Ensaio Dissertativo com fundamentação na Teoria de Ingardem sobre o poema: Deve haver algo, da autora Marly de Oliveira
Este ensaio possui como objetivo fazer uma análise no poema “Deve Haver Algo” do livro Mar de Permeio, de Marly de Oliveira, fundamentado na teoria de Ingardem. As teorias de Ingardem despojam o texto poético de suas qualidades transitórias que abriguem valores sociais, éticos e ideológicos. Excluem-se tudo que é extrínseco à obra. A obra existe independente do autor, leitor ou as circunstâncias históricas. Eliminando tudo que é externo à obra, contempla-se conforme a poesia se dá na sua consciência. Então basta descrevê-la com agudeza, seguindo os estratos fônicos, semânticos, objetividades apresentadas e aspectos esquematizados. Essa concepção visa ultrapassar a antiga polêmica entre forma e conteúdo, uma vez que na constituição dos estratos e na conseqüente polifonia entre os mesmos. Os elementos formais se tornam indissociáveis dos materiais.
A partir da análise estrutural de Ingardem, vamos tentar encontrar a essência do Poema “Deve Haver Algo” seguindo os estratos fônicos, semânticos, objetividades apresentadas e aspectos esquematizados, é claro que esses estratos não serão dissociados, eles se relacionaram de maneira intercaladas e então teremos as intencionalidades do texto.
Deve Haver Algo
1-para alem do nosso entendimento
2-que desconheça qualquer dificuldade
3- em distinguir uma porção de feno
4- de outra mais resistente que nunca precise-
5-dividir-se ou escolher ou preocupar-se, soltos os
6- pensamentos-pardais,soltos os sentidos,
7- passo a passo na sombra caminhando
8- sem jamais sem jamais sentir-se atado,
9- sem jamais pensar em onde ou quando
10- destelhando a própria casa convivendo
11- ao mesmo tempo com paz que leva dentro
12- e a rebelião que a contradiz.
A poesia “Deve Haver Algo” constitui-se somente em uma estrofe com doze versos e todos iniciam com a letra minúscula, o titulo é o inicio do poema. Já na primeira leitura, o texto nos passa uma ânsia, uma tensão e certa ambigüidade. Há poucas pausas, em todo poema tem somente quatro vírgulas. A primeira vírgula é no quinto verso entre as palavras, preocupar-se e soltos, e há uma espécie de corte no poema, entra um sujeito que além da grande pergunta que começa no titulo também requer liberdade. Na segunda vírgula entre as palavras, pardais e soltos, sai o sujeito concreto (pardais) e entra um substantivo abstrato (sentido). A terceira vírgula está entre as palavras, sentido e passo e a última após a palavra atada. Essa falta pontuação que o texto tem nos leva a uma de sensação de desespero, tudo precisa ser dito e de maneira rápida e intensa.
A ESCANSÃO DO POEMA
pa/ra a/lém /do/ no/sso em/tem/di/men/to -nove
que/ des/co/nhe/ça/ qual/quer/ di/fi/cul/da/de -onze
em /dis/tin/guir/ uma/ por/cão/ de/ fe/no -dez
de ou/tra /mais/ re/sis/ten/te/ que/ nun/ca/ pre/ci/se- doze
di/vi/dir/-se ou es/co/lher/ ou /preo/cu/par/-se/, sol/tos os- treze
pen/sa/men/tos/-par/dais/sol/tos os /sen/ti/dos,- onze
pas/so a pa/sso /na/ som/bra/ cami/nhan/do -dez
sem/ ja/mais/ sem/ ja/mais/ sem/tir/-se a/ta/do,-dez
sem/ já/mais /pensar/ em on/de ou quan/do - dez
1des/te/lhan/do a /pró/pria /ca/as/ con/vi/vem/do -onze
11- ao/ mes// tem// / paz/ que/ le/va /den/tro-doze sílabas poéticas
12- e a/ re/be/lião/ que a /con/tra/diz. -Oito sílabas poéticas
Na escansão feita no poema nos deparamos com a seguinte metrificação: o primeiro verso possui nove silabas poéticas, chamado de eneassilabo. O segundo, o sexto e o décimo têm onze sílabas poéticas chamado de endecassílabo. Há dez sílabas poéticas, conhecido como decassílabo, nos terceiro,sétimo,oitavo e nono versos. Nos quarto e décimo primeiro versos têm doze sílabas poéticas, é chamado de verso alexandrino. O poema mostra um verso com treze sílabas poéticas, na quinta linha. O menor verso é no final, são oito sílabas poéticas ao qual chamamos de octassílabo. O poema possui versos polimetros, pois há variação no tamanho dos versos, mas embora de tamanhos diferentes, têm as sílabas tônicas localizadas nas posições indicadas pelas regras métricas tradicionais. O que nos remete a uma dualidade na forma, o moderno e o tradicional andam juntos no poema. Não há rimas internas ou externas, porém em nove versos aparece assonância, a vogal O, que é uma vogal posterior e fechada ao qual no leva a mesma sensação de falta de liberdade, fragmentação, ânsia e solidão. A escansão e o inicio do poema no titulo, a falta de pontuação e rimas, a mistura na forma do novo e o antigo nos possibilita afirmar que o poema pertence à Estética Moderna.
