VERSOS E TRADUÇÃO: DO TEXTO CRU AO TEXTO NU.

1. POEMA.

E NÃO SOMOS NAMORADOS

De tanto que fomos, somos

Pomo-nos a caminhar tão sozinhos

Mas um do lado do outro ao mesmo passo!

Que se nosso sorriso é sincronizado

É porque tiro a tristeza do teu peito

E tu com habilidade

Faz o mesmo do teu jeito.

Tão feito lindo teu corpo perfeito

Que tua alma o tempera gostosa

Que tão tua voz a flui pra mim

E a tua alma recebo, menção honrosa!

Então os livros que são se não figurantes?

Ao verem que o principal romance é o nosso

E que nós, só de vermo-nos, somos amantes

E teus olhos, que injustiça a assistir o sol

Vê o espetáculo se perde no pôr dele

Pois os teus reluzem melhor

E fazem de valioso o panorama,

E ainda diz que não, Anjo maior?

Tão belos são tuas mãos e teus dedinhos

A sujarem-se de açúcar...

E são bobas tuas manias?

De lavar as mãos todo o dia?

Tranca-se a porta: duas voltas

Abre-se o coração às coisas minhas

Do coração sem razão meu

Com razão seqüestro o coração teu

E nunca mais liberdade a ti se concedeu...

De mãos dadas: como muitos

Amando de verdade: como poucos

Somos como aqueles outros namorados

Que se colocam em paraísos, loucos

Criam mundos paralelos a um e outro

E quem sabe por onde andamos,

Em esta hora que já tarda?

Viram teus olhos encontrarem os meus

E nosso sorriso um ao outro

Nossas mãos enlaçarem-nos

Num abraço pleno e ardente;

Por que o tempo não nos permite felicidade?

Como as pessoas se odeiam com facilidade...

E a nós, não é permitido namorarmos!...

KELLER, Andrié. In Dias Gravados e Reinventados. Sonhos E-books: 2007. (andriesilva@hotmail.com)

2. TRADUÇÃO.

1° estrofe.

De tanto que fomos, somos

Pomo-nos a caminhar tão sozinhos

Mas um do lado do outro ao mesmo passo!

Que se nosso sorriso é sincronizado

É porque tiro a tristeza do teu peito

E tu com habilidade

Faz o mesmo do teu jeito.

É sobre uma relação amorosa de internet entre o Eu poético e a segunda pessoa (“tu”).

DE TANTO QUE FOMOS, SOMOS. O Eu poético discursa: de tanto que fomos, – num passado imemorial, namorados, é dizer, fomos numa espécie de sonho –, somos (entenda-se “nos consideramos”) namorados de fato. Veremos, ao longo de nossa análise, que este “considerar-se namorando de fato”, por parte do Eu, ou é uma insegurança sua, ou é um jogo de argúcia e sutileza léxica.

POMO-NOS A CAMINHAR TÃO SOZINHOS. Ou seja, cada um dos sujeitos em sua cidade, com o seu computador, e “caminhar” é “relacionar-se”. MAS UM DO LADO DO OUTRO AO MESMO PASSO! Apesar de caminharem sozinhos, estão “um do lado outro”; esta expressão contrapõe-se, aí, ao sentido literal (que é apenas recurso para compor o paradoxo: andar sozinhos, mas um do lado do outro), e quer dizer, na verdade, “um confiando no outro”, “cumplicidade”.

QUE SE NOSSO SORRISO É SINCRONIZADO. Isso é em termos de horário, ou seja, quando um ri numa cidade, concomitantemente o outro o faz do outro lado do país. É PORQUE TIRO A TRISTEZA DO TEU PEITO/E TU COM HABILIDADE/FAZ O MESMO DO TEU JEITO. Ou seja, se o sorriso “nosso” – do Eu poético e da sua parceira – é sincronizado, é porque as habilidades de tirar tristezas (livrar de tristeza, fazer feliz) são iguais em intensidade e tempo, mutuamente, entre os sujeitos poéticos referidos.

2° estrofe.

Tão feito lindo teu corpo perfeito

Que tua alma o tempera gostosa

Que tão tua voz a flui pra mim

E a tua alma recebo, menção honrosa!

Então os livros que são se não figurantes?

Ao verem que o principal romance é o nosso

E que nós, só de vermo-nos, somos amantes

TÃO FEITO LINDO TEU CORPO PERFEITO. É o mesmo que dizer “Teu corpo perfeito foi feito tão lindamente”, isto é, a habilidade empregada na confecção do corpo da parceira foi tão bela (perfeita) quanto perfeita é a própria obra – o corpo. Mas a principal função deste verso é preparar uma introdução ao verso depois do subseqüente. Antes, porém, diz, o Eu poético, QUE TUA ALMA O TEMPERA GOSTOSA, ou seja, o corpo da parceira é lindo por si, mas é perfeito por a alma – personalidade – o complementar e suplementar.

