MARIA APRISIONADA
Quem foi Maria e o que ela representa para o Cristianismo? Há um adesivo para carro muito popular no Brasil (o adesivo, não o carro!), que apresenta um desenho pretendendo representar Maria, em que ela está envolvida por um terço de contas (se é esta a nomenclatura exata para tal artefato). A freqüência com que tenho me deparado com tal adesivo tem-me preocupado, pois esta realidade revela um incremento do “culto à Maria” ou “mariolatria”, fato este que contraria as Escrituras Sagradas.
Talvez a recorrência da visualização dessa imagem tenha me levado a uma percepção que me incomoda: naquele adesivo, Maria está aprisionada no cordão da idolatria. Ao chegar a esta conclusão, interessei-me por investigar a personagem bíblica e redescobrir verdades e valores que o aprisionamento que se faz no Brasil, de Maria, ao cordão da idolatria, leva tanto católicos como evangélicos, a não perceberem. Por um lado, há o enaltecimento exacerbado de Maria, promovido pelos católicos, que contraria frontalmente a verdade escriturística. Por outro, há um quase que total esquecimento da figura de Maria pelos evangélicos, talvez por conta do receio de ferir suscetibilidades ou esbarrar na prática confessional católica de deificar Maria.
Não há qualquer margem no texto bíblico que nos possibilite enxergar em Maria uma espécie de deusa ou mãe de Deus. Algumas verdades sobre esta questão precisam ser ditas e o farei citando os textos bíblicos que as testificam:
1º) Maria não é mãe de Deus. Ela é mãe do Jesus histórico, do Jesus humano, pois o Jesus divino antecede o Jesus humano nascido em Belém. (Jo 1.1-3; 1Jo 2.13,14; Hb 13.8);
2º) Maria não permaneceu virgem para sempre. Ela deu à luz a Jesus, de forma divina, pela concepção do Espírito Santo, mas, depois do nascimento de Jesus ela casou-se com José de quem teve outros filhos. (Mt 1.18-25; Mt.12.46-49; Mt 13.55; Mc 3.31-34; Lc 8.19-21; Jo 7.3-10);
3º) Maria não foi assunta aos céus. Não há nenhum indicativo bíblico deste acontecimento. Somente Jesus ascendeu aos céus. A tentativa de dar a Maria esta paridade de fenômeno, semelhante ao de Cristo, é invenção humana para fortalecer a mariolatria. (Mc 16.19; Lc 24.50-53; At 1.9-11);
4º Maria não é medianeira. Outra tentativa de supervalorizar Maria é declarar-lhe mediadora entre Deus e os homens. A expressão está bem popularizada no adesivo “peça à Mãe que o Filho atende” que também contraria todo o conteúdo da Bíblia. A Bíblia é taxativa em afirmar que só existe um mediador e que este é Jesus Cristo. Jesus alcançou esta condição por ser ele Deus, algo que Maria está longe de ser. (1Tm 2.5).
Poderíamos fazer outras assertivas sobre os erros que se cometem atribuindo a Maria uma condição que ela não tem, mas, creio que as apresentadas são suficientes para esclarecer o leitor acerca destas impropriedades. Além disso, meu propósito é mostrar que o aprisionamento de Maria não é só culpa dos católicos, mas, também, dos evangélicos. Daqueles, por causa da idolatria empobrecedora da fé cristã; destes, por conta do descaso a um personagem bíblico que tem muito a nos ensinar. Vamos ver alguns aspectos interessantes que devem ser destacados na pessoa de Maria.
1º) Liberte a Maria bíblica, exemplo de mulher.
A escolha de Maria para ser aquela que receberia o menino Jesus em seu ventre, aconchegando-o em seus primeiros momentos de vida, está calcada na qualidade de mulher que ela foi. Lembremos-nos que o contexto judaico não era dos mais propícios à valorização da mulher. Este quadro vai ser modificado exatamente com a ascensão da pessoa do Cristo que ela carregava no ventre ao coração daqueles que creram nele como Salvador. O Apóstolo Paulo teologiza isso (Gl 3.28; Cl 3.11) quando diz que em Cristo não há diferenças raciais, de gênero, sociais ou econômicas. O Reino dos Céus é propício a todos, inclusive às mulheres. É importante frisar isso, porque num contexto onde a mulher não é valorizada e, conseqüentemente, não recebia os investimentos necessários para ascender socialmente como mulher, Maria sobressai-se com seu caráter e sua fé. Ela possuía uma família, uma educação, uma formação de caráter adequada; postura, princípios, valores, sem falar na base espiritual calcada no judaísmo messiânico que enchia seu coração de esperança.
Condições morais, espirituais e familiares estavam reunidas em Maria para habilitá-la à tornar-se receptora do Messias em seu ventre. José, que também possuía excelente caráter, percebeu isso nela – a virgem da Casa de Davi – com quem iria desposar-se. Tanto que, quando soube de sua gravidez, teve a intenção impedida pelo anjo do Senhor, de deixá-la em segredo, para não difamá-la, coisa que ela não merecia (Is 7.14; Mt 1.18-25; Lc 1.26-38).
