A PSIQUE ATORDOADA

Toda a obra que tem profundidade de entrega ao espiritual nasce em borbotões: as idéias acotovelam-se no processo criativo que lhes dá vida.

Isto vale tanto para as espécies do gênero PROSA como para a POESIA. Mas é no poema que esta matéria ardente é mais facilmente perceptível.

Este despejar inicial do confidencialismo é o caldeamento de sonhos, experiências, ansiedades, desejos insatisfeitos. Nada de fórmulas prontas, predeterminadas. Apenas matéria da vida transfigurada.

Infinitas vezes são crucificação, principalmente nos criadores muito solitários no dia-a-dia, naqueles em que o poema é o sussurro doloroso, cochicho pessoalíssimo, entrecortado de choro. Os estados depressivos favorecem esta fórmula.

Nestes casos, o surgimento do embrião do poema é diretamente proporcional à dor. Quando esta é incisiva, quase sempre o autor é prolífico em sua criação, em sua reza de poeticidade, na busca de algo ou alguém que o atenda nas preces.

O confessionário é a esperança de que o mundo possa ser reconstruído. O eu-poético reconstrói o universo interior, e, com esta reconstrução, minimiza-se a dor de seu autor.

É na vertente feminina e na voz do homossexualismo masculino que ele aparece vivaz, redentor, e tenta se redimir – em plenitude – aos olhos do observador sensível, atento à dor humana.

A perda do amado é exemplo gritante. Também a constatação de que é impossível mudar as coisas dispostas no mundo, porque com elas o Tempo está ali há muito radicado, enraizado, imutável aos olhos dos conservadores.

"Meu coração é um balde despejado", disse Fernando Pessoa, referindo-se a esta profusão d'alma que se derrama. A água flui incontida no momento da "ESPONTANEIDADE". Prefiro esta conceituação (de origem espanhola e muito usual nos países do Prata) ao surrado "INSPIRAÇÃO", de uso mais corrente entre os portugueses e seus domínios.

No início tudo vem muito confuso – de dentro da cuca até a ponta do lápis, aos dedos, no teclado do computador – misturado com elementos plásticos que fazem com que o leitor tenha um quadro pictórico à frente dos olhos.

Quase sempre o que se formata no plano do real (ao vir à luz) é uma peça surrealista, quase onírica, pela quantidade de elementos plásticos que normalmente a formam. Nela está presente uma beleza específica, que é o que torna o verso e o poema diferentes do prosaísmo, da coloquialidade cotidiana.

Este espécime do Belo produz uma sensação de ‘estranhamento’, que é o ato de causar surpresa, espanto, admiração, alumbramento. O uso das figuras de linguagem produz estes efeitos, principalmente a presença de metáforas e de metonímias. É exatamente a metáfora que vai nortear a fuga do lugar comum da vida, que nos vai divorciar da realidade prosaica, do coloquial, conformando a Poética.

O verso derramado, fluente, aos borbotões, é a cópia (escrita) da oralidade que o poeta liberta, por vezes, mesmo que não seja dado à falação, pessoalmente.

Eu, conquanto poeta – nos momentos em que esta voz está viva em mim –, trabalho muito o poema, escoimando alguns elementos que induzam à fuga ou ao desvio dos olhos do leitor sobre os temas abordados na materialidade textual.

Não é tarefa fácil limpar o texto, executar a ‘cirurgia’ sobre a escritura do confessionário, porque este é nervoso, tenso, matéria disforme, como já vimos acima.

A este segundo momento de criação chamo TRANSPIRAÇÃO. Nesta, a participação da emocionalidade é menor, agora prepondera a intelecção. Este proceder permite que ele se fixe no essencial que se quer passar. Como se isto fosse totalmente possível...

Fico a trabalhar a última estrofe, que sempre é a mais intelectualmente organizada, mais permeável à percepção do mundo que se quer mostrar com o poema.

Aliás, entendo que também na Poesia (o poema é a sua materialidade) tem de haver início, meio e fim.

É arte, mas também está presente a intelecção, o que permite que os mortais possam antever o eterno.

Há muito a ser contido no verso, porque é a dimensão do humano, do sofrimento que se está a dilargar no presente do poeta, na sua observação de mundo circunstante, em sua história pessoal. O criador poético, no poema, registra o mundo recriado. O poeta arquiteta a sua obra com o talento que lhe é peculiar.

Sobre as reflexões estendidas neste estudo, o poema TABACARIA, do genial português, é modelar como exemplo. A famigerada peça literária, escrita em 1928, tem a marca da psique atordoada, ávida de andar no outro, de apontar caminhos, antíteses para a reconstrução pessoal e do mundo.

No atual momento da lírica portuguesa, autor que não ruminar esta monumental peça arquitetônica em Poesia, perde a oportunidade de sedimentar-se como pessoa e como pensador.

Perde, no mínimo, o trem da história da construção intelectual e sentimental da Língua Portuguesa.

– Do livro DICAS SOBRE POESIA, 2006.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/110043