sobre a vida nemumpoucosimples
as obviedades do mundo, para ela, configuravam-se inconcebíveis. inúmeros caracteres de formas nunca antes vistas, como quando olhamos as palavras sem ler, antes de as sabermos palavras. era um mapa de extensão infinita, coberto por esses símbolos que ela não era capaz de entender...
- e isso lá é jeito de guardar um documento!?! - esbravejava a velha, desamassando o receituário médico que sua filha trouxera na bolsa, junto de 5640 outras coisas potencialmente espaçosas e destrutivas...
a mãe de alice acontecia de ser a fiél intérprete desse mapa, pois, ao contrário da menina, havia aprendido muito bem, sob as duras penas do autoritarismo patriarcal, o significado das convenções.
o que quer que isso significasse, pensava a filha, que não entendia porque um papel tão ordinário quanto um pedido médico havia de estar tão limpo e tão intacto e tão imaculado quanto desejava sua mãe, que era a rainha da ordem, da pontualidade e da estreiteza de caráter (embora também falasse muita merda).
haviam muitas coisas que a menina não era capaz de entender, pois só conseguia enxergar o cerne dessas coisas, e essas coisas estavam cheias de banalidade e viviam à superfície delas mesmas, principalmente as pessoas-coisas, inertes e cerceadas por tantos códigos que não existem na realidade sensível, que há de ser vivida.
mas tudo isso era só o que ela pensava enquanto olhava perplexa pra mãe, engolindo toda a linha de raciocínio que construira, e pedindo desculpas, vencida pela acertividade do tom de voz de sua mãe - ela não queria brigar.
era sempre com desdém que pensava as convenções das quais sua mãe fazia questão, as imaginava vazias do significado que a velha jurava existir por trás da maquiagem social, das datas comemorativas que reúnem os queridos&desconhecidos&distantes familiares - a quem não tinha o menor interesse em conhecer, a propósito.
a verdade, e sua mãe não conseguia entender isso, era que o mundo - tal qual todos conheciam - transpirava tédio. como se fosse capaz de algo muito maior, e mais belo, e mais completo de sentido do que estava sendo, mas como as pessoas pareciam não querer nada além (e elas nunca querem!), não ia se dar o trabalho de ser mais do que estava sendo. previsível, cartesiano, desnecessário. convencionado.