Ética na Ciência
Uma atuação profissional ética resulta de uma escolha livre e consciente.
O conjunto de princípios, valores e regras de comportamento moral respondem à necessidade social de regular e orientar as relações humanas de um determinado grupo social numa determinada direção (CHAUÍ, 2004). A realidade moral varia historicamente e, com ela, variam as práticas, princípios, valores e regras em vigor em determinado contexto histórico-cultural (VÁZQUEZ, 2004). Isso porque a vida moral compõe a dinâmica história humana de autocriação, no sentido de definir princípios de conduta, valores de bem e mal, permitido e proibido, recomendável e reprovável (VALLS, 2003) – relacionados com os valores individuais –, e regras de comportamento moral, entendido como consciente, responsável, baseado na liberdade de escolha e guiado pela vontade e pela razão (VÁZQUEZ, 2004).
As pessoas, e em especial os pesquisadores, são capazes tanto de interiorizar e legitimar valores, normas e princípios, como de criar novos, em oposição àqueles vigentes (CHAUÍ, 2004). Assim ocorre com o indivíduo na sociedade, e com o pesquisador na comunidade científica, ambos inseridos num processo dinâmico de influência recíproca entre a cultura e os hábitos individuais, de um lado, e de outro os princípios, valores, regras de comportamento morais da comunidade em que se identifica (CHAUÍ, 2004).
O pesquisador que percebe a falácia do discurso de “desenvolvimento”, por trás do qual a sociedade de mercado determina prioridades e limites à elaboração e emprego do conhecimento científico (PORTO, 2006), também percebe que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos e da Terra resultaram em barbaridades que ultrajaram a consciência da Humanidade (ONU, 1948), obliteraram os valores humanos, degradaram a Natureza, e produziram desigualdades econômicas e sociais entre indivíduos, grupos e segmentos, reveladas na possibilidade de produzir e consumir tecnologias. A concepção de ciência na modernidade, animada pela razão e sempre em busca da ordem (TOURAINE, 1994) é criticada pelos pós-modernos , especialmente porque essa idéia de desenvolvimento associada à tecnologia impede que se veja e avalie com clareza o quanto a sua associação espúria com a ideologia de consumo prejudica o ambiente e a sociedade (PORTO, 2006).
Para romper as amarras que sujeitam os indivíduos a essa dependência, é essencial adotar padrões éticos que pressuponham o bem-estar do ser humano como um fim (PORTO, 2006), pois a ética tem justamente como fundamento a concepção filosófica da visão total da pessoa como ser social, histórico e criador (VAZQUEZ, 2004). Aristóteles valoriza a livre vontade humana, que delibera, escolhe inteligentemente e se esforça em busca de bons hábitos (VALLS, 2003), e a filosofia moderna propõe uma reflexão sobre o dever e a liberdade, sobre a motivação da ação e sobre a forma do agir moral (Kant). Desse modo, a reflexão ética contribui para fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral (VAZQUEZ, 2004), ao buscar concordância com princípios filosóficos universais de uma moral cosmopolita.
Quando tem uma visão de mundo guiada por tais princípios, o pesquisador busca “tratar a humanidade e a cada indivíduo sempre como um fim, nunca como um meio” (Kant). Busca promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla (ONU, 1948), eliminar a agressão e o desrespeito na relação com o outro e com o planeta, ao mesmo tempo em que procura manter a fidelidade a si mesmo, a coerência da vida e a inteireza do caráter (CHAUÍ, 2004), adotando para sua prática científica o princípio da responsabilidade, a partir da sua autoconscientização de que a ciência deve estar inserida no seu contexto social e internacional como instrumento de bem-estar dos povos (GHENTE, 2003).
Entendida desse modo, a ética ilumina as decisões de cada pesquisador no processo educativo individual e social para servir ao ideal de construir práticas corretas na sua comunidade, dar exemplo e testemunho de retidão (CHAUÍ, 2004), e tentar contribuir para uma sociedade sustentável (GHENTE, 2003). Só assim se poderá conservar e transmitir aos descendentes as imensuráveis riquezas que a natureza hoje oferece (ONU, 2000). Entre essas boas práticas, estão refletir sobre os limites que a ética estabelece à elaboração e emprego do conhecimento científico (GHENTE, 2003), e definir para si e para o outro os critérios e valores que formam seu caráter, construindo o hábito da atuação ética pela repetição das ações e decisões como sua expressão como pessoa (CHAUÍ, 2004) e do seu posicionamento ético consciente como pesquisador.
Assim, considerando como Kant que o dever, ou obrigação moral, é uma necessidade para uma liberdade, que obriga moralmente a consciência moral livre, então se entende que a vontade verdadeiramente boa deve agir sempre conforme o dever e por respeito ao dever (VALLS, 2003). O ponto é que, como deve agir de tal modo, também pode não agir desse modo (VALLS, 2003), conforme as condições do ambiente em que atua, e sempre em tensão com elas e limitando-se pelo que as circunstâncias permitem, o indivíduo tem a liberdade, vista como para Kierkegaard (a opção voluntária por fazer o bem, consciente da possibilidade de preferir o mal) (VALLS, 2003), de escolher e tornar possível o conjunto de valores e as regras de comportamentos alternativos (CHAUÍ, 2004) que resultam adequados para seus propósitos, ou seja, cada pesquisador pode escolher adotar ou não em sua prática profissional, uma postura conforme aos costumes considerados corretos (VALLS, 2003), ou seja, uma vida ética.
Uma questão que poderia incentivar o debate sobre o tema seria:
É a racionalidade funcional que hoje governa o fazer científico, “permitindo” separar a atitude técnico-científica da atitude moral (fins justificam meios), e fundamentando/ justificando as alterações morais (mudanças de princípios, valores, regras de comportamento) nas comunidades de pesquisa ocidentais desde o início dos estudos éticos pelos filósofos modernos, ou talvez haja de fato um começo de tendência para o princípio da responsabilidade, e para a racionalidade efetivamente substantiva?
Referências e Obras Consultadas
* PORTO, Dora. Tecnologia & Ideologia: Os dois lados de moeda que produz vulnerabilidade. Revista Brasileira de Bioética, Brasília, v.2, nº1, 2006, p.63-86.
* VALLS, Álvaro. A “ciência” da ética. In: Da ética à bioética. Petrópolis: Vozes, 2004, p.40-60.
* CHRISTIANS, Clofford G. Ethics and Politics in Qualitative Research. In: DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna s. Editors. Handbook of Qualitative Research. 2.ed. London: Sage Publications, Inc, 2000, p.133-155;156-162.
* GHENTE. Declaração do Rio de Janeiro sobre Ética em Ciência e Tecnologia (para a América Latina) http://www.ghente.org/doc_juridicos/dec_comest.htm, 2003.
* ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
* ONU. Declaração do Milênio das Nações Unidas, 2000.
* TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p.9-40; 187-209;
* VALLS, Álvaro L.M.. Ética. São Paulo: Brasiliense, 2003.
* EL FAR, Alessandra; HIKIJI, Rose S.G. Entrevista com Alan Sokal: Entre a paródia e a denúncia; trajetos de dois físicos nos bosques das Humanidades. São Paulo, Revista de Antropologia, FFLCH/USP, v.41, n.1, 1998, p. 215-233.
* CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13.ed. 2.reimpr. São Paulo: Ática, 2004.
* VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 25.ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p.15-34;266-297.
09/09/08