Leitura e afetividade: do contexto social à perspectiva literária a partir dos contos “Aqueles Dois” de Caio Fernando Abreu e “Pílades e Orestes” de Machado de Assis.

O conto “Aqueles dois” de Caio Fernando Abreu representa uma realidade totalmente articulada com valores que se sobrepõe ao que poderia evidentemente chamar-se de condição humana, na medida em que o estar-no-mundo pressupõe uma relação de contato entre as pessoas. O que dizer, portanto, da amizade, do companheirismo e da afetividade? Estar inserido nesse contexto não seria deveras ponto de equilíbrio entre a solidão e a multidão? Ou devemos trilhar outro caminho e afirmar que a realidade é algo totalmente alheia ao ser humano?

É evidente que quem responder a este último questionamento pela afirmativa terá também de ignorar o processo ostensivo pelo qual as pessoas passam para construir suas vidas. Esse conto (aqueles dois) serve perfeitamente para ilustrar o cotidiano social da vida das pessoas em nossa contemporaneidade. Serve também como provocação e como ponto de partida, indubitavelmente, para uma reflexão de todo esse processo em que linguagem e sentimento refletem uma inquietude.

Partindo de uma amizade “calorosa” o conto apresenta para o leitor certos valores totalmente configurados com a realidade social que está inserido. Temas como amizade, trabalho, solidão, apego, repressão servem como tônica para que se possa pensar em características próprias e pertinentes. Cabe então perguntarmo-nos: como esse conjunto de valores está inserido na obra?

O ser humano parece marchar frente à realidade social – que por si só é algo inevitável – num desenvolvimento propício e contextualizado. De súbito sua vida passou a ser delimitada por elementos de profundas raízes que a muitos olhos ainda é algo obscuro e/ou ignorado. Diante do outro, do meio, do contexto se vê fragmentado. Quando percebe a si próprio já está inserido em uma realidade de conflitos tornando-se parte decisiva e definitiva. Isso se dá, sobretudo porque quando nasce se depara com uma série de valores na sociedade a qual está condicionado.

Segundo Jonathan Culler (1999) o sentido do texto é algo que necessariamente diz da experiência do leitor. Essa construção do sentido envolve hesitação, conjecturas e autocorreções. A interpretação de uma obra literária, por exemplo, deve ser concebida como sucessão, isto é, como história dessa experiência. Nessa sucessão de ações sobre o entendimento na construção do sentido “entra em jogo diversas convenções”.

O que Culler parece não abrir mão quando trata dessas características é o fato de que o leitor já traz consigo meios para a construção do sentido, não podendo ignorar dessa forma, que sua experiência é parte decisiva e preponderante. A partir disso podemos dizer que na mente do leitor já há certo número de valores circulando talvez de um extremo a outro. Nesse sentido a interpretação pode muito facilmente também ser encarada como prática social. E o que dizer da prática social senão que está imbuída de um conjunto de valores caracterizando toda uma realidade?

Podemos entender que os personagens assumem posicionamentos coerentes de afetividade. E isso é evidentemente uma realidade humanamente existencial. Dessa forma, podemos representar essa reciprocidade de acordo como o contexto em que os personagens estão inseridos? A linguagem que é parte relevante nesse processo sugere alguma temática que possa ser encarada como pedra de toque para evidenciar todo esse contexto?

Segundo Roland Barthes (1993), a literatura surge num mundo de linguagens. Não podemos pensar, pois na literatura como linguagem isolada, mas sim como “linguagem de várias e diferentes linguagens”. Com relação a isso também podemos entender com Orlandi que:

"Como a interpretação tem uma relação fundamental com a materialidade da linguagem, as diferentes linguagens significam diferentemente : são assim distintos gestos de interpretação que constituem a relação com o sentido nas diferentes linguagens".

(2001, p.19).

E mais adiante:

"A incompletude é característica de todo processo de significação. A relação pensamento/linguagem/mundo permanece aberta, sendo a interpretação função dessa incompletude que consideramos como uma qualidade e não como um defeito : a falta como temos dito em abundância, é também o lugar do possível na linguagem".(Orlandi,2001,p.19).

Nesse sentido podemos perceber que no conto há uma falta de diálogo – fato esse que também parece ser proposital. A linguagem não caracteriza, pois algo massificado ou massificador. Com essa falta, isto é, essa incompletude o autor – não descrevendo, mas apenas representando diálogos – consegue de uma forma mesmo que sutil colocar a temática da solidão como pano de fundo.

Raul e Saul, personagens do conto, vivem sobremaneira essa realidade de uma forma totalmente visível. “Eram dois moços sozinhos”. O primeiro vindo do norte, o outro do sul. Não tinham ninguém a não ser a si próprios.

Característica humana a solidão representada nessa incompletude corrobora a necessidade do silêncio que é refletido como a forma de uma rigidez inconteste no seio da sociedade. Raul e Saul não tomam posicionamentos demonstrando com isso talvez suas próprias fragilidades.

