Viver da vida real

Fernando Pessoa declara ser o poeta um fingidor. E o artista dos palcos e telas representa personagens. Personagens tomados à vida real pelo dramaturgo. O fato é que toda a arte é um imitar da vida real; e vive da vida real.

Cabe investigar até que ponto a arte é uma honesta imitação da realidade e quando passa de imitadora a usurpadora. Pois exatamente neste ponto se dá a fermentação do drama do artista, do poeta, do dramaturgo, do escritor, do pintor e todos os demais imitadores da vida. Neste ponto específico arma-se o cenário do pecado original da arte, em que o artista pretende enganar a si mesmo e ao mundo a respeito de sua condição de criatura para assumir a pose de Criador e a real condição de impostor.

O drama do impostor envolve a angústia da impostura. Esta implica em constante medo da queda da redoma de endeusamento, onde é colocado pelos admiradores e público, a partir da descoberta da farsa. Pois o impostor pulsa ao ritmo da mendacidade. Ainda que todos não alcancem ver, ele definitivamente sabe e conhece as entranhas da mentira que alimenta e de que se alimenta. E por outro lado, o assédio incrementa o constante angustiar-se, já que impõe um indefectível enfrentamento com o barulho da bisbilhotice e incessante vigilância pública.

Daí que, vez por outra, a mídia nos surpreende com a notícia de que a pop star tal é gravemente viciada em drogas. E que o cantor tal, idolatrado por uma legião mundial de fãs, cometeu suicídio. O bom senso atesta que não se pode fingir a vida inteira, o tempo todo, inclusive para si mesmo. É mesmo um osso do ofício vorazmente insustentável.

E a impostura incide fundo no âmago do mais sagrado do ser: ao artista é preciso, além de fingir que a interpretação é um dom inaccessível ao comum dos mortais idólatras (e como diz meu filósofo de direita preferido, Olavo de Carvalho, isso é uma falácia, já que fazer caras e bocas e imitar sensações e emoções é um carisma natural em crianças e nas pessoas em geral; e requer apenas um treino ordinário para ser afinado); que o canto e a música popular (já que os eruditos sim, exigem mais esforço e dedicação) é um dom raro; que a poesia é resultado da espontânea inspiração e não dos esforços de educadores e genitores dedicados (e nesse caso o poeta é devedor de todo um povo cuja labuta é condição para que uma elite possa se dedicar às letras e ciências) -, é preciso ainda, por motivos de marketing pessoal, agir como se lhe fosse permitido cultivar uma vida de instabilidade afetiva, de troca de parceiros, de atenção dividida aos filhos, como se nada lhe viesse a ser cobrado, como se a felicidade lhe fosse garantida, como se os conflitos não lhe atingissem. Uma perversão atual que grassa no mundo dos astros. E tem feito muitas vítimas, como é notório.

E o público, os idólatras, enganam-se e são enganados sobre o dever do culto... A eles é que se deve gratidão, mais que culto. A eles deve-se a verdade nuclear: mais que acenos, beijinhos e agrados periféricos. A eles é preciso fazer a confissão cabal, a exposição da nudez da humanidade e vulnerabilidade do suposto ídolo - infeliz, em conflito, inseguro, insano...

O artista agoniza em praça pública "com um sorriso no rosto e uma lágrima no olhar". É a apologia da esquizofrenia. Um turbilhão em que ninguém se encontra, nem o ídolo consigo mesmo ou com os idólatras; nem os idólatras com a delícia de ser único, com talentos próprios e inconfundíveis: um bouquet de aroma incomparável e irrepetível, colhido da infinita criatividade do Artista Supremo. E por isso mesmo, fonte de toda a arte, que vive do cotidiano suado dos anônimos.