Eles eram muitos cavalos
Os cavalos de Ruffato.
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eles eram muitos cavalos, romance de Luiz Rufatto foi originalmente publicado pela Editora Boitempo Editorial, de São Paulo, em 2001. A obra, no seu conjunto, é peculiar. Um romance criado a partir de várias narrativas que se destacam como murmúrios do anonimato.
A poesia é a origem da narrativa turbulenta e nevrálgica que habita a temática e estilo do livro, abrindo espaço para a prosa, fragmentada em 69 pequenos textos, que refletem o cotidiano e as confusões de uma grande cidade. São Paulo é esta cidade. A preocupação de Ruffato é fazer de sua obra uma realidade, onde apresentam protagonistas e situações inseridas num tempo e num espaço delimitados em múltiplas e diferentes vozes que se fazem ouvir, interferindo na maior parte das vezes, na narrativa, numa colagem de textos que transformam o cotidiano ao final de 158 páginas. As narrativas são curtas e variam entre a 1ª e a 3ª pessoa e seus protagonistas não retornam ao enredo, porém, diferentes mundos se cruzam tecendo ao longo do romance, uma narrativa não-linear, causando impressões de conversas traçadas nas ruas, no elevador, em histórias tiradas de jornal e pequenos papéis jogados no chão, que de forma simples e objetiva, expressam o que poderia ser uma visão da megalópole São Paulo recheada de orações religiosas, cenas de amor e violência, ódio e paixão, assim como seres que se completam e outros que nunca se compreendem.
eles eram muitos cavalos situa seus protagonistas a partir daquilo que eles consomem, sonham consumir e até mesmo do que não esperam consumir, num cenário urbano no qual o autor demonstra o caos da metrópole, dos homens e a dor da civilização que o corrói, numa linguagem de palavras doces com lirismo embutido na camada amarga do texto. E o texto é o fio magnífico de uma trama tecida com inteligência e fúria: o homem é um cavalo regido pela sinfonia dos dias, estancadas em metáforas e sangue. Toda a ação da narrativa se passa num só dia, o dia 9 de maio de 2000, numa confluência com a obra de Joyce, Ulisses , em que Ruffato tenta demonstrar, uma forma de agir sobre o real, toda a sua brutalidade, marcada por expressões de violência literária. A violência é registrada na obra como forma de inserção daqueles que têm negado o acesso aos bens de consumo, da simples descrição dos objetos de uma casa, de alimentos ingeridos, marcas de roupa e eletrodomésticos, nos seqüestros relâmpagos, nos assaltos nos semáforos e nos assassinatos que compõem o cenário da tristeza urbana de São Paulo.
O humor também é uma característica na obra. Ruffato inicia a história com o título de Cabeçalho fazendo de sua narrativa algo de novo no estilo de narrar e contemporâneo. A novidade não ocorre somente porque o autor utiliza recursos como à intercalação das várias histórias com determinadas coisas, tais como: uma oração a Santo Expedito, uma lista de livros que compõem uma estante, o salmo da Bíblia e no anúncio de jornal na coluna de recados. O novo e a novidade ocorrem em forma de ruídos causados pelas diferentes vozes do texto, de manchetes sensacionalistas dentro da obra, nos classificados e desclassificados que enfeitam a narrativa e nos elementos textuais utilizados pelo autor, que se apropria de objetos do cotidiano, dando-lhes novas função e configuração. Cabeçalho é o anúncio profético do autor que se deixa levar por cenas que impressionam, por causar justamente estranheza à estética literária tradicionalista.
O enredo é, portanto, composto por várias pequenas histórias / textos / minicontos que formam um recorte mínimo do cotidiano de várias vidas a passar-nos como um filme, diante dos olhos, para ser lido com a cabeça e não com os olhos, com os movimentos e não com as palavras. É como se fosse uma pintura na qual a superfície é habitada simultaneamente pelo mel e pelo fel. As construções textuais são farpas que ferem os leitores despreparados pelo deslumbramento de sua exposição. São as cicatrizes de uma metrópole ferida por viventes que podem ser os cavalos de Cecília Meireles “que ninguém mais sabe os seus nomes, sua pelagem, sua origem”. Nem todos os fragmentos que compõem a obra estão construídos com a mesma perspicácia, embora a seleção dos favoritos vá variar de leitor para leitor. O resultado é, no entanto, o que realmente interessa para a literatura brasileira diante da mesmice que a cerca oriunda, ainda, da produção européia, intertextualizada, e muitas vezes cópias e adaptações de algo que já não cabe nem merece mais ser dito.
eles eram muitos cavalos mostra uma evolução nítida em relação ao romance contemporâneo. Ruffato desintegra e atualiza o que temos de mais moderno em vista do que ainda se produz no contexto literário sem apelar para o inaudito. Tudo na obra merece destaque e nos remete as produções vigorosas e urbanas dos anos 50 e 60, num tumulto de atmosferas opressivas, de ambientes convulsionados em ritmos alternados de exaltação e calmaria, alcançando a autenticidade do anormal e a verossimilhança do extraordinário. Se os personagens são descritos num nível de requinte estilístico que é antes do romance, se o último fragmento dilui e desfibra a narrativa que encerra o livro, no todo a narrativa deixa transparecer um engenho demasiadamente literário repletos de detalhes pequenos ante o poder extraordinário da poesia que se levanta destas páginas. Ruffato deu voz a sua tumultuada galeria de personagens, onde ganham contorno numa voz que é antes de tudo do próprio autor. O escritor se encontra com os seus personagens transformando-os em carne de sua carne, expressão dilacerada de sua angústia e inadaptação diante de São Paulo.
Eles eram muitos, ou ao menos tantos, que não havia como segui-los. Eram rápidos, escorriam por todos os cantos, sempre sem memória. Pardos, eles eram pardos e foscos, e tinham os ossos quase descobertos de carne. Eles eram muitos e andavam invisíveis aos olhos da literatura brasileira. A ótica não é a do expectador, mas a do próprio personagem. Se os temas são universais, a abordagem não tem nada de comum. Com inovações gramaticais, inversões de frases e fluxos de consciência, a obra forma um todo rico e heterogêneo, como as vidas que são a matéria-prima do autor, um emaranhado de vidas que escorre sem que ninguém, a não ser eles mesmos, tome conhecimento disso.
A proposta literária de eles eram muitos cavalos possui consistência e o resultado revela o talento do escritor no manejo da palavra, trabalhando com registros e com sensibilidade face à diversidade social e cultural da maior metrópole do Brasil. Era preciso. Mais que um livro, é uma experiência a não perder. O romance de Luiz Ruffato é uma tentativa de diminuir a distância que existe entre sua arte, a literatura, a seu próprio tempo. É um labirinto. Como um jogo de espelhos, um caleidoscópio partido de sentimentos diversos. O romance imita a cidade. É a própria cidade. Um buraco negro que devora a paisagem e o resultado será sempre o mesmo porque deste inferno não há saída.