Que todas as mulheres se mirem no exemplo de mulher que foi Maria e aprendam com ela a força do seu caráter e de sua fé, bem como a maternidade responsável que soube se haver corretamente, nos momentos vários como o parto difícil nas condições inadequadas de Belém (Lc 2.1-7); os problemas externos que atentavam contra a integridade física de seu filho, como o foi o decreto de Herodes sobre a matança dos meninos (Mt 2.1-23); e a preocupação com a formação religiosa do menino, conduzindo-o ao templo (Lc 2.39-52). Maria, em tudo, portou-se como mulher cônscia de seu papel e cumpridora dos seus deveres.
2º) Liberte a Maria bíblica, modelo de serva.
Outro fato destacável na figura de Maria é sua condição de serva. Só assume a condição de servo, quem tem um relacionamento de verdade com o seu Senhor. A teologia do doulos, muito bem desenvolvida nas cartas paulinas, está esquecida pela cristandade contemporânea. Muitos querem ser servidos, contrariando a proposta do próprio Cristo, e o desafio por ele deixado para seus discípulos: “Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10.45). O perfil de muitos líderes ditos cristãos, evangélicos ou não, está longe desse perfil de servo. Ostentando carros de luxo, roupas de grife, casas-mansões, vivem um cristianismo de resultados onde uma nociva teologia da prosperidade grassa como erva daninha nos arraiais dos incautos fiéis.
Maria, diferentemente deste quadro, estava bem ajustada neste papel de serva. Ela afirma de forma serena e tranqüila, ante as informações bombásticas do anjo: “Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1.38). O servo é humilde, é submisso. A obediência é marca inconteste na vida do servo e Maria estava disposta e disponível para ser instrumento de Deus para cumprimento de sua missão salvadora no mundo. Esta atitude respeitosa de obediência e submissão, somada à sua disposição pelo cumprimento da vontade - a palavra proferida pelo anjo como palavra divina -, demarcam esta qualidade de serva que Maria foi e que precisa ser imitada.
3º) Liberte a Maria bíblica, espelho de cristã.
Pode parecer anacronismo falar em cristianismo naqueles tempos do Jesus histórico. Mas, quero ressaltar isto, delimitando a questão não a um cristianismo institucionalizado como o vemos hoje, mas, ao cristianismo puro, verdadeiro, essencial; que é aquele que diz respeito ao seguimento de Jesus, sua vida, exemplo e ensinamentos. Podemos aludir a Maria como espelho de cristã, à medida que ela, à semelhança de João Batista (Jo 3.30), soube reconhecer o seu verdadeiro lugar e a supremacia de Jesus. Não entendo porque os católicos insistem tanto em dar a Maria um papel e um lugar que ela não quis ocupar e nem mesmo o reivindicou para si.
No episódio do casamento em Caná da Galiléia (Jo 2.1-12), há um diálogo muito rico entre Maria, Jesus e os serviçais, que esclarece bem o reconhecimento que Maria tem de Jesus como Salvador e Senhor:
“E, faltando vinho, a mãe de Jesus lhe disse:
- Não têm vinho.
Disse-lhe Jesus:
- Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora.
Sua mãe disse aos serventes:
- Fazei tudo quanto ele vos disser.
E estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos judeus, e em cada uma cabiam dois ou três almudes. Disse-lhes Jesus:
- Enchei de água essas talhas.
E encheram-nas até em cima. E disse-lhes:
- Tirai agora, e levai ao mestre-sala.
E levaram. E, logo que o mestre-sala provou a água feita vinho (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água), chamou o mestre-sala ao esposo. E disse-lhe:
- Todo o homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.
Jesus principiou assim os seus sinais em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.”
O grifo (meu) ao texto bíblico ressalta o reconhecimento que Maria tinha de que a voz de Jesus deveria ser ouvida. Se cristão é aquele que segue a Cristo, ouve a sua voz e obedece aos seus mandamentos, Maria está alinhada com este pensamento, quando entende que Jesus tem palavras de poder que podem modificar de forma transcendental a materialidade. Foi o que ocorreu naquela festa de casamento. Paradoxo, mas realidade: era seu filho, mas era seu Senhor. E ela, como serva submissa, reconhecia a divindade de Jesus Cristo e orientava no sentido de haver total obediência ao seu comando.
Neste sentido, vale ressaltar que vivemos dias em que muitos cristãos não mais obedecem às ordens de seu Senhor. Existe um cristianismo de fachada que precisa ser restaurado em busca da verdadeira expressão da graça libertadora que é a presença de Cristo em nossas vidas (Jo 8.36; Gl 5.1).
Feitas estas considerações acerca de uma Maria aprisionada tanto por católicos (idolatria) quanto por evangélicos (quase que uma desconsideração), nosso desejo é que Maria, seu exemplo, sua vida, sua espiritualidade, seu caráter sejam tomados por imitação – como também recomenda o apóstolo Paulo em 1Coríntios 11.1 - pelas mulheres (e por que não pelos homens também?!) que querem viver uma vida digna de amor e serviço cristão.