatos da época, mas que soam tão atuais aos ouvidos de agora, que não é preciso fazer um esforço demasiado para perceber o grau avançado em que a verve simbolista de Oswald se encontrava, num recorte social, econômico e político da História nacional, capaz de balançar as estruturas apoiadas cinicamente no trinômio Pátria, Família e Propriedade.
Este olhar rebelde, incendiário e inconformado com os padrões sociais vigentes, asfixian-tes de toda modernidade e vislumbre de desenvolvimento para o País, é o elemento impulsionador de toda a produção textual de Oswald, porquanto consciente do seu papel transformador e formador de opinião, na busca de novos valores históricos e culturais.
Já em A Morta, ato lírico em três quadros, conforme denominado pelo autor, o que se pode observar é a própria desconstrução do teatro e da poética como conhecidos, uma reformulação estrutural que acaba com os limites entre atores e platéia, esta última sendo mais um elemento coadjuvante do espetáculo, ou, no dizer de Carlos Gardin no prefácio A Cena em Chamas: “...o olhar do espectador assiste à autópsia do poeta e da poesia e, por conseguinte, é instado a assistir à sua própria autópsia”.
Conclusão
Toda a simbologia presente nas duas obras, para falar tanto de socialismo, de comunismo e de imperialismo, como da personalidade dos personagens, é uma estratégia muito bem usada para analisar e dissecar os mecanismos sociais de um país que volta, recorrentemente, as costas a uma verdadeira revolução moral e de costumes, subtraindo às gerações a possibilidade de alterar o rumo da História.
É um teatro ideológico, sem porém apelar para idealismos piegas, pois a autocrítica do au-tor o impele no sentido de provocar uma reflexão visceral, desprovida de sentimentalismo e recheada de questionamento, de confronto entre a realidade vivida na época e o surrealismo desta própria realidade, um retrato sem moldura de um Brasil que precisaria negar o presente para se constituir no país do futuro.
Esta talvez seja a essência do ideal utópico de Oswald, a antropofagia necessária para se promover uma mudança que atingisse tudo e todos, que destruísse, entre outras coisas, o oportunismo, que se carateriza como única ideologia nacional, mantenedor de um falso progresso, sem ordem nem direção.
O teatro de Oswald de Andrade é por si só um verdadeiro manifesto utópico, onde o autor prefere apresentar uma proposta anarquista, realista, mas extremamente sintonizada com o futuro, o que pode ser comprovado com o fato de que o texto é atual, estando adiante de seu tempo.
O poder de síntese de Oswald contribui para que a manutenção do ideal utópico se faça calcada não somente numa utopia socialista carregada de passionalidade e religiosidade, como Fourier, mas, sim, penda mais para Saint-Simon, e também Manhein, nos aspectos de racionalismo e conhecimento, associado a um ideal socialista humanitário e liberal.
A visão crítica e satírica do autor, interpretada muitas vezes como reacionária e instigadora de preconceitos contra outros gêneros e formas literárias, é, na verdade, a forma que ele colocou a serviço de uma desconstrução do conformismo e da representação importada do romance, tão comuns na época e que não satisfaziam de forma alguma seu espírito irrequieto e inovador.
Pode-se dizer que ao desenvolver e trazer para o teatro as suas idéias, Oswald consolida um verdadeiro divisor de águas entre o que existia antes e o que seria dali para a frente, reinventando o teatro, questionando a própria função social da arte, apresentando-a como um poder capaz não só de provocar reações variadas na platéia, mas fazer a própria platéia refletir sobre seu papel.
Talvez nos tempos que hoje vivemos, seja preciso olhar com cada vez mais atenção os textos de Oswald, pois eles continuam falando de uma necessidade de repensar valores éticos, morais e culturais, para que haja, realmente, uma possibilidade de evolução histórica para um país que almeja ser chamado de desenvolvido em todas suas potencialidades.
Afinal, somos espectadores da História do País, ou representamos a realidade sem sequer saber o roteiro?