Tiros, morte e funeral do caboclo d`água

Esta é uma das mais mirabolantes estórias que ouvi, contada pelo meu amigo Zé Ferreira, do Rebentão dos Ferros.

Entre um caso de caçada de tatu e de mocó, ele emendou, com fluência, relatando-me o dia em que matou um misterioso ser que, segundo a lenda, habita as águas do rio São Francisco e alguns de seus afluentes.

- Eu já matei um cabôco d’água. É tipo de nosôme. Mas só do mêi pra riba. É o retrato! Agora, a dentaria tem uma carreira de dente por baxo, grande, mas pequeno o de baxo. E esse de cima é maior. Mas do imbigo pra baxo as perna é tipo uma furquia, umas barbatanonas. Os pé é chato assim igual de pato, pra nadá. As mão é tudo cabeluda. Mas é cabelo, mesmo!

- E o caboclo-d’água é muito grande?

- Ô moço, é grande. É grande, moço. Qualé o home... óia, cê qué vê. É do corpo do “seu” Nivaldo. Se fô mais baxo é pôca coisa. Agora grussura é que é um trem. Os músclo é isso, ó! É trem doidio de fêi.

- Onde foi que você viu o caboclo-d’água?

- Foi no rio Pandêro. Passa o São Francisco. Aí, moço, nós foi. Foi eu, Dotô Geraldo, Didi, João Procopo e Zé de Bejamim Rêgo. Aí eles pôs eu pra cozinhá. Óia, tanto que eu cheguei na bêra do rio, quando eu entrei no barco, que chegô a uma distança cumo daqui lá no padrão da Sumig, já eles pegô a disgraçá, a pulá dano canga que eu fiquei doidio. Eu falei: - Vi, Dotô Geraldo, vamo dá um tiro num disgraçado desse? Duas carabina dento do barco, mais parabelo, revólve, ispingarda, anzol, rede, diabo a quatro. Ah!, moço, cum pôco esse trem implicô e Dotô Geraldo num quis dexá e esse trem intempo de derrubá o barco cum nós. Aí eu vuêi dento dessa água, cum bota e tudo e sentei o braço...Aí esse trem pegô e eu fiquei pra cozinhá e fui panhá água pra mode fazê o almoço. Quando eu fui meter a lata, eles tá lá brincano: as cabôca, os cabôco... Cada peito! A mesma coisa de uma muié! Os cabelo cum cada trança desse tamanho, que chegava nadá assim pro riba d’água... Eu tava oiano assim, rapaz, quando eu levantei a vista, só vi a água tremê. Quando eu oiei assim, ele vinha por baxo. Quando ele vem assim ele pega. Pega e rasta pra dento. Aí ele ia dá um pulo ni mim. Quando eu vi ele, eu pulei pra trás. Pulei pra trás e disse: Vige Nossa, ele qué me pegá. Corri. Quando eu corri que olhei pra trás ele tava oiano eu lá, quase no seco, moço. Oiano eu assim...Eu fui lá e vapo na carabina. Manobrei ela, joguei a bala na agúia. Cheguei, tirei o chapéu, tinha umas capa-rosa. Eu quebrei as capa-rosa tudo. E eles lá pulano. E ele sumiu. Quebrei tudo assim. Pus a camisa, vesti a camisa naquele trem e butuei a camisa tudo e pus o chapéu inriba. Na bêra da água tinha um tocão. Eu escondi detrás do pau. Joelhei detrás do pau. Cum pôco eu vi a água tremeu. Tremeu e eles lá dano aqueles canga. Porque a água lá é quase parada. Cê óia e num vê correnteza. Eu vi que mexeu. Eu oiei e cum pôco ele saiu. Que ele oiou assim, saiu cum corpo todo de fora. Meti um tiro no peito esquerdo dele. Eu não perco tiro mesmo! Tão! Ele deu aquele canga. No ele dá aquele canga, eu manobrei a carabina e tão, tão... dei seis tiro. Na hora. Pegô dois: um pegô no peito e o ôto pegô pro baxo assim nele. A carabina véia cortô ele, vazô ele e a água avermelhô de sangue. E esse trem entrô pro rio dano canga e pêxe disgraçô a comê. Piranha. Cada rodela de piranha! Aí eu falei: ele vai morrê. Ele vai morrê... Levô os viado esse disgraçado. Voltei pra trás. Quando eu vou chegano lá, pus a carabina, o pessoal chegou espantado lá. Eles oviu os tiro. Dotô Geraldo já sabia que eu não atirava a toa. Podia sê qualquer coisa e eles vêi todos os três. Aí eu contei o caso e fui lá oiá. Tava lá o sanguêro...

