Análise de Noite na Taverna de Álvares de Azevedo.
ANÁLISE DE NOITE NA TAVERNA
ginaldo_silva@hotmail.com
“Quem sou eu? Fui poeta aos vinte anos”,
Um libertino aos trinta - sou um vagabundo
Sem pátria e sem crença aos quarenta “.
Álvares de Azevedo transfere, dessa maneira, para seus personagens o desejo de uma vida aventureira e gótica, própria do Romantismo do século XIX. A pouca idade e a imaginação fértil impedem-no, portanto, de definir-se. Considera-se apenas um poeta.
Os “contos fantásticos”, denominados assim por Álvares, são povoados por fantasmas e aventureiros, mulheres e demônios, amor e morte. Soma-se a isso, situações de incesto, necrofilia, antropofagia, violência e a orgia. As narrativas se ligam por certa comunidade de atmosfera, tornando os aspectos de uma linha de assombramento e catástrofe.
Estruturalmente, a Noite na taverna possui uma temática satânica que visa o desenvolvimento do lado escuro do homem, que fascinou o Romantismo e tem a noite como ambiente, ilustrando uma certa visão do mundo e do destino como fatalidade, formando uma grande modulação ficcional que vai do drama à novela negra. O passado predomina, mas como retrospecto aferido ao momento da narração.
Noite na taverna é composto de sete contos. No de introdução _ Uma noite do século - são apresentados os principais personagens: Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann. Nos cinco contos seguintes, cujos títulos são os nomes dos protagonistas da obra, ambientado em uma taverna, em meio à embriaguez provocada pelo vinho e à fumaça de cachimbos, cada um deles narra uma história maldita que beira o surrealismo. Azevedo deixa claro nestes contos a sua influência por autores como Dante, Camões, Goethe, Rousseau e acima de tudo sob a influência de expoentes do Romantismo europeu - Byron, Hoffmann e Shelley-, incorporando o espírito chamado de “mal do século”, a angústia existencial do século XIX, tédio e melancolia que não permitem outra solução para a dor do viver a não ser o retorno à infância ou a morte.
No segundo conto denominado de Solfieri, Álvares inicia a narrativa mostrando ao leitor a dualidade do homem romântico: a crença e submissão ao cristianismo e as tentações da carne, mesclando o sacrilégio à convulsão do amor.
“Na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia
No leito da vendida se pendura o crucifixo lívido”...
Solfierei deixa-se levar pela paixão devassa e através da orgia, do sexo e da embriaguez, tenta esquecer o amor que nunca possuiu nos braços de outras tantas mulheres sem ser saciado. A irracionalidade age sobre a personagem em forma de delírio.
“No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher,
gemiam aqueles soluços, e todo aquele devaneio se perdia num
canto suavíssimo...”
A racionalidade torna-se presente quando a personagem volta a si e percebe que o seu delírio é a sua vontade própria, o seu desejo de cumprir e realizar seus atormentados sonhos. Desejo e delírio se misturam num mesmo instante induzindo-o a prática da necrofilia:
“Era uma defunta!
Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios.
Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário,
despi-lhe o véu e a capela como o noivo
as despe à noiva... O gozo foi fervoroso..”
Voltando à Taverna Solfieri finaliza o seu relato mostrando-se angustiado e preso ao seu passado. A embriaguez e a dor trazem-no de volta à realidade que é crua e ao mesmo tempo saudosista confundindo assim o ouvinte no que se refere a sua veracidade.
“ Solfieri, não é um conto isso tudo?”
No conto Bertam o narrador inicia a sua narrativa atribuindo os seus erros à mulher. Culpar a mulher é ao mesmo tempo a aceitação do seu próprio sofrimento. A dor também está presente como pano de fundo para relatos, sonhos e desilusões vividas pela personagem.
“ Sabeis, uma mulher levou-me à perdição.
Foi ela, vós o sabeis, quem fez-me num dia
Ter três duelos com meus três melhores amigos,
abrir três túmulos àqueles que mais me amavam na vida”.
Bertram se envolve com o amor proibido. Ângela a sua obsessão é casada e após alguns momentos de prazer descobrem a reciprocidade na dor da separação. O sofrimento de Bertram passa a ser a cicatriz de uma ferida mal curada.
Ângela vê no casamento o impedimento de ser feliz. E ao matar o marido e o filho - principal motivo da infelicidade - entrega-se a Bertram na cumplicidade de dois amantes num mesmo crime. O satanismo abordado por Azevedo serve de solução para a busca da liberdade e de romantismo entre as personagens.
Ao abandonar Bertram, Ângela liberta-se do amor e do sentimento de culpa por seu ato, deixando o amante com o sofrimento e os vícios que ela semeou. Para Bertram apenas a morte seria o seu descanso. Torna-se um ébrio e nas noites e orgias a procura no corpo de outras mulheres:
“Quis esquecê-la no jogo, nas bebidas, na paixão dos duelos.