O verso ao qual se preparou o primeiro desta estrofe como introdução é QUE TÃO TUA VOZ A FLUI PRA MIM. O pronome átono “a” refere-se a “alma”, do verso anterior [e o verso anterior serviu, antes de tudo, para introduzir a palavra “alma” e uma idéia do que seria ela (personalidade), e é somente por ter esta palavra e idéia que é (o verso) uma ligação entre os dois versos que intercala]. TÃO pode ser entendido como “tanto” ou ser descartado, pois é recurso sonoro. No entanto o verso, por inteiro, diz que pela voz (que seria escrita – falamos de internet, messengers, chats) a segunda pessoa consegue veicular (transportar) sua alma ao entendimento do Eu poético. Quer dizer, na prática, que as letras escritas na tela do computador trazem ao Eu poético uma idéia de como é a personalidade da segunda pessoa. E o próximo verso é uma tautologia, já que o Eu poético confirma a “transação” e se felicita por tal: E A TUA ALMA RECEBO, MENÇÃO HONROSA!

ENTÃO OS LIVROS QUE SÃO SE NÃO (é “senão”, um erro de português) FIGURANTES?/AO VEREM QUE O PRINCIPAL ROMANCE É O NOSSO Ou seja, tendo todo o dito antes em vista, o Eu poético chega à conclusão de que os livros (romântico-amorosos) não chegam ao patamar maravilhoso do seu relacionamento e são, por isso, coadjuvantes em relação a este último. E QUE NÓS, SÓ DE VERMO-NOS, SOMOS AMANTES. O verbo ver é aí empregado como “fazer contato”, isto esclarece.

É preciso esclarecer aos leitores de que nunca houve, entre os sujeitos reais, representados pelos sujeitos poéticos, um encontro real.

4° estrofe.

E teus olhos, que injustiça a assistir o sol

Vê o espetáculo se perde no pôr dele

Pois os teus reluzem melhor

E fazem de valioso o panorama,

E ainda diz que não, Anjo maior?

Tão belos são tuas mãos e teus dedinhos

A sujarem-se de açúcar...

E TEUS OLHOS, QUE INJUSTIÇA A ASSISTIR O (“ao”, outro erro) SOL/VÊ (aqui cabe uma vírgula) O ESPETÁCULO SE PERDE NO PÔR DELE/POIS OS TEUS (olhos) RELUZEM MELHOR. É um elogio aos olhos da segunda pessoa, mas é válido esclarecê-lo.

É como se o Eu poético dissesse “- Há grande injustiça quando os teus olhos assistem ao pôr-do-sol. Porque, como teus olhos reluzem mais que o Sol, o espetáculo no pôr-do-sol (PÔR DELE) fica reduzido de tal modo que se perde, desvanece, some.” Depois de dizê-lo, o autor escreve como se, estando nesta cena (pôr-do-sol ao lado da parceira), o Eu poético deixasse de olhar o sol por o espetáculo maior estar nos olhos da segunda pessoa e, então, passa, o Eu poético, a falar como se com a parceira vis-à-vis, diretamente: E FAZEM DE VALIOSO O PANORAMA. Que panorama seria este? Não o do pôr-do-sol, mas o dos olhos (que o Eu poético passa a fitar). Então em E AINDA DIZ QUE NÃO, ANJO MAIOR? se evidencia a fala direta entre parceira e Eu poético, na qual este se surpreende com a negação que aquela faz de toda esta grandiosidade dela; elogio tácito: humildade – considerava, a época, uma virtude.

TÃO BELOS SÃO TUAS MÃOS E TEUS DEDINHOS/A SUJAREM-SE DE AÇÚCAR... Isto é uma quebra total de suntuosidade, afinal, se antes o Eu punha os olhos da amada como mais reluzentes do que um dos mais brilhantes dos astros conhecidos, agora denota algo simplório – que são bonitos as mãos e os dedinhos da segunda pessoa a sujarem-se de açúcar. Contudo é importante notar a ambigüidade que há neste verso. Afinal, se por um lado ele quer se referir aos dedos que quando ao manusearem doces sujam-se de açúcar (e se aproxima, neste sentido, ao caráter infantil da amada), diz, por outro lado, que os beijos do Eu poético nas mãos da segunda pessoa sujam-na de açúcar, uma vez que esta dizia doces os beijos do Eu poético. (Ainda que os beijos na prática inexistissem; deve-se lembrar de que se fala numa relação de internet.)

É, esta estrofe, uma construção poética de cena. É uma cena imaginada pelo poeta para demonstrar coisas que o Eu poético e as demais personagens sentem. É uma parábola. Portanto, não ocorreu de fato, itera-se.

