Sonhar
Gosto de ler um autor que se destaca por sua lucidez: Augusto Cury. No seu livrinho muito singelo, "Nunca desista de seu sonho", ele chamou o tal mecanismo da "insaciabilidade" de psicoadaptação, que funciona tanto para tornar suportável as situações de tensão como para banalizar desejos realizados - o consumismo se alimenta disso, a gente perde o tesão e o interesse pelas coisas que vai conseguindo na vida, se adapta.
Por outro lado, soldados nazistas acabaram desenvolvendo uma resistência que culminou em conveniente indiferença ao sofrimento
das vítimas do sistema. Também, por esse mesmo mecanismo de defesa, tornamo-nos gradualmente impermeáveis às injustiças cotidianas.
Cury, com maestria, distingue desejo de sonho: o primeiro é individualista e sujeito à psicoadaptação, que leva à permanente insatisfação; o segundo é perseguido, em primeiro plano, com o objetivo de alcançar nossa satisfação individual, estando portanto também sujeito ao mecanismo da psicoadaptação; entretanto, curiosamente, incorre numa transcendência que abarca o mundo todo. Pois no âmbito do sonho, o exercício da individualidade alça rumo ao horizonte da utopia - o anseio por um mundo mais justo onde a felicidade esteja ao alcance de todos. Daí que não é interceptado pela fatal satisfação, mas antes avança a cada geração, pouco a pouco, rumo ao sonho irrealizável mas nunca descartado, mesmo diante da evidência das frustrações residuais - nunca desvanece na mente dos visionários.
Ele cita exemplos de sonhos que sobreviveram aos sonhadores: o
sonho da vida eterna e do Reino de justiça (aquele dos Céus e não uma objetiva solução política, é bom deixar claro) de Cristo , que sobrevive intangível no coração dos cristãos; o sonho de Ghandi, que lhe sobrevive; o sonho de Martin Luther King, ainda palpitante e, embalado pelas conquistas, fez morada na memória coletiva a fomentar novos sonhadores. O sonho de Buda também sobreviveu a Gautama e tem sido inspirador para várias gerações.
Portanto, o sonho não sofre a incidência da psicoadaptação, já que descansa no seio do que Leloup chama de Nous - aquele reduto do imaginário que acolhe a fé na vida eterna, no Reino dos céus, no nascimento virginal do Cristo... Enfim, o nascimento virginal é celebrado no nicho recôndito do Nous, que se reproduz em consonância com a sucessão das gerações ... que teimam em preservar o sonho e a capacidade de sonhar.