POEMA: TRABALHO DE OURIVESARIA

“PONTUAÇÃO

Zully Teijeiro

No teu rosto, as reticências empalidecem as certezas cotidianas.

Em teus olhos, as vírgulas quebram a monotonia do ponto final.

Tua boca em exclamação interrogativa de períodos simples dá

as coordenadas assindéticas, que abundam em teu peito ponto-e-vírgula.”

Publicado no Recanto das Letras em 02Mar2006.

Zully, preciosa, amada ao meu coração! Curioso que tenhas classificado este texto como prosa poética. Percebe-se, de pronto, o quanto estás exigente de teu estro. Vê-se, ao rápido olhar, que aparecem elementos de Poética claramente perceptíveis: metáforas, sugestionalidade, imagística. Não consigo identificar a transcendência, aquele olhar de fundo de olho que faz a gente viajar, ir longe. Aquele momento, na leitura do poema, em que percebemos que começamos a voar, que as palavras criaram asas. A cabeça começa a girar e está começada a viagem. O ritmo, sim, talvez seja isto o que te imantou para tal classificação. Realmente, aqui não é encontrável a especificidade rítmica, identificadora da materialidade poética. Na prosa, em regra, esta ritmação é inespecífica, não possui o "tonus poético", o andamento rítmico, esta pulsão que o poema contém. Estou por me convencer de que um dos componentes mais importantes, em Poesia, é o cadenciamento rítmico. Sem ele, o bom autor, aquele que tem apurado "feeling" e, portanto, exige-se na criação, percebe que não está frente a um poema e, sim, convive com a coloquialidade. Neste poema em prosa é tão forte a presença de elementos poéticos, que estes instigam a uma experimentação utilizando a técnica de composição poemática. Em inserção imediata, vou tentar o poema-síntese, cânone da poesia da contemporaneidade. Peço licença e, desde logo, o perdão para este teu tresloucado amigo. Sabes, de há muito, que o poeta é este ser condenado a pensar, a refletir sobre a matéria da vida, e a aceitar o desafio de reconstruir o mundo a partir de sua cabeça. Assim que, para o vaticinador, o vate, o profeta, o poeta, o bardo, sinonímias da espécie, nada está pronto, acabado. Aliás, para o antevisor do futuro, o mundo do presente é um imenso Nada. Como entendo que arte é experimentação, passo a estudar contigo, OK? Vamos ao poema: "No teu rosto, / reticências empalidecem cotidianas certezas. / Em teus olhos, / vírgulas quebram a monotonia do ponto final. / Tua boca, / interrogativa exclamação de simples períodos, / dá assindéticas coordenadas, / que abundam em teu peito ponto-e-vírgula”. Observaste como a limpeza do texto, a cirurgia de palavras (buscando a ritmação) produziu um belo espécime em Poesia? Grato, muito grato pela confluência de amor à poesia, ao exercício para alcançá-la, coisa que nem sempre ocorre. Porque chegar à poesia é, também, trabalho de ourivesaria.

– Do livro CONFESSIONÁRIO - Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2006.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/123503