Silêncio e Modéstia
O presente nos ensina a respeito do passado. Hoje há uma abordagem basicamente anti-clerical de algumas restrições a práticas
religiosas implantadas ao longo da história judaico-cristã. As indagações das razões que levaram a tais restrições e sua aceitação
social são relegadas a intrincadas teorizações de supostas conspirações, manipulações irresistíveis, por parte das autoridades que, só recentemente, se tornaram laicas inteiramente, laicismo que variou de grau e proporção ao longo de séculos da História da Cristandade Ocidental.
De fato, o presente ensina muito sobre o passado. Hoje a gente vê os EUA aplicando leis e práticas impensáveis antes do 11 de setembro, de restrição às liberdades individuais e tolerância, com interrogatórios eivados de tortura, com a justificativa de facilitar investigações e combate ao terrorismo. Derivações de um momento de pressão.
E, à parte discursos anti-americanistas, se a gente se coloca na posição desses cidadãos e cidadãs, sejam de que nacionalidade forem, israelitas, libaneses e outras, que saem de casa e de repente, bum, um prédio lhes cai sobre a cabeça, bem, a gente passa a entender o que seja stress e insegurança, terror mesmo. Isso o que ocorria na Europa medieval, na ocasião em que os então poderosos árabes-muçulmanos - mais cultos, requintados e tecnologicamente bem situados que os europeus em geral -, dominantes na Península Ibérica, também avançavam em ameaça às fronteiras européias do Oriente.
Aquele foi o período mais denso da Inquisição, especialmente do século XIV em diante. A Igreja então assinou concordatas com os poderes seculares para que seus prisioneiros a este fossem entregues, em caso de reincidência, como ocorreu no caso de Joana D'Arc*. A Igreja não executava prisioneiros, em seus princípios não cabia o derramamento de sangue, uma noção que veio sendo incorporada à sociedade ocidental através dos tempos e hoje inspira movimentos seculares pelos direitos humanos, como a Anistia Internacional. Até o séc. XII, a Inquisição, e isto está documentado, havia sido um refrigério para a eventualidade de se estar sujeito à justiça do Estado, esta muito mais impiedosa que aquela.
Então fica bem mais fácil a gente olhar para trás, ora com o
predominante olhar nostálgico de antes era melhor, forçando a maior barrra em contorcionismos ideais para transformar a realidade do tempo histórico, real e arqueológico, no encanto irresistível do tempo mitológico. O espaço atemporal do mito é o vir a ser, é a aspiração e a utopia humanas, onde os sonhos são reais e os desejos cumpridos. Esse é espaço misterioso e vasto, ancestral e atávico, o nicho sagrado interior e anímico, onde depositamos nossas mais preciosas potencialidades para a justiça, o amor, a coragem de enfrentar a morte e a derrota, a fé na ressureição... Mas não se trata de um tempo e espaço computáveis ou mensúraveis. Trata-se de realidades íntimas, que nossa alma teima em perceber sempre na iminência de realização, ainda que em outro plano, no Paraíso.
No outro extremo, olhar para o passado remete à condenação da obscuridade da Idade Média, do momento em que uma determinada
religião, o Cristianismo, dominou o continente europeu e por aí vai. Tal discurso vem sendo desmontado pelos estudos atuais sobre o Período, que como se está demonstrando, foi o momento de gestação da Modernidade. De resto, assiste-se a espetáculos de parcialidades, superficialidades, olhares distraídos sobre algumas questões essenciais. Inclusive para a compreensão de nós mesmos, num momento e ambiente em que auto-conhecimento é muito valorizado e influi na avaliação individual- "fulano é um sábio, ele tem muito auto-conhecimento", como se diz com muita freqÜência em nossos dias; são comentários recorrentes em nosso meio modernoso e individualista.
A miopia dos extremismos derivados da superficialidade distorce a percepção de questões mobilizantes e delicadas e abre brechas a um fundamentalismo caótico, que tem potencial para um desenvolvimento incontrolável. E, até sob o véu de um protesto legítimo e inspirado contra as injustiças do passado, protesto entretanto meramente retórico - o único desdobramento viável à produção de resultados é a compreensão de nossos limites e possibilidades, a afinação da auto-percepção -, ocorre o deslocamento daquele bem intencionado protesto para um ressentimento improdutivo e vão. Nem adianta dizer "cuidado, essa abordagem histórica é teoricamente falha e potencialmente venenosa em nível individual", pois aí você já está estigmatizado como careta, de direita e outros chavões manjados, especialmente quando as especulações críticas são politicamente direcionadas. E aí mora o perigo.
Enfim, o Campbell já adverte que o mito é muito motivante e mobilizante - o pensamento mítico e místico, embalado por uma melodia de cientificismo equivocado (mesmo porque a base da ciência é a negação das hipóteses, as teses só são cientificamente aceitáveis quando sejam passíveis de mais adiante serem negadas, substituídas por outras, em nome da verdade científica) engrossa o caldo de místicismo/mitologia/cientificismo, uma mistura indigesta que protagonizou as ações políticas da ideologia nazifacista no século passado. E outras tantas anomalias ideológicas séculos depois da Inquisição - e não nos iludamos -, como os julgamentos ideológicos sumários de sistemas totalistaristas de coloração azul, verde, amarela ou vermelha, pouco importa.
Então, com toda nossa civilização e avanço teconológico, estamos moralmente vulneráveis e eticamente fragilizados diante da ação política, que costuma entrar rasgando e inadvertidamente inflada pela noção mitológica. O mito é imprescindível ao sonho, que nos impulsiona para diante. Ele abre as portas de nossas forças nascidas do inconsciente e de espaços insondáveis. E portanto merece ser envolvido pela ética do cuidado, reverência e prudência. O pensamento racional tem seu lugar e deve ser respeitado, sob pena de cairmos em fundamentalismos nas abordagens, o mais das vezes pueris, da realidade.
Mito e razão, em equilíbrio, proporcionam saúde ideológica e ação temperada. Temperada com ternura, com carinho, tempero suave como a paz. No entanto, a paz é um cristal facilmente fragmentável quando o barulho das misturas explosivas, das partidarizações, das ideologizações, da imposição de padrões e outros histerismos pós-modernos, irrompe os umbrais de nosso silêncio e modéstia.
* Joana fora condenada por usar roupas masculinas. Os ingleses, humilhados e em revanche, encomendaram que lhe fosse invadida a cela, dela fossem retirados os trajes feminimos e lhe fossem deixados somente trajes masculinos para que a dama valente cobrisse sua nudez. Tendo, portanto, caído em reincidência, foi entregue ao poder secular que a executou na fogueira.