Dessa forma, podemos perceber que o descaso, o individualismo dos colegas de trabalho com suas alienações compartilhadas servem em absoluto como agravante do sentimento de solidão no qual os dois personagens citados são os principais afetados. A força de seus gestos e a confiança que depositaram um no outro podem claramente ser descritos como o ponto de partida para que assim pudessem estabelecer entre si um vínculo de amizade.

A linguagem é instigante e realista. O leitor se sente inquieto deixando em muitos momentos a passividade para fazer parte do enredo como que fosse convidado a entrar na história e interferir nos fatos. Não se é possível, portanto, ficar no exterior da leitura – como diria Barthes. Ela deve ser encarada antes como deslocamento, inquietação, movimento.

Assim na visão de Umberto Eco (1993) a leitura deve ser encarada como transação postulada entre a competência do leitor e a competência de um dado texto. Reflexões estas dão à idéia tão difundida de “conhecimento prévio”, ou seja, do conhecimento de mundo do leitor. Nesse sentido, diversas expressões detêm um significado social não podendo – para bom entendimento – ser separada do contexto a que está inserida.

O discurso do narrador do conto, por exemplo, se aproxima sobremaneira da situação a que os personagens estão submetidos que em muitos pontos temos a impressão de que narrador e personagens se confundem, isto é, se completam. É evidente que o tema ao qual estes personagens se deslocam abre margem para uma reflexão muito próxima e abrangente de nossa contemporaneidade, como já fora explicitado.

Em outro conto “Pílades e Orestes” de Machado de Assis podemos observar esse mesmo veio realista e reflexivo. Narrando o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro do final do século XVIII, o autor também concentra suas reflexões em torno da amizade, da afetividade e sobretudo do ciúme. É utilizando de um triângulo amoroso que Machado de Assis traz o enigma da subjetividade expressando ora num ponto, ora em outro o companheirismo reinante entre Quintanilha e seu “inseparável” Gonçalves. Entretanto, o ciúme parece ser o algoz da história.

O fato é que há nesse ponto a utilização da linguagem na tentativa de provocar no leitor uma inquietude e – para ir mais longe – um estranhamento. Nesses dois contos podemos observar isso de uma forma visível e autêntica. Surge, entretanto um questionamento não tão simples de responder, mas tão necessário quanto outro ainda que de maior profundidade: como é possível pensarmos na relação que parece ser inevitável entre essa reflexão pertinente e essas caracterizações do real expresso através da linguagem pelos autores?

(...)" Os falantes e leitores podem ser levados a enxergar através e em torno das configurações da sua língua, a fim de ver uma realidade diferente. As obras de literatura exploram as configurações ou categorias dos modos habituais de pensar e frequentemente tentam dobrá-las ou reconfigurá-las mostrando-nos como pensar algo que nossa língua não havia previsto anteriormente, nos forçando a atentar para as categorias através das quais vemos o mundo irrefletidamente". (Culler, 1999. P.63).

De acordo com esse autor, a leitura é parte inseparável da visão que se tem do mundo. O pensamento pode estar em consonância com a linguagem e a partir disso revelar uma realidade sem prejuízo para a construção do sentido. O leitor pode configurar para além da língua um determinado pano de fundo não necessariamente destoante de seu posicionamento empírico. O que constrói a partir do pensamento tem fundamentalmente ligação com o mundo que é o real a que está em conformidade.

Também podemos observar a partir desses contos que outra forma de expressar as vicissitudes de seu tempo através da linguagem – tão bem utilizada por Machado de Assis e Caio Fernando Abreu – reside na caracterização do meio social ainda que se não na perspectiva dos personagens ao menos no posicionamento dos mesmos diante dos fatos. A articulação entre tempo e espaço, a produção dos sentidos numa simbologia autêntica e a organização que se tem do real mesmo que imperceptível para os personagens, mas presente no discurso dos narradores dos dois contos coloca o leitor sempre num posicionamento de indagação e busca.

Mas até que ponto devemos levar esse processo de paralelismo em que leitor e texto se encontram? Qual a conclusão que se pode tirar dessa relação? Há de fato essa relação?

Posto tudo isso se torna evidente que leitura é movimento. É busca. Esse deslocamento é justificado pela desconstrução tão necessária para a construção do sentido. Esta é sempre o resultado de uma divisão, ou articulação de signos para depois culminar-se em um todo elaborado a partir do pensamento e da linguagem.

Há de fato essa relação. É, pois, tarefa não tão simples demarcar os limites desse contato. Leitor e texto muitas vezes ultrapassam o real da língua.

Referência bibliográfica:

BARTHES, Roland. Para/ou onde vai à literatura. In: VÁRIOS. Escrever... Para quê? Para quem? Lisboa, Edições 70, 1975.

CULLER, Jonathan. Teoria literária uma introdução. Tradução e notas: Sandra Guardini T. Vasconcelos. São Paulo: Beca produções culturais Ltda, 1999.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes. 1993.

MARICONI, Ítalo (org). Os cem melhores contos do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e texto: Formulação e circulação dos sentidos. Campinas – Sp: Pontes, 2001.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 15/10/2008
Reeditado em 20/09/2020
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