FILHOS GERADOS DE ESTUPROS

A historiografia oficial versa que nós, brasileiros, somos descendentes de três raças: brancos, negros e índios. Essa miscigenação é incontestável. Porém, se analisarmos a questão sob o ponto de vista antropológico veremos que o aspecto sócio-político-cultural da época nos remete a uma questão de gênero.

A grande maioria das mulheres negras e índias que geraram nossos antepassados não tiveram opção de escolha nem em relação aos parceiros nem em relação à concepção: foram estupradas e obrigadas a gestar as proles resultantes desses estupros.

Os registros de relacionamentos íntimos entre mulheres brancas e homens indígenas, durante o povoamento da Colônia, não vão além da ficção: “O Guarani”, de José de Alencar, é um grande exemplo. Igualmente o foi a relação entre mulheres brancas e homens negros.

Em contrapartida, não se pode dizer o mesmo em relação aos homens brancos com as mulheres índias capturadas e “domesticadas” e com as negras escravas. Essas mulheres, quando jovens e atraentes, eram usadas como objeto sexual dos brancos ricos – situação aceita, na época, como algo natural. As próprias esposas desses homens aceitavam resignadas, salvo uma resistência ou outra (sempre contra a negra ou índia usada como amante, nunca contra o próprio marido).

Não há como negar a miscigenação das três raças na formação do povo brasileiro, porém, também não há como negar a questão de gênero explícita nesse processo. É inequívoca a junção de três culturas e a prevalência de uma delas: a do branco, imposta pela força e pelo fator ideológico – assim como em todo processo de aculturação alguns valores das culturas dominadas sobreviveram.

Há quem defenda a ação dos colonizadores afirmando que os próprios índios se sentiam realizados vendo suas mulheres se relacionando com homens brancos; que tanto negras quanto índias gostavam dos homens brancos, e por aí se vai. Que os índios já praticavam o “cunhadismo” mesmo antes da chegada dos portugueses. Não passam, obviamente, de justificativas pueris que só convencem a quem de fato quer ser convencido.

Sandra Maria de Assis, num trabalho intitulado “Mulheres da Vila, Mulheres da Vida – Vila do Príncipe (1850 – 1900)”, desenvolve uma pesquisa sobre o papel da mulher na sociedade brasileira no final do Império e início da Republica; a autora destaca todo um conjunto de estratégias sócio-culturais, cujas origens remontam ao período colonial, voltadas para a manutenção das relações patriarcais e, conseqüentemente, da submissão das mulheres. Segundo ela, as mulheres eram “envolvidas num emaranhado de imagens e discursos arquitetados para aprisioná-las, domá-las, fazê-las construir um modelo identitário que seria constantemente reelaborado e subjetivado garantindo uma posição de subordinação”. Mais à frente a autora afirma: “As escravas, como propriedades de seus senhores, deviam prestar-lhes favores sexuais se eles exigissem”.

As mulheres brancas de famílias de posse, não obstante a submissão, eram preparadas para exercerem o papel de esposa e de mãe de homens brancos. Já em relação às brancas pobres é possível encontrar registros de algumas raras uniões destas com homens negros – com índios, porém, ficam só na ficção.

Podemos afirmar, então, que somos descendentes das três raças citadas, todavia, a partir de relações carnais de homens brancos com mulheres negras e índias. E, como já foi dito acima, não há nenhum exagero em se afirmar que a maioria dos nossos antepassados foram gerados de verdadeiros estupros – muitos desses estupros foram consumados pela força física e pela força das armas, outros pela força do poder político-econômico-cultural.