O ciúme pela metade
A ponte que liga a moral à psicologia - cujos objetos confluem na conduta humana, já que ambas disciplinas estão interessadas na intrincada complexidade das escolhas e ações dos indivíduos - vem sofrendo uma radical inversão.
Na comédia francesa "Chouchou", o imigrante argelino Chouchou é acolhido por um padre de uma paróquia nos arredores de Paris. Chouchou é homossexual e o Padre lhe consegue um emprego com a pscanalista local assim como lhe explica que, antes do advento da psicanálise e psicologia, o confessor é que supria essa demanda social por ajuda na compreensão dos dramas pelos quais passamos todos ao longo de nossa vida.
E assim é, a confissão religiosa e orientada pelos postulados morais é a legítima antecessora da moderna análise fundamentada em premissas psicológicas ou psíquicas, que confronta sua "geradora" com a desqualificação absoluta dos postulados morais e, como todo gerado que vira as costas ao gerador, resulta empobrecido.
Senão vejamos: nos dias atuais, o ciúme é percebido pelo senso comum, embebido na visão psicológica dos fenômenos do comportamento, como uma "doença". O ciumento é invariavelmente tido como doente que precisa se submeter a um tratamento para obter a cura de seu mal. É factível que muitos casos sejam realmente de ciúmes psicóticos e sem motivação razoável. Mas, vem se tornando invariável a desatenção à natureza da relação vivida pelo ciumento com o objeto de seu ciúme.
Como a licenciosidade e a conduta "canalha" são tendenciosamente percebidas como saudável capacidade de agir em consonância com os instintos sem os percalços da "frustração", o objeto do ciúme, ainda que viva a provocar sadicamente o ciúme do parceiro e dê claros sinais de uma perversa frieza em relação aos sentimentos daquele com quem partilha a vida, ainda assim não se dá muita atenção a sua performance na cena da relação. Ainda que, como vem acontecendo massivamente, aquele que provoca ciúmes compulsivamente e, muitas vezes, sem mesmo ter uma razoável consciência de sua atitute, demonstre uma suspeitosa incapacidade de doação a seu parceiro, mantendo-se encerrado numa relação de natureza narcisista, mais para alimentar seu próprio ego e suprir seu vazio interior, sem maiores considerações com a partilha e a comunhão de afetos, ainda assim o foco principal é o "ciumento" que é preciso tratar e libertar - mesmo que não se atente à fonte de seu ciúme e que esta continue fluindo na conduta mal sã de seu companheiro de tendências sádicas.
O conceito moderno de ciúme perdeu perspectiva e ficou capenga. Não tem mais a grandeza que só a consideração do acervo da moralidade empiricamente derivada de uma sabedoria milenar pode lhe conferir. E, de quebra, oprime e estigmatiza o ciumento, que é apenas um pólo do Universo em que esse arqueiro de garras afiadas , o Ciúme, arremessa flechas negras ao ritmo de frenética dança assombrada, espectral.