Era uma vez... a tentativa de ensaio que nunca se atreveu a ser um ensaio

“Era uma vez um menino que não falava e seus passos eram desengonçados e tristes. Não falava porque não sabia falar, não, mas porque não sabia o que dizer e, seu temperamento aparentemente sem temperamento algum, não encontrava nunca as palavras na ordem correta”.

“Era uma vez alguns passos desengonçados e tristes que moravam vizinhos à minha casa, e com seu temperamento aparentemente sem temperamento jamais brincou com as outras crianças da rua, não que os meninos fossem tristes, tampouco não sabiam falar as palavras na ordem correta, o que faria com que tivessem o mesmo comportamento estranho do menino de passos desengonçados e tristes, mas gostavam de falar, falar e falar, talvez não com as palavras corretas, mas com aquelas que se encontravam gravadas nas suas memórias, o que caracterizava diálogos longos e repetitivos, pois nas suas memórias não existiam tantas palavras gravadas”.

“Era uma vez algumas palavras gravadas que nunca fizeram parte de qualquer composição musical ou texto literário, mas se encaixavam bem nas reportagens policiais dos piores e mais sangrentos jornais das megalópoles, que nunca noticiaram qualquer artigo que mencionasse o menino de passos desengonçados e tristes, não que o menino de passos desengonçados e tristes não tivesse qualquer importância na sociedade, o que não vinha ao caso se não se tratasse de um assassínio em série ou outro maníaco qualquer, o que com certeza faria com que todos os meninos da rua, que não tinham problemas nas suas cordas vocais, tremessem e não mais pisassem na calçada das ruas próximas ou distantes de suas casas, porém o temperamento aparentemente sem temperamento do menino de passos desengonçados e tristes ignorava qualquer notícia da sociedade ou de homicídios em série, o que jamais dificultou diálogos longos entre Picão e Tachinha, que passavam horas e horas proseando sobre a política local e o golpe militar que acabara de depor o Presidente João Goulart”.

“Era uma vez um presidente deposto que tinha seus interesses políticos bem diferentes dos interesses conservadores de Picão e Tachinha, que por serem educados dentro do conservadorismo provincial do interior paulista sempre tiveram uma formação conservadora e contrária a qualquer diálogo mais prolongado sobre questões comunistas. Os vermelhos também não brincavam de esconde-esconde ou pega-pega com os meninos que moravam próximos ao menino de passos desengonçados e tristes, que também não brincava com esses meninos que aparentemente tinham em suas memórias palavras não tão usadas no cotidiano do golpe militar, o que também não os caracterizavam como comunistas ou qualquer outro sistema político, pois se preocupavam apenas em não brincar com o menino de passos desengonçados e tristes, não porque não queriam, ou talvez até não o quisessem, mas porque o menino de passos desengonçados e tristes também tinha a mania de nunca andar ou falar, o que o impossibilitaria a brincar de esconde-esconde ou pega-pega, e isso não afetaria as cordas vocais dos assassínios em série ou qualquer outro homicida em potencial, já que nos noticiários dos jornais sangrentos das megalópoles não se falava em golpes militares de nenhum país da América do Sul ou Cuba, que mereceriam uma melhor análise por parte dos sociólogos e cientistas políticos”.

“Era uma vez”...