5° estrofe.

E são bobas tuas manias?

De lavar as mãos todo o dia?

Tranca-se a porta: duas voltas

Abre-se o coração às coisas minhas

Do coração sem razão meu

Com razão seqüestro o coração teu

E nunca mais liberdade a ti se concedeu...

E SÃO BOBAS TUAS MANIAS?/DE LAVAR AS MÃOS TODO O DIA?/TRANCA-SE A PORTA: DUAS VOLTAS. Aí se volta o Eu poético ao reconhecimento da existência singela da segunda pessoa – vítima de manias –, contrariando-se ao idealismo da estrofe anterior. Além disso, o Eu pergunta se são bobas as manias da segunda pessoa, pois esta costuma dizer que o são (referência à humildade novamente). ABRE-SE O CORAÇÃO ÀS COISAS MINHAS. ABRE-SE dá contrabalanço a TRANCA-SE, porém é, antes de tudo, uma transição de assunto, já que se vai iniciar uma abstração. E é simples o que diz no verso o Eu, que o coração da segunda pessoa abre-se às coisas suas (às suas pretensões, sentimentos, confissões), (e o seguinte, no verso anterior:) apesar da mania de trancar portas com duas voltas na chave.

Segue uma construção poética de cena abstrata. DO CORAÇÃO SEM RAZÃO MEU/COM RAZÃO SEQÜESTRO O CORAÇÃO TEU/E NUNCA MAIS LIBERDADE A TI SE CONCEDEU... Estes versos fazem um jogo semântico (de sentido) com a palavra RAZÃO. Se no primeiro verso a palavra está na acepção de princípio racional, de sanidade mental, de cartesianismo {enfim, ratio in “fides et ratio” (livro, J.Paulo II)}, o segundo verso traz a razão com sentido de ausência de culpa, de merecimento, de direito (jus).

Tendo-o em vista, a cena é simples, apesar de abstrata e metafórica: estando dentro do seu próprio coração – que é insano –, o Eu poético com todo o direito seqüestra o coração da segunda pessoa e nunca mais concede a ela e seu coração a liberdade. Entenda-se “coração” aí como “apreço” – ou qualquer objeto abstrato cuja aquisição signifique, para o que adquiriu, o afeto daquela pessoa do qual foi alienado. E “liberdade” como a qual sua privação de uma dada pessoa por outra signifique o amor (deliberado) daquela por esta última.

6º estrofe.

De mãos dadas: como muitos

Amando de verdade: como poucos

Somos como aqueles outros namorados

Que se colocam em paraísos, loucos

Criam mundos paralelos a um e outro

E quem sabe por onde andamos,

Em esta hora que já tarda?

É o começo da suma do poema. É o início de um desabafo argumentativo que justificará o título.

DE MÃOS DADAS: COMO MUITOS/AMANDO DE VERDADE: COMO POUCOS. A segunda pessoa e o Eu poético, de acordo com este, são ligados, sincronizados, estão em consonância, amam-se de verdade. Daí, estão formalmente ligados por conivência mútua, isto é, os dois acordaram serem namorados, o que equivaleria ao gesto de “andar de mãos dadas”, praticado por muitos dos namorados comuns. Porém, como este gesto – esta ligação formal – não supõe amor de verdade, nem todos os namorados se amam, e afirma, o Eu poético, serem poucos estes e inclui seu relacionamento entre eles.

SOMOS COMO AQUELES OUTROS NAMORADOS/QUE SE COLOCAM (se imaginam) EM PARAÍSOS, LOUCOS (os namorados, e não os paraísos – observe-se a vírgula)/CRIAM MUNDOS PARALELOS A UM E OUTRO (mundos). O Eu poético tenta mostrar quão maravilhosa é sua relação e nisso denota as criações, comuns em relações de internet, nas quais é indispensável a imaginação. Ora, estas criações se evidenciam até no corpo deste poema.

E QUEM SABE POR ONDE ANDAMOS,/EM ESTA HORA QUE JÁ TARDA? Refere-se à cena comum que ocorre numa relação pela internet, quando se está imaginando mutuamente e se perde a noção do tempo... O Eu poético, como se observasse a lembrar esta cena, se pergunta. Fá-lo querendo referir-se também ao desconhecimento total, por parte dos seus comuns (com os quais convive), de que ele e ela fazem estas viagens. Aqui, deve-se assinalar, que este fato de haver elementos obscuros caracteriza o poema que aqui se analisa; caracteriza os sujeitos poéticos; caracteriza o relacionamento entre estes e, segundo o autor em texto muito posterior (“O que somos senão o que escondemos?”), caracteriza o “ser” e as relações das pessoas em geral.