Curioso, quis saber o que aconteceu depois, se ele o pegou dentro do rio.

- Pegá ele? Ai de quem fosse pegá ele... e os cumpanhêro? Mesmo baleado ele matava eu, moço! Aquele bicho num é assim, não... Aí eles falô: É, acertô mesmo... Dotô Geraldo disse: Aí num erra tiro não. Aí fui eu que insinei. E Dotô Geraldo era General do Bataião, né? Ele era treinado pra atirá e me insinô atirá... Eu falei: Eu acertei ele mesmo... Cum pôco chegô um véi lá no rancho. Contano o caso e ele falou: Amanhã eu venho pra nós tirá ele. Ele vai morrê na toca. Ele só morre na toca. Ele num morre aqui, não. Eu sei onde é a toca. Aí eu perguntei: Como é essa toca? Ele falô: É um buraco que ele abre por dento assim. Eles num fica dento d’água a noite, não. Eles abre um valetão aí, moço. Eles mora é no seco. Quando foi no ôto dia o véi chegô seis hora. Aí quando foi sete e meia nós foi pra lá. Ah!, foi chegano lá e o véi oiou lá e falô: Oia ele lá, morto. Aí, cumo é que tira e tal. Eu tenho até um anzol aí. Nós laçô três anzol nele, pra nós puxá na linha, na carretilha. Ele falô: Eu entro pra tirá. Me dá um golo aí, Dotô. Aí ele tomô o golo lá, pôs a camisa na cabeça e saiu nadano, caminhano dento d’água. O rio fundo daquele jeito e o véi caminhano só. Pro riba d’água. Todo de fora. Chegô lá, laçô os anzol nele e nós tocamo a carretilha e fumo arrastano pra fora pra oiá. Dotô Geraldo disse: É pra interrá. O véi falô: Não! Aqui num interra, não. A gente põe é na água. Não pode interrá, não. É proibido. O governo já mandô matá aqui. Já mataro uns quarenta e tantos aí, de veneno. Mas de tiro só apareceu esse minino pra matar esse bicho. Portanto esse minino sabe uma reza. Mas eu num rezei nada! Foi só a pontaria. A pontaria foi boa e foi pertim. Pontaria segura. Mas parece que o trem tinha de morrê. Esse véi falou: Eu nunca sube na vida e óia que eu tô cum 80 ano, criado na bêra do rio, nunca subemo que pudesse matá um bicho desse. Mataro muito aí, mas de veneno. Pôs pexe na toca pra eles comê. Pegava o peixe, envenenava o peixe e eles panhava. Eles matava boi, animal, eles pega qualquer trem. Eles pega, rasta e come lá, na toca. Eu tive medo demais. Eu nunca tinha visto um. Ele foi lá apanhá a camisa pensano que era eu. Eu dexei passá aquela sensão, porque naquela sensão cê num tem pontaria boa. Eu dexei passá e firmei lá. Aí foi tão, tão! Aí ele rivirô. A hora que usôto cabôco viu o tiro batê eles pontaro lá e sumiro, desaparecero. Aquilo é sabido, moço. Aqui no rio Verde, pra baxo de Janaúba tem muito cabôco. Na ocasião de enchente eles desce aí, adiante da fazenda Sabonete, do “seu” Elpído Rocha. Eles andaro aí, mas eles só desce em ocasião de enchente nesse rio. Eles só moram em rio grande, como o Pandêro, o São Francisco. Mas é fêi dimais! Pricisa tê corage. Num é manso, não. Eu sou um sujeito que é difícil achá um trem pra me fazê um choque assim, que eu perca a quitatura. No tempo que eu era vaquêro, aqui mesmo neste curral, eu peguei muito boi aí na mão. Incrusivamente, nós tirô o retrato do cabôco lá no rio. Xará, que é Zé Rego, de Benjamim, tem um. João Procopo ficô com ôto, dois. Didi fico cum ôto, treis. Doto Geraldo côto, quatro. Dona Li fico quêles lá. Deve tá lá no sobrado. Eu quero ir lá pra pegá um retrato desse trem pra mode nós vê.

- O povo acha que é mentira, não é? - indaguei, desconfiado.

- Mas é verdade! Nós tiramo o retrato desse trem lá...

Itamaury Teles
Enviado por Itamaury Teles em 22/09/2008
Código do texto: T1190355
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