A inveja
Quando eu era menina, vestida de organdi e portando luvas delicadas do mesmo tecido, gerada por um casal belo e próspero, passeava pelas ruas de Teresina desafiando aquele calor equatorial.
Um belo dia, passei frente a um terreno onde havia um trio de palhoças, talvez - esses casebres de palha, chão de terra batida e algum adobe. Provavelmente eram famílias que o proprietário daquele terreno, em lugar nobre da cidade, permitira a moradia, inclusive pela conveniência de ter quem vigiasse sua propriedade. O portão estava com uma de suas folhas semi-aberta, que permitia entrever uma mãe, sentada num tamborete com duas meninas em seu colo. Ela mexia nos cabelos das meninas, provavelmente catava-lhes piolhos. Aquela cena me provocou uma inveja atroz, intensa e gravemente inexplicável. Eu era a que tinha todas as qualificações para ser invejada por aquelas pessoas e, no entanto, estava eu a sentir a dissecação impiedosa daquela gosma verde da inveja a invadir as fibras de todo o meu corpo, crispando minhas faces e abatendo meu ânimo. Aquelas meninas tinham o contato da mãe, coisa que eu raramente tinha. Minha mãe vivia atarefada com sua vida social agitada, e o mais do tempo, eu passava sob os cuidados das amas.
Desde então perdi a inocência. Toda a minha vida foi atormentada por esse sentimento absorvente e possessivo, que nos exige o desejo irreal de que somente nós possamos ser felizes, belos, ricos, elegantes, sedutores, objeto do amor dos outros, inpiradores de paixões... Todas as circunstãncias mais corriqueiras da vida tornam-se uma competição. E, claro, todos nos invejam, uma vez que admitir ser invejoso é uma atitude extremamente humilhante. Eu sou invejada e ponto, jamais invejo - essa a sórdida cantinela de quem é acometido de inveja, uma maneira de evitar a visão horripilante da Algoz indefectível.
A degenerescência do sofrimento do invejoso o atira à mórbida satisfação de "ser invejado". Para tanto há uma laboriosa e constante armação de cenários em que seja ele o centro, além de cuidados com a apresentação e uma infinita racionalização para que justifique todas suas fraquezas e vacilos, transformando-os em virtudes ou infortúnios originados na conspiração daqueles invejosos que o querem destruir. O invejoso não se permite as delícias das demonstrações de fragilidade, de ternura, de afeto. Ele pode ensopar seu travesseiro de mágoas, quando ninguém o veja, mas não partilha com ninguém a dor do abandono, do desprezo, a decepção amorosa, a traição que o atingiu. Ele é infalível, impermeável, invicto. O roteiro que segue em sua postura teatral de todo dia e noite tem como objetivo perverso fazer aos outros inveja, por meio de constantes demonstrações de dureza e inviolabilidade, de elegância, de excelência na sedução, de ser amado sem amar. Ou seja, "eu não sou susceptível a essas misérias a que os feios, pobres e incultos estão sujeitos". O valor dos outros é sistematicamente ignorado pelo invejoso que, inclusive, não tem contato com seus próprios valores, uma vez que está inteiramente alienado pela necessidade de viver atirando ao alvo do mundo exterior, da impressão e imagem que passa aos outros; assim vive constantemente fora de si mesmo.
Todas as vezes que se vai a um advinho, a inveja sai à cena em papel principal. Há sempre uma revelação das cartas, dos búzios, dos atros, de que o consulente é vítima da inveja de algum miserável. Quando eu me permitia dar vazão a minha ansiedade ao procurar vaticínios por aí, nunca esses videntes viram realmente o que se passava comigo: o que me asfixiava e me dificultava a vida, fechando-me o caminho à felicidade, não era a inveja dos outros, mas minha própria inveja. Eu não suportava ver alguém mais feliz que eu, e isso é impossível: ninguém passa pela vida sem encontrar alguém mais bonito, mais feliz em determinado momento, mais talentoso em determinada tarefa.
E aí vem o outro lado da moeda, o invejoso procura avidamente provocar inveja nos demais para se sentir menos miserável, para confirmar que os outros também padecem eventualmente desse mesmo infortúnio que aliena o coração humano da comunhão e da entrega à alteridade radical do amor. Como também para encobrir a realidade de que foge enfurecido - de que é ele quem mais sofre sob o senhorio absoluto do demônio fétido e asqueroso: a Inveja.
Mas com a graça de Deus, comecei a perceber que sou única, ainda que não tenha o corpo ou as feições mais bonitas do mundo, é este corpo e são estas feições que me possibilitam passear por entre as belezas do mundo, aspirar o perfume de variadas flores, ver as cores e, sobretudo, amar, mais que ser amada, os meus amores. E que todos têm o mesmo direito à beleza, ao talento, ao amor, cada um com seus valores e seu quinhão de bem-aventurança. Saiu a Inveja, voltei a namorar a Esperança.