O EXERCÍCIO POÉTICO EM OVO DE COLOMBO – A POÉTICA DA LEITURA

António Filipe Neiva Soares (1)

OVO DE COLOMBO – este o sexto livro de Joaquim Moncks. De periférico da obra sabemos que o poeta o vem, de relativa longa data, oficinando. Dado que Moncks edita desde 1979, tem-se a média de cinco anos para cada obra, o que se pode considerar de excelente produção para quem, nos suores noturnos ou no enfrentamento de fundo de poço, se esmera no exercício de ser poeta, polindo a emoção criada e recriada até a transpiração da forma poética desejada.

Ora, é essa emoção que, atraindo, gera a merecida leitura. Nesta a intuição que pede o inevitável chamamento – exercício poético – que a experiência leva a produzir. É precisamente esse flutuar da sensibilidade, essa marca de fogo chamada emoção, que caracteriza e essencializa a poesia, provocando e agarrando o leitor para a intuição da sua experiência poética de leitura.

Esses lampejos de fogo ou experiências em ato, OVO DE COLOMBO os revela inúmeros. Citam-se alguns retirados dos poemas iniciais: trabalhar com água pela garganta; nascer entre sal e esperma; ser um pai paciencioso para o poema; cantar em lusco-fusco a ausência; com olhar além da órbita, dentes além da boca; o poeta arranha-se; surtos de poesia parecem um cão sarnoso.

São esses elementos, de aparência tão simples, que agarram o leitor e lhe fazem intuir da facilidade em passar ao exercício poético, ou seja, o ovo de colombo da obviedade criativa da poesia. Cremos que leitores seus lhe tenham imitado a arte poética, tão marcada pelo sangue, sal e suor da oficinação.

Também com esse recurso, Moncks ganha amplo espaço numa das, entre outras, vertentes do pós-modernismo que legisla ou manda a individual marca da criatividade. Nisto os elementos necessários para o que pode chamar-se de uma poética de leitura. Poética, naquele sentido bem explícito no termo poesia que, vindo do grego poieo, significa fazer criando.

Leitura esta imposta ou determinada pelo próprio texto. Leitura poética porque o texto, ele mesmo, desde que lido, se constitui ou se autoconstitui objeto autônomo, que acaba sendo introjetado na subjetividade do leitor.

Tudo como se o texto é que merecesse o colo receptivamente quente de quem o lê. Eis o tema de nossas considerações.

Ora, desde que a chamada Arte Abstrata entra em cena, ficamos a saber que um texto não vale por ser uma expressão descritiva: a linguagem não se basta. Vale, sim, enquanto expressão de uma necessidade interior, idéia que, desde há muito, pulava, ocasionalmente, em artistas, literatos e pensadores. Portanto, só na intimidade de uma necessidade interior é que o homem se torna poeta, poeticamente criativo.

À sombra dessa nova concepção abstrata, hoje integrada no patrimônio cultural, é que avanços e avanços passam a correr na poesia. Um deles: fazer do poema um novo objeto de arte. Fizeste o poema? Pois o torna objeto de uma nova experiência criadora. O processo poético, aquecido e reaquecido numa constante dinâmica, pode estender-se para novas unidades surtadas, ruminadas, mesmo esquizofrênicas (criações altamente individuais mas não psicóticas, nem patológicas). Com isso, mais um avanço na arte poética: o poema criado a partir de um outro poema, próprio ou alheio (desconstrutivismo), o poema do poema, o metapoema, que é uma das formas do que se chama genuína poesia. Neste contexto também está presente a dinâmica de construção do novo poema.

Analistas literários como Karlheinz Stierle ou Eduardo do Prado Coelho, já antes de 1980, alertavam para essas inéditas e exóticas experiências ou para a impiedosa desolação das grandes experiências da escrita, o que bem comprova que muita renovação vinha acontecendo no campo literário da criatividade. Nesse contexto, ganha espaço notório a chamada poesia da linguagem ou a nova sentença que, fragmentando e desintegrando violentamente o tecido narrativo, busca um caos total, atingido pelos elementos de desordem, embora aceitando seja retecida a mesma linguagem.