Tornei-me um ladrão nas cartas, um homem perdido por mulheres
e orgias, um espadachim terrível e sem coração”.
A tragédia acompanha Bertram por toda parte. Ao envolver-se com uma virgem, sacia-se após momentos de puro prazer atribuindo a saciedade como um tédio terrível. Depois enjoou-se dessa mulher e a abandonou. Ao ir à Itália, a personagem continua vivendo sob o efeito do vinho e das noites de intensa orgia. Envolve-se em diferentes situações e relaciona-se com outras personagens, ilustrando assim um quadro composto apenas de relacionamentos conturbados e desafetos causados pela própria necessidade e busca do amor perdido.
Em um dos relatos, Bertram ao sofrer um naufrágio é socorrido por um navio e envolve-se com a mulher do comandante. O amor desesperado o sufoca mais uma vez e o sentimento do dever e da honra são superados pelo desejo e da necessidade do corpo no corpo, atribuído à carência de quem não tem amor.
“ Foi uma visão de gozos malditos - eram os amores
de Satan e de Eloá, da morte e da vida, no leito do mar”.
A racionalidade em Bertram dá-se no momento em que começa a questionar a sua própria existência, ao deparar-se em um pequeno barco ao mar com cinco únicos sobreviventes a um ataque de um navio pirata. A saciedade da fome brota como uma necessidade de sobrevivência. Álvares utiliza-se do canibalismo como ato racional e necessário. Após a consumação do ato, resta apenas Bertram e a mulher que o ama. Razão e emoção são questionados num mesmo momento.
“ O que é o homem?.. alguma coisa de louco e movediço
como a vaga, de fatal como o sepulcro!”.
A fome o domina e a mulher passa a ser apenas o alimento do desesperado que a sente como um animal feroz e faminto. A sua morte foi a sobrevivência dele.
“Eu era nesse tempo moço: era aprendiz de pintor em casa de Godofredo. Eu era lindo então! Que trinta anos lá vão! Que ainda os cabelos e as faces me não haviam desbotado como nesses longos quarenta e dois anos de vida!”. Álvares relata na voz de Gennaro, quarto conto, a visão de um senhor sem nunca ter vivido ou presenciado tais experiências. Característica marcante em sua obra, o futurismo é apenas imaginário.
Gennaro é caracterizado pelo autor com certas peculiaridades. Neste relato são abordados temas como a desonra, reparo de um erro e a culpa que persegue a protagonista do conto. Amor e desejo são separados no seu contexto. Nauza e Laura despertam na personagem sentimentos que o faz agir e fazer parte de uma farsa criada por ele mesmo. O silêncio de Gennaro causa a morte de Laura.
“Era uma luta terrível essa que se travava entre o dever
e o amor, e entre o dever e o remorso”.
O perdão vem no momento da morte. E perdoando-o Laura se pune atribuindo somente a ela a culpa e ao mesmo tempo acredita ser redimida por Deus.
“Gennaro, eu te perdôo: eu te perdôo tudo...
Eras um infame... Morrerei... Fui uma louca...
Morrerei... Por tua causa... teu filho... o meu...
Vou vê-lo ainda... mas no céu... Meu filho que matei...
antes de nascer...”
Gennaro não se sensibiliza com a morte de Laura. O desejo por Nauza torna-se insuportável e concretizá-lo é o seu objetivo. “E as noites que o mestre passava soluçando no leito vazio de sua filha, eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza”. A posição da personagem Godofredo destaca-se pela sua pacificidade em relação ao enredo. Ciente dos fatos, o mestre parte para a ação. Neste contexto trava-se um diálogo entre Godofredo e Gennaro, no qual é exposta de forma ficcionista toda a realidade. O desfecho é conseqüência deste diálogo. Gennaro é obrigado a pular de um penhasco como punição dos seus atos.
“ O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus lábios
estalados de febre. Só vi aquele riso... Depois foi uma vertigem...
A queda era muito rápida... De repente não senti mais nada...”
No quinto conto, Claudius Hermann, Álvares de Azevedo deixa claro para o leitor que todos os contos anteriores tiveram a morte, o cemitério e um cadáver como cenário de relatos regados à nódoa de sangue. Claudius Hermann no entanto, mostra-se mais romântico sem o compromisso de relatar tragédias de amores doentios e desilusões de perdas contidas neste mesmo tema.
“O passado é o que foi, é a flor que murchou,
o sol que se apagou, o cadáver que apodreceu”.
Ao ser questionado sobre o que é poesia, Claudius rebate a crítica perversa do seu companheiro Bertram, que tenta ridicularizá-lo tornando-o, dentre eles, o único influenciado por Byron, Petrarca e Mefistófeles.
“ A poesia eu t’o direi também por minha vez,
é o vôo das aves da manhã no banho morno
das nuvens vermelhas da madrugada, é o cervo
que se rola no orvalho da montanha relvosa,
que se esquece da morte de manhã,
da agonia de ontem em seu leito de flores!”.
