ENSAIO SOBRE A VISÃO
“Gracias a la vida,
Que me há dado tanto.
Me dio dos luceros
Que cuando los abro
Perfecto distinguo
Lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado.”
Violeta Parra
Estreou recentemente nos cinemas do país o filme “Ensaio sobre a cegueira” do brasileiro Fernando Meirelles, baseado no livro do português José Saramago. Filme feito para concorrer ao Oscar, relata a história de uma súbita epidemia de cegueira que ataca as pessoas.
Em meu consultório atendo muitos deficientes visuais, e com eles tenho aprendido muito. Na grande maioria, conseguem viver normalmente, tendo a deficiência visual como uma circunstância. Eles amam, trabalham, praticam esportes, constituem família. Cuidam de seus filhos como se enxergassem perfeitamente, mantendo-os asseados, bem cuidados e até, como caso de Giovana, fazendo penteados criativos nas meninas. Seus filhos aprendem a guiá-los, e percebo que desde pequenos têm senso de responsabilidade e cuidado com os pais especiais.
Para nós, que enxergamos, ver é um ato natural. Ao abrirmos os olhos pela manhã não nos lembramos de agradecer a Deus por este dom, como faz Violeta Parra em sua canção “Gracias a La Vida”. Mas há muito tempo venho tomando consciência de quanto é bom poder ver... Gosto muito de viajar, e sempre que estou num lugar maravilhoso como o Parque da Ferradura na Serra Gaúcha, reflito como aquilo tudo é lindo, e o que estaria fazendo ali se não enxergasse.
No mirante do Parque da Ferradura, fomos uma vez testemunhas e protagonistas de um ato de comunhão com Deus e a Natureza... Era a primeira vez que visitávamos aquela região. Nossa guia, uma gaúcha muito culta e engraçada chamada Rosele, tem, além do conhecimento de turismo, grande conhecimento de História, pois sua formação anterior era o Magistério dessa matéria. Quando no alto do vale, olhávamos extasiados para a maravilha lá em baixo, Rosele começou a entoar um cântico numa língua desconhecida, e lentamente, nossas vozes foram se calando, e fomos envolvidos pelo clima mágico daquele momento. Involuntariamente, lágrimas saltavam de nossos olhos... Todos nós, turistas, com nossas máquinas fotográficas e nossos gorros ridículos para proteger as orelhas do frio a que não estávamos acostumados ficamos petrificados com a cena. No final, ela disse: “Este é um canto indígena que aprendi, que fala da beleza da natureza. Agora vamos dar-nos as mãos, rezar um Pai-Nosso e agradecer ao Criador dessa maravilha!”
Ao sair de lá, o meu pensamento era um só: “como é bom enxergar!”.
Os deficientes visuais conseguem com o tato “ver” muita coisa, e com o ouvido, perceber sons para nós inaudíveis, mas aqueles que não enxergam desde o nascimento, não podem ter idéia de como é o azul, ou como o entardecer pode ser um espetáculo de cores e luzes. Nem podem imaginar como é o nascer do sol...
E nós, pobres videntes, temos na nossa frente todas essas maravilhas diariamente, e passamos ao largo...
Além da experiência quase mística do Parque da Ferradura, em outras ocasiões pude valorizar o dom da visão: em Chizén-Itzá, cidade maia da Península de Yucatán no México, do alto da Pirâmide Grande Castillo, ao vislumbrar a mata pontuada com ruínas e envolta em névoa, no alto da Torre Eiffell , ao ter aos meus pés a Cidade-Luz, testemunhando naquele momento a realização do sonho da minha vida, e em Lisboa, no mirante do Castelo São Jorge, de onde se descortina toda a beleza da cidade.
No alto da pirâmide, sozinho, porque meus companheiros de viagem não se dispuseram a subir os íngremes 92 degraus que dão acesso ao topo do monumento, tive uma visão de 360º de todo o sítio arqueológico e histórico, e imaginei quantas histórias se desenrolaram naquele cenário... De um lado, o Cenote, lago dos sacrifícios, com sua água verde e pesada, onde eram jogadas jovens virgens e crianças em rituais de fertilidade e prosperidade, e do outro lado, o Templo das Mil Colunas, onde certamente se realizaram rituais inimagináveis... Um pouco mais longe, o local onde era jogado o “juego de pelota”, jogo de bola onde o prêmio era a cabeça do adversário...
Do alto do maior símbolo de Paris, a sensação, além do vento e do frio intenso, era de puro embevecimento, por ter abaixo dos pés, até onde a vista alcançava, a cidade mais linda do mundo, com o Rio Sena serpenteando em meio a construções seculares, a Île de la Cité, a Catedral de Notre Dame, o Louvre com sua pirâmide de cristal, o Dôme des Invalides, o Arco do Triunfo de l’Ètoile...
E ao chegar à beira da muralha do Castelo de Jorge, Lisboa se revela linda, majestosa, com a imponência do Rio Tejo ao fundo.
Continuando esta reflexão sobre o dom da visão, sinto que valorizamos tão pouco este sentido precioso, que para nós é muito natural assistir a um filme com imagens maravilhosas, ou a uma peça teatral com uma cenografia fantástica, ou a um show riquíssimo em iluminação, sem dar-nos conta que seria muito diferente ouvir os sons desses espetáculos na escuridão...
Não que a visão não nos traga muitas vezes imagens horríveis, cenas que gostaríamos de nunca ter visto, faces horripilantes... Mas isso nada significa frente ao milagre de poder enxergar, à graça de poder de ser testemunha ocular das maravilhas da Criação!
Hermes Falleiros
Franca, 24 de setembro de 2008.