Exemplifica-se com dois poemas, recolhidos da obra em tela: CENA NAS DUNAS e CONCEPÇÃO E PARTO. Em CENA NAS DUNAS, o poeta, numa linguagem sensorialmente florida e quase transparente, pincelada em fortes tons cinestésicos, expressa a idéia do amor que se quer natural, espontâneo e aberto para a luz do sol: a mulher chega, beija e geme; paralelamente o vento, amoroso também e ciumento, rouba-lhe o vestuário íntimo, diretamente relacionado com o ato que está praticando. O que a leitura nos diz é que o poema, de intensa intimidade na execução e na escrita, é, em bom mandato surrealista, a expressão de vivências íntimas. Nada de inútil, nada de violência de palavras. Apenas de considerar que a muita espontaneidade e automatismo da linguagem deixaram algo para dizer: é o sentido latente trazido à luz pela interpretação: eu-poeta-vento terei o mesmo que tu estás tendo; tua peça íntima que te furtei és tu e nela eu estou sendo idêntico a ti.

Porém, o mesmo não ocorre no outro poema – CONCEPÇÃO E PARTO –, onde é visível o sabor do caos, do inesperado, da desagregação ainda que sem violência. Os versos ou os seus segmentos não saem articulados; muita ausência de rolamentos sintáticos coordenativos ou subordinativos a unir as expressões. Para o confirmar, se demarcam as seqüências dos elementos com as duas intervenções intrusivas (explicações e sumários) do autor.

PRIMEIRA SEQUÊNCIA – CONCEPÇÃO DO POEMA:

– poeta no enfrentamento de fundo de poço com água pela garganta, implicando: fantasia ou experiência derivada de informações ou visão de quanto é difícil tal trabalho; fazer um poema é estar na dureza de uma tarefa com a água pela garganta;

– espermatozóide sobrevivendo e nadando para conceber vida e morte, implicando: fantasia que, derivada do conhecimento científico, considera a ação do espermatozóide como um trabalho duro; o poeta na criação do poema tem idêntico trabalho.

Primeira intervenção intrusiva, tipo sumário: nada do poema ser fácil como uma ejaculação precoce, mas fruto do mergulho no confessionário íntimo.

SEGUNDA SEQUÊNCIA – O NASCIMENTO DO POEMA:

– sujinho de sangue, acusando a presença de fantasias de que o nascimento decorre em sangue ou de que o neonato é cortado de sua mãe: a gênese do poema como um ato violento, sangrento; o diminutivo reforça a idéia de recém-nascido;

– flor no rosto, acusando a fantasia de que a vitória ou triunfo corresponde a ter uma flor ou flores no rosto; apesar do sofrimento e dor, o poeta tem a alegria de que criou algo de valor;

– olhos semi-abertos, indiciando da fantasia do nascimento da criança ainda com os olhos pouco abertos: o poema como o bebê recém-nato;

– boca no mundo, apontando para a fantasia poderosa do poder da palavra: o poema nascendo pleno, já com a voz do choro no ato do nascimento;

– sem medo, no bom sabor dos pequenos goles de uma bebida e apto à cirurgia, incorporando a experiência da vida segura;

– palavra desabrochando sujinha, esquálida, nua, insólita, medrosa, incorporando a experiência da dureza do trabalho a ser feito;

– pétala de flor, gume afiado, portas e janelas abertas para mostrar – tudo termos aplicados ao que deve ser a palavra no poema: fantasia do neonato da esperança que nasce providencialmente.

Segunda intervenção de censura ou de denúncia: rejeição do exercício poético e romanticamente chorado ou de orgasmo perdido.

TERCEIRA SEQUÊNCIA – POEMA NASCIDO:

– fantasia da onipotência aplicada ou atribuída messianicamente ao poema que nasceu: será poema com talento, suor e sangue.

Face à análise proposta, a leitura do poema entrega-se intuitivamente em seus três momentos: concepção, nascimento e produto. Poema acabado que não pede outros ou outros sentidos. Simplesmente, esgota-se no que é. CONCEPÇÃO E PARTO, e assim tantos outros poemas da obra em tela, se deles fossem eliminadas as intervenções, cairiam na chamada poesia de A NOVA SENTENÇA. O surrealismo queria a expressão direta, automática e imediata dos inconsciente e onírico, a ausência do controle racional, o afastamento de toda a preocupação moral e estética. Correto e possível esse posicionamento. No entanto, também possível uma expressão dos inconsciente e onírico, criados e laborados por atos contínuos ou cumulativos, o que poderia de chamar-se de um novo surrealismo.