7º estrofe

Viram teus olhos encontrarem os meus

E nosso sorriso um ao outro

Nossas mãos enlaçarem-nos

Num abraço pleno e ardente;

Por que o tempo não nos permite felicidade?

Como as pessoas se odeiam com facilidade...

E a nós, não é permitido namorarmos!...

VIRAM. A sétima estrofe é um questionamento dirigido a entidades – quaisquer que elas sejam – que regem o universo, os movimentos, o destino e por este motivo o verbo que a inicia está em terceira pessoa do plural. É, a estrofe, uma argumentação contra o caráter benévolo de que disporiam estas entidades, na qual a tese é de que não podem ser tão boas as entidades, uma vez que plantam sentimentos ruins gratuitamente e não propiciam a felicidade a quem a merece. Os merecedores seriam o Eu poético e a segunda pessoa e o principal argumento seria o próprio amor que os dois têm no seu relacionamento (amor superior ao de qualquer livro e real como de poucos namorados, como já se leu nos versos).

Esse argumento central é explanado durante todo o texto, porém, é resumido nos versos que seguem – nos quais as metáforas são patentes e significam, apesar do grande número, somente a união amorosa: VIRAM TEUS OLHOS ENCONTRAREM OS MEUS/E NOSSO SORRISO UM AO OUTRO/NOSSAS MÃOS ENLAÇAREM-NOS/NUM ABRAÇO PLENO E ARDENTE;

Após isto, o primeiro questionamento claro: POR QUE O TEMPO NÃO NOS PERMITE FELICIDADE?, em que o tempo seria “as entidades em sua tarefa de confeccionar o destino”. Este último que, segundo o Eu poético, seria injusto objeto de entidades igualmente injustas, visto que: primeiro, após tanto tempo de relacionamento não cerziu nenhum encontro entre os sujeitos poético do texto; em segundo lugar, o mesmo não oferece nenhuma esperança de encontro – troca-a por uma expectativa, por uma “saudade do que nunca se teve” (DESEJO), segundo o poeta em outras publicações), por uma desesperança –, posto que aquelas entidades não forjam possibilidades neste “destino” (lembrando-se que o Eu aceita destino como o que vêm e o que já veio, neste texto).

Posteriormente um exemplo de elemento ruim fomentado pelas entidades e pretensamente real e presente: o fato de as pessoas se odiarem com facilidade. COMO AS PESSOAS SE ODEIAM COM FACILIDADE... Urge, posposto, o verso que exclama, embora soe como questionamento desesperado, de modo claro e intenta remeter o leitor ao título e eixo do texto: E (“mas”) A NÓS, NÃO É PERMITIDO NAMORARMOS (“namorarmo-nos” de fato)!...

É preciso explicar o título?

Disse-se, no início desta análise, da possível insegurança quanto ao “considerar-se namorando de fato”. Existiria, pois se a percebe na contradição entre a afirmação do verso inicial, – donde se deduz que o Eu entende que “namora de fato” –, e o último verso, que parecesse expressar a crença, por parte do Eu, relativa à situação de ser irreal o namoro de fato.

Entretanto, há uma possibilidade diversa da insegurança, a qual aqui se julga mais plausível. Ora, há uma grande diferença – apesar de quase imperceptível a vista grossa - entre DE TANTO QUE FOMOS, SOMOS – primeiro verso – e E A NÓS, NÃO É PERMITIDO NAMORARMOS!... – último. É que no primeiro a aceitação, em somos, de que namoram (o Eu e a amada) de fato, é tida pelo Eu poético – ele a afirma. Enquanto que, no último verso, tendo em vista toda a última estrofe, a referência é “as entidades” – o discurso é a elas dirigido; não significa que as Entidades não aceitem que o namoro existente entre os sujeitos poéticos é um “namoro de fato”, mas que as mesmas não provêm a situação necessária para que todos (as pessoas em geral) reconheçam o namoro dos sujeitos como sendo “de fato”.

Entenda-se o que este último verso quis dizer:

Qual o tipo de namoro que as pessoas em geral costumam considerar como o namoro de fato? O tradicional, é evidente; e não o virtual. Ora, se as Entidades (que controlam a vida) permitirem o encontro dos sujeitos poéticos, as pessoas, ao verem, considerarão o namoro como sendo de fato. O que há de sentido nisto tudo? Não que o Eu poético almeje o reconhecimento geral, por parte das pessoas, do seu namoro, e sim que diz desejá-lo somente porque nele está pressuposto o encontro – o que ele realmente quer. Não é, portanto, insegurança tampouco contradição, é sim um jogo sutil de significado.

Andrié Roberto da Silva analisando poema de Andrié Keller, quarta-feira 16 de julho de 2008.