Autônomo, sim senhor!
A cidade, essa aglomeração de prédios, carros e pessoas, que causa espanto, medo e admiração, é um lócus privilegiado de análise na busca de perceber a diversidade. As relações urbanas marcadas, pela impessoalidade, a solidão, a pressa, transmitem a sensação de volatilidade, sentimento de insegurança, de eterna mudança, de fluidez, sim, cidade é fluidez.
O recorte espacial e cultural escolhido para esta análise foi o mundo dos vendedores ambulantes da cidade de Belém, mas precisamente o que concerne as suas manobras para ludibriar a lei e conseguir a aceitabilidade como trabalhador autônomo.
A relação cheia de atritos entre o poder municipal e os vendedores ambulantes da cidade de Belém remonta de longo tempo, intensificando em alguns períodos e abrandando em outros. Focalizamos dois momentos específicos: o da chamada Belle époque belenense e os dias atuais
Na segunda metade do século XIX e inicio do século XX quando a cidade passava por uma intensa transformação, produzida pela riqueza advinda da economia gomífera, ocorreu uma intensificação nesse atrito.
Antonio Lemos, representante do poder municipal, preocupado com a beleza da cidade, e com todos os aspectos que estivessem em desacordo com os padrões de modernidade, implementou uma série de medidas que tinha por finalidade extirpar o atrasado, o inoportuno, “o feio’. Dentro dessas categorias encontravam-se os ambulantes, que segundo ele produziam barulho, sujavam, atraiam pessoas, tinham modos poucos civilizados, enfim “enfeavam” a urbe.
Como o comércio ambulante não podia ser simplesmente eliminado sem causar maiores problemas, pois envolvia muitas pessoas e já tinha se consolidado como prática comercial, Lemos amparado em leis municipais, estabeleceu medidas que tinham por intuito controlar esta prática; a concessão e a padronização são os carros chefes dessas medidas.
Empresas eram selecionadas para gerenciar determinadas atividades, a elas eram concedidas o aval de cobrança de taxas e em troca deveriam fiscalizar as atividades sobre suas responsabilidades, primando sempre pela higiene e pela padronização dos ambulantes. É evidente que tais práticas não foram recebidas com passividade por todos os afetados, houve revoltas, como prova os documentos catalogados e utilizados por Carlos Rocque em Antônio Lemos e sua época: história política do Pará.
Apesar dessa intensa marginalização, o comercio ambulante conseguiu sobreviver e até mesmo tornou-se mais forte, muniu-se de defesas e continua presente na nossa sociedade. Homens e mulheres espalhados, aglomerados, gritando, ou inventando mil maneiras para chamar a atenção para seus produtos. Em Belém é comum ver os mais variados tipos de mercadoria, um misto de importados com produtos da terra.
O espaço ocupado por esses ambulantes é variado, ocupam calçadas, praças, frentes de colégio, mas, principalmente se concentram nas principais ruas do comércio; em frente às grandes lojas da cidade fazem seu lugar, armam suas barracas, espalham seus produtos e esperam os fregueses que são os inúmeros transeuntes do lugar. A arrumação da barraca é importante, tanto para atrair o freguês, quanto para deixar os produtos considerados ilegais em posição de fácil remoção ou ocultação, caso aja necessidade.
Recentemente os ambulantes que ocupavam as calçadas da Av. Presidente Vargas foram removidos pela prefeitura, segundo alegação que estavam obstruindo as calçadas, impossibilitando a livre circulação de pessoas. Estes reagiram violentamente, houve enfrentamento com a polícia e tentativas de retorno. Os cidadãos não demonstraram reação efetiva sobre o caso, silêncio que foi entendido como aprovação das medidas municipais, sem o apoio do povo em geral os ambulantes perderam força nessa luta. Contudo estes ambulantes expulsos procuraram outros locais para trabalhar e hoje ocupam as estreitas ruas próximas a Presidente Vargas.
Em relação à pirataria, apesar de os enfrentamentos ocorrerem mais vezes, não há um combate intenso. Os CDs e DVD’s piratas ficam amostras em cima de plásticos ou espalhados em barracas, os vendedores anunciam as novidades da semana, o preço é muito baixo, as pessoas que levam os produtos, não sentem culpa tudo parece perfeitamente natural e legal, a proximidade e o costume naturalizou a prática e a remiu do status de crime. No entanto quando a polícia decide invadir aquele local, os ‘os olhos da cidade’ avistam ao longe o perigo e todos aqueles homens e mulheres com seus produtos somem como mágicas, o vazio preenche o espaço até o perigo desaparecer.
Ratificando a idéia exposta desde o início deste texto, cidade é fluidez, milhares de pessoas e mercadorias vão e vêm todos os dias, provocando mudanças no espaço e nas mentalidades. Os ambulantes fazem parte dessa fluidez, formam um grupo dentro dos muitos existentes na cidade, um grupo ativo que interage e se modifica continuamente. Importante ressaltar aqui que nenhum um grupo é homogêneo, há uma diversidade dentro dos ambulantes, captá-la depende trabalho, percepção e tempo. Cada ambulante é uma história, um jeito, uma abordagem; existe aquele que veio do interior, aquele que herdou a banca do pai; outro que começou por acaso, uma que calculou começar; um que gosta do que faz, outro que faz por necessidade; o honesto, o ‘aplicador’; o solteiro, o casado, o homossexual, enfim uma verdadeira pluralidade comum dos grandes centros.