Os poemas, dispersos por OVO DE COLOMBO, apelam constante para esse ponto. Exemplos: em NA GARUPA DA POESIA, pelo exercício metapoético, o texto sai reescrito sobre um sentimento de impotência de avanço para o social, e o que, para além desse sentimento, fica reelaborado é palavra como um arado eterno; já em AMOR, pelo mesmo exercício metapoético, o texto sai reescrito sobre um quadro de amor primaveril e nessa elaboração o poeta começa a escrever suas memórias; em AGOSTO, outra vez a consciência na busca do texto de modo que, do primeiro, emergem figuras, incisivas e frias, que fazem criativamente a prosa quente e macia do actante, ou seja, a forma como o poeta se autoconstitui em seu texto.Lendo estes poemas, o leitor encontra um poema reescrito sobre o primeiro, que se constitui em objeto inspirador ou produtivo, quer do próprio, quer de outros.

Não disse Jorge Luís Borges que um bom contista cria os seus precursores? Pois bem, OVO DE COLOMBO, livro da plena maturidade de Moncks, paradigma do metapoema e da oficinação poética laborada no impulso criador da compulsão repetitiva, sim, esta obra que ora se entrega às mãos do leitor, mais do que precursores, cria as forças inconscientes que a determinam. Paradoxo? Sim, um daqueles paradoxos que Winnicott (1896-1971), psicanalista inglês e homem de arte, encontra no campo da criatividade e o dissolve. No caso, o poeta, à medida que se torna criador, mais avança no sentido das forças inconscientes. Forças estas que são as experiências consolidadas do autor: podem ser chamadas de matrizes, núcleos, fantasias, emoções anteriores e primeiras que, reestruturando-se, constroem o poema, expressão do poeta.

Ora, o poeta, por novo ato de elaborar o poema sobre o poema ou volver-se sobre si mesmo, vai encontrar essas forças primeiras e, como é o caso, as recria em outro poema. Por isso, quanto mais intensa for a ação criativa poética, mais forças inconscientes se tornam conscientes. Ser poeta é reconstruir também o passado. O poema, ao volver-se metapoema – e nisto a pedra-de-toque do bom poema – torna-se a leitura do poeta. Pelo mesmo ato, se torna um quase onipotente objeto quando outrem o toma para sua leitura. Quanto mais destes elementos novos são instaurados, na obra, mais posses ela adquire para agarrar ou prender o leitor.

Versos assim lidos, pela inevitável introjeção implicada, reflorescem e uma das saídas pode e tem de ser o exercício poético, tornando-se foco aceso de uma dinâmica criadora, no caso poética, bem naquele sentido de ter e sentir a mudança interior, impulso ou tensão para a criar e instaurar o exercício poético.

É a consciência de ser poeta. Quantas vezes um poeta para inspirar-se ou criar ou ativar seu fôlego ou estro poético lê um texto de Pessoa, de Neruda ou qualquer outro poeta? OVO DE COLOMBO, como livro de merecida leitura, gera criatividade e nisso a sua poética de leitura.

O POETA DO NOVO DIA (2)

Moncks, o poeta de um refreado simbolismo

da busca, do longe e além.

E também

o poeta que busca

um dia sem poente.

E também um poeta

que morreu ontem mas está vivo

... e na cruz há uma maçã.

E, sobretudo, o poeta

de um profundo sentido adâmico

– um Adão que luta pela reconstrução

da epopéia do Novo Dia.

(1) Professor universitário. Psicanalista. Poeta. Ensaísta. Crítico literário. Nascido em 1934, em Mar, Concelho de Esposende, Braga, Portugal. Doutorado – POEBRAS CAMPINA GRANDE, na Paraíba. Lecionou literatura e psicologia na Universidade Estadual da Paraíba, de 1982 a 2003. Criou e edita a Revista PSI, destinada aos assuntos de psicanálise e psicoliteratura. Vários livros publicados, em prosa e verso. Co-fundador do Instituto Cultural Português – ICP, em 1979, e do Jornal RGS LETRAS, em 1989, hoje denominado RS LETRAS. Atualmente reside em Porto Alegre. Endereço eletrônico: asoares@yahoo.com.br

(2) Jornal RGS LETRAS, Porto Alegre: ano I, 06, edição de 30 de novembro de 1989, p. 01.

- Do livro OVO DE COLOMBO. Porto Alegre: Alcance, 2005, p. 09:14.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/1148449