O Ato de Amor em Acolher a Pessoa Falecida Dentro de Si
Amanhã faz um ano que estabeleci uma nova representação emocional de meu pai. Ele partiu para o que me é desconhecido e eu fiquei procurando por sentido durante espaço de tempo que ainda não sei definir e nem preciso. E as metáforas que encontrei a respeito da morte também agitaram-se na impossibilidade de ser algo. Minha escrita turva salvou-me da tentativa da compreensão fechada e inerte.
Descobri que escrever sem propósito é uma forma de representação onírica que desloca significação para o lugar do desejo do quem escreve e de quem lê. Meu pai se faz acolhido dentro de mim através de descobertas que faço cavucando minha memória de menina e inventando novas variantes de histórias para nós. Torno-me livre para amá-lo, ainda mais, porque ele existe nas linhas que escrevo, no olhar que lanço ao mundo e nas imagens que leio com minha visão emocional.
Imagens, palavras, olhar são esforços dentro do registro da emoção. Se me distancio desta, vou me referenciar em aspectos tão somente racionais que me levarão de volta ao caixão e cemitério. E neste cenário ele deixou de existir.
A literatura mostrou-me que acreditar na sucessão tranquila de fatos é uma farsa e mesmo a "mais serena das paisagens se move", como me diz, grande e amado amigo José Castelo, colunista do O Globo que me faz acordar em instantâneos de felicidade todos os sábados à procura do encarte " Prosa e Verso" e que me é um mestre em cousas e representações literárias...
Estes encontros também são da ordem da representação. Leio em sua coluna, hoje, que até o silêncio ensurdece... Lembro-me de meu pai pedindo-me para ouvir cuidadosamente o barulho do silêncio, ao me colocar para dormir, menina medrosa, em nossa casa na serra.
A casa foi vendida, meu pai deixou-me como primeira representação ( apesar de todos os desdobramentos , inquietações e discordâncias que já aconteciam, obrigando-nos a nos refazer enquanto pai e filha a todo instante ), a impermanência é uma certeza e os encontros neste caminhar sem sentido para a mudança foram uma descoberta.
O caminho que percorro cobre-me com a dignidade da qual preciso para mantê-lo vivo dentro de mim. Assim sendo, conheço facetas de um novo pai a cada rememoração singular de uma experiência ou de um causo seu. Continuamos nossa história de pai e filha num novo lócus de existência. Quando eu morrer, talvez nós dois deixemos sementes na vida emocional e de representação de meu filho ou de alguém que desconheço hoje ou sempre.
Aprendi a acolher meu pai dentro de meu mundo de representações que se faz a partir de interações imagéticas, sensoriais, éticas com o mundo do estar-ai, da literatura, da vida vivida, como ela é, dos encontros e desencontros, da música, das artes e até da Ciência.
Meu pai era dentista.
Este título é quase um plágio de um texto de Kierkegaard. Foi-me entregue por uma amiga quando a dor do luto deixava-me em suspensão, nadando sem fôlego através das vagas do nada que arrebentavam-me por meio de seu desaparecimento. Era um mar de vazio.
Meu encontro com este autor trouxe-me liberdade para fracionar-me em pequenos sentidos. Nada, porém, posso acrescentar ao lector sobre sua obra, apenas minha experiência como mulher sem pai neste mundo ou como existente sem certezas.