A paixão platônica de Claudius é superada pela busca da concretização do sentimento. A amada não satisfazia apenas ao ser admirada. O desejo de possuí-la e tê-la ao seu lado passa a ser insuportável. Utiliza-se então, de algumas gotas de narcótico para provocar a febre nas faces e o desejo voluptuoso em seu seio.
Ao raptá-la, Claudius Hermann supera o desejo e passa a direcionar a vida da sua obsessão manipulando-a sob o efeito da droga afrodisíaca para saciar-se.
“O narcótico era fortíssimo: uma sofreguidão febril
lhe abria os beiços: extenuada e lânguida, caída
no leito, com as pálpebras pálidas, os braços soltos
e sem força - parecia beijar uma sombra”.
Ao voltar a si em um quarto desconhecido, trava-se um diálogo entre os dois personagens. A amada não entende o que ocorrera e ao saber que fora raptada e desonrada por aquele estranho a sua frente, aceita a sua triste condição de mulher impura.
“Meu Deus! Meu Deus! Por que tanta infâmia,
tanto lodo sobre mim? Ó minha Madona!
Por que maldissestes minha vida,
Por que deixastes cair na minha cabeça
Uma nódoa tão negra?”.
Claudius Hermann tenta justificar-se perante o seu ato e imagina que irá conquistá-la com doces palavras de um louco apaixonado. Esta, porém, ao ver-se na condição de desgraçada, aceita entre a dor e a honra viver sua triste sina.
O conto acaba tragicamente quando a amada é morta pelo antigo amante que aparece para vingar-se. Apesar da dor que o transfigurava, foi reconhecido por Claudius, que percebe a triste fatalidade que o cerca.
Johann, sexto conto da Taverna, é seqüencial e determina o desfecho de Noite na Taverna. A partir da rivalidade entre dois jogadores de bilhar, Johann e Artur, a narrativa é desenvolvida como conseqüência de uma desavença que acaba em um duelo mortal.
Ambos estavam certos de seus objetivos. Apenas um sairia vivo desta fatalidade. E despedem-se da vida com um último brinde junto ao Reno em uma noite fria.
“Um de nós fez a sua última saúde -
Boa noite para um de nós...
Bom leito e sono sossegado
Para o filho da terra”.
A morte é certa e o duelo inevitável. O vencedor foi Johann.
Ao vencer Johann recebe das mãos moribundas a carta endereçada a sua mãe e uma outra aberta apenas com um endereço e uma letra: G. A infâmia torna-se presente no pensamento da personagem levando-o a comparecer ao encontro no endereço indicado passando-se por Artur. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto.
“Foi uma noite deliciosa! A amante do loiro -
era virgem! Pobre Romeu! Pobre Julieta!
Parece que essas duas crianças levavam
a noite em beijos infantis e em sonhos puros!”
Ao sair encontra um vulto à porta.”A luta fez-se terrível na escuridão. Eram dois homens que se não conheciam” Johann sobrevive à luta matando o seu adversário.
Como um esclarecimento, a lanterna encontrada torna-se a luz da verdade. Ao clarear o inimigo morto, Johann descobre a sua verdadeira identidade: seu próprio irmão. Esta constatação torna-se dor ao perceber também que acabara de amar a própria irmã, sem o saber. O conto acaba com uma resposta sofrida marcada pela dor da personagem:
“O que tenho? O que tenho?
Não o vedes, pois? Era minha irmã!”
Último beijo de amor encerra os contos de Noite na Taverna. Todos os personagens encontram-se bêbados e alguns já dormem sob a mesa. A atenção é voltada para a misteriosa mulher que entra na Taverna. Ela ao se deparar em frente a Johann assassina-o com um punhal que traz em sua mão. A dor também está presente nesta mulher: “Um soluço rouco e sufocado ofegou daí”.
A mulher acorda Arnold e trava com ele o último diálogo da narrativa. Ao reconhecê-la, Arnold surpreende-se com as mudanças refletidas no semblante dela após cinco anos. Arnold é Arthur.
“Sim: já não sou bela como há cinco anos!..
É que a flor de beleza é como todas as flores...”
A personagem vive atormentada com o seu passado, que a persegue e a faz punir-se da sua vergonha. Esta mulher chama-se Giorgia. Giorgia que amava Artur que fora assassinado por Johann seu irmão.
“Giorgia a prostituta vingou nele
Giorgia, a virgem...
Álvares de Azevedo coloca frente a frente o amor e a dor. “A dor da mulher que sufocava-se em lágrimas, e o mancebo que murmurava entre beijos e palavras de amor”. Para ele, resta apenas a saudade. Para ela, apenas a morte.
Com final surpreendente, os contos interligam-se para um desfecho trágico: Amor, vingança, dor, desespero e morbidez, são características dos personagens psicologicamente abalados que encontram na Taverna o sentido para as suas aflições.
“A lâmpada apagou-se.”