Astrologia primitiva
Astrologia primitiva me faz lembrar lindas histórias ou estórias e a
confluência de ambas. Hoje eu estava lendo e eu me perguntava como pode que não se perceba que o amor aos livros é uma paixão inesgotável? Os livros são o meu grande tesouro, bem, isto é pessoal mesmo, mas como eu gostaria que mais pessoas percebessem a delícia que é ... tipo um querer compartilhar.
Eu gosto muito do Campbell, ele me conduz a êxtases e há, no volume primeiro da coleção Máscaras de Deus, que trata da Mitologia Primitiva, uma narrativa de um chefe de cameleiros núbio sobre um reino antigo e próspero, que veio a entrar em decadência (a exemplo de tantos outros e virtualmente todos, como a Arqueologia vem desvendando, especialmente a Eco-arqueologia de que Diamond* trata magistralmente). O cameleiro sudanês contava que naquele reino havia o costume do sacrifício real - um sacrifício hierático cujo momento era determinado por uma casta sacerdotal através da observação do percurso dos planetas. Aí está a origem do mito do contador de estórias, de Sherazade das Mil e uma noites, que salvou a vida de toda a sua geração de donzelas, porque tinha a habilidade de contar estórias e manter o rei sempre envolvido e querendo saber o desfecho. Pois foi justamente um escravo, que contava
estórias de forma absolutamente sedutora e inebriante quem quebrou a tradição do sacrifício real, que era imposto ao rei e uma virgem, com o objetivo de manter o cosmos em harmonia, segundo os sacerdotes. Aquele escravo, talentoso e hábil, envolveu os sacerdotes de tal maneira, que perderam o fio da meada da orbe e já não foram mais capazes de dominar o processo.
Este o mito fundante do conflito de cosmovisões envolvendo a astrologia primitiva - o verbo interferindo com o percurso cíclico dos astros e desafiando os julgamentos astrológicos. Isso é fascinante e a mim me parece muito sedutor, bem mais que a inevitável "fé" na astrologia ou mesmo a incondicional proteção de sua supremacia. Como diz Alain de Libera, em seu Pensar na Idade Média, a Igreja Romana anda tão obcecada pela moral sexual, que esquece discussões filosóficas importantes como a questão da Astrologia.
E ainda algo que hoje me inebriava em Campbell - eu o releio vez por outra, sempre com mais proveito e interesse: a lua foi masculina nos primódios. Durante o neolítico sumeriano era percebida como o touro sagrado que fecundava a vaca sagrada: a vaca - a terra, a lua - o touro, o sol - o filho (como Osíris, Dionísio, e outros, o filho ressurecto, aurora após aurora, em desafio à morte).
A leitura e releitura a que os signos astrais estiveram expostos ao longo dos milênios é um caleidoscópio estonteante e fascinante e um
desafio para a busca, na Astrologia, de certezas ou estabilidade.
Afinal, tudo que é sólido desmancha no ar. O que às vezes me deixa perplexa é o fato de que tudo que é amor desmancha nos céus astrológicos. Buscar nos céus a voz interior é, muitas vezes, carência de silenciar e escutar nossos gemidos e o que nos incomoda dentro de nós mesmos. Tal astro-utilitarismo, tipo tábua de salvação, é o que me parece precisa ser avaliado com atenção.
Afinal, tudo que desmancha no ar nem sempre brilha nos céus.
*Autor de "Colapso", em que aborda os declínios das civilizações devido a gestões equivocadas dos recursos naturais: uma viagem no tempo e no espaço pelas paisagens e modos culturais de relação com o meio ambiente - uma obra notável.