O poema começa com uma espécie de pergunta no titulo, ”Deve haver algo” e continua no texto com a antítese Feno com a intencionalidade de nos remeter a frágil e a palavra resistente. Deve existir algo maior, transcendental que não tenha dificuldades de escolher ou dividir.A partir do quinto verso, ânsia relaciona-se com a falta de liberdade do pensamento (substantivo abstrato) pardal (substantivo concreto). É intensificada a sensação de ânsia sem liberdade com o uso da anáfora dos advérbios de negação jamais e reforçado pelo sem nos versos oito e nove.
Não há no poema, do titulo até o sexto verso, um sujeito determinado. O uso dos verbos nos infinitivo nos leva a um sujeito indeterminado. Alguém é livre, mas certamente não é o eu-lirico do poema. Nessa primeira parte, até o sexto verso, as orações são subordinadas que nos possibilita falar em dependência, falta de autonomia “... para além do nosso entendimento...”. A partir do sexto verso surgem dois sujeitos simples( pensamentos-pardais e sentidos), e as orações tornam-se coordenadas, a poesia começa apresentar uma concretude e autonomia, a liberdade está surgindo mesmo em meio as contradições e antíteses. Os verbos no gerúndio indicam ações acontecendo..”destelhando a própria casa..”
Na primeira parte ocorre um encadeamento, pois os versos ligam-se ao seguinte para completar o sentido,... ”em distinguir uma porção de feno de outra mais resistente que nunca precise...”Até o quinto verso não há como entendê-los sem termos lido os anteriores.
Então surge uma espécie de choque, o som (completo), e a organização sintática e o sentido (ambos incompletos), ou seja: tensão. Ainda na segunda parte, a partir de...”soltos os sentido...”,continua o encadeamento, resultando numa ambigüidade de sentido,...”sem jamais pensar em nada ou destelhando própria casa..”No conjunto dos versos esta ambigüidade vai ser ampliada com o contraste sugerido no verso final...”com a paz que leva dentro e a rebelião que a contradiz”.Esses dois versos tornam-se paradoxo, pois são elementos que ligados por uma conjunção aditiva se excluem e aumenta a tensão já sugerida pelo encadeamento.Assim esse paradoxo reforça a idéia de duplicidade de sentido que percorre todo o poema.Na medida que há uma associação de elementos contraditórios para o buscar...”o algo além do nosso entendimento..”.
Podemos deduzir que o poema possui alto grau de abstração e generalização, porque se trabalha com poucos substantivos concretos (feno, pardais, casa), mesmo assim são usados metaforicamente, ou seja, servem para uma intenção conotativa. Não há verbos de ligação ou predicativos, há predomínio de verbos de ação e formas nominais (gerúndio e particípio), que indica ações acontecendo. Assim nos leva a entender uma busca pela rapidez, dinamismo, solidão e fragmentação do homem moderno. Uma certa dicotomia entre a paz e a luta que levamos dentro de nós, porém há também a grande pergunta metafísica de todo ser humano, “Deve haver algo para além do nosso entendimento...”.
Essa é a essência captada segundo a análise baseada na Fenomenologia de Ingardem, usamos os quatro estratos de maneira intercalados, pois não há como separá-los, as intencionalidades do poema foram se interligando, conforme fomos descrevendo-os. Temos consciência, de que mesmo excluindo a parte extrínseca do poema, todas as intencionalidades dadas ao poema através das análises descritivas dos estratos partiram de uma consciência situada em um determinado meio, tempo e espaço. Portanto, essa mesma analise pode ser feita por outra pessoa e ter um resultado completamente diferente, pois depende da subjetividade de cada um.
Bibliografia
BORDINI,Maria da Glória.Fenomenologia e Teoria Literária.São Paulo: EDUSP; 1990
GOLDSTEIN,Norma.Versos, Sons, Ritmos.São Paulo: Editora Àtica,1999
OLIVEIRA,Marly de.O Mar de Permeio.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997