Anáslise de 'Várias Histórias' de Machado de Assis
REALISMO E NATURALISMO: A SOCIEDADE NO CENTRO DA OBRA LITERÁRIA E A APROXIMAÇÃO ENTRE LITERATURA E CIÊNCIA
Ginaldo_silva@hotmail.com
O Realismo foi o estilo de época que predominou durante a segunda metade do século XIX. A concepção emocional-afetiva do mundo e da literatura cedeu lugar a uma percepção mais realista. Surgia assim um novo estilo, dando origem a uma literatura mais próxima do momento presente e com uma visão mais objetiva do mundo e da vida.
As descobertas científicas e as novas doutrinas criaram inusitadas referências para a sociedade. Desenvolveram-se várias correntes de pensamento, no campo da filosofia, da ciência, da economia e da psicologia. Dentre elas, o Positivismo, o Determinismo, o Evolucionismo e o Marxismo. Dessa forma, na literatura, o Realismo impõe-se como uma reação ao excesso de subjetividade romântica. Em 1857, o francês Gustave Flaubert publicou o primeiro romance considerado realista, Madame Bovary, dez anos depois Émile Zola edita Thérèse Raquin, dando início ao Naturalismo.
O Realismo e o Naturalismo têm princípios comuns, tais como a objetividade, o universalismo, a correção e clareza da linguagem, o materialismo, a contenção emocional, o antropocentrismo, o descritivismo, a lentidão da narrativa e a impessoalidade do narrador. Entretanto, distingue-se em vários pontos, uma vez que tinham objetivos diferentes: os escritores realistas propõem-se a fazer o romance de revolução. Pretendiam reformar a sociedade por meio de literatura crítica. Preferem analisar os personagens de forma psicológica, esperando que os leitores se identificassem com as personagens e as situações retratadas, transformando-se o que não ocorre com os naturalistas. Estes estavam comprometidos com a ótica cientificista e objetivavam desenvolver o romance de tese, no qual seria possível a demonstração das diversas teorias científicas. Retratavam o coletivo, envolvendo os personagens em espaços miseráveis, corrompidos social e/ou moralmente, pois acreditavam que o meio influenciava o homem.
No Brasil, a obra Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, marca o início do Realismo e o Mulato, de Aluízio Azevedo, o do Naturalismo, ambas publicadas em 1881. Segundo o crítico literário Alfredo Bosi (1995, p. 192) “É o ponto alto da prosa realista e o divisor de águas, junto com Brás Cubas”. Afirma que a ficção machadiana constitui, pelo equilíbrio formal, um dos caminhos permanentes da prosa brasileira na direção da profundidade e da universalidade. A vida de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) sempre é contada a partir do seu nascimento no Morro do Livramento. Descendente de escravos por parte de pais, diz-se que ele sempre procurou disfarçar sua mestiçagem da melhor maneira possível. Infância pobre, órfão de pai aos doze anos. Publicou seu primeiro poema Ela aos dezesseis. Trabalhou na Tipografia e Livraria Brito, onde conheceu vários intelectuais. O ingresso no funcionalismo público em 1867 e o casamento com Carolina, em 1869, que seria a revisora dos seus textos. Em 1897 é eleito o primeiro Presidente da Academia Brasileira de Letras.
Desde seu primeiro romance, Ressurreição, publicado em 1872, ato o último, Memorial de Aires, 1908, Machado denunciou como poucos as armadilhas da vaidade, do egoísmo e da violência. Seu humor, pessimismo, ironia amarga e cruel, vão tecendo enredos onde ação e tempo perde a importância, ao mostrar a luta pela vida na qual o homem vai destruindo seus irmãos de forma implacável para conseguir o que quer e no final deparar-se com o vazio. A trama só interessa enquanto parte da análise feroz empreendida por um narrador inteligente e perspicaz que busca a todo o momento a cumplicidade do leitor. Foram nove romances. Os da fase romântica são: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876). Iaiá Garcia (1878). Os da fase realista: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
As características essenciais da estética Realista/Naturalista, tais como o condicionamento do homem ao meio social, a lei do mais forte, a crítica à burguesia estão presentes nos romances realistas de Machado de Assis; entretanto, esses temas são tratados de forma singular e imparcial, revestidos ora por um humor reflexivo, ora amargo diante dos tormentos humanos. Outros aspectos estruturais revelam-se quando observamos que Machado de Assis, à semelhança de outros contistas do tempo e em respeito aos postulados estéticos vigentes, se debruça na realidade social contemporânea. Massaud Moisés afirma que:
Várias histórias, onde tudo é de primeira ordem,
e a maior parte é de páginas perfeitas (...)
representam, não só a culminância da obra de
Machado de Assis, como um conjunto cuja harmonia
foi raramente atingida.
Em Machado de Assis a preocupação central é a análise das personagens, os fatos e as ações ficam em segundo plano. São relatados à medida que despertem à consciência ou à memória do narrador. Por essa razão, a narrativa não segue uma ordem cronológica, mas sim obedece a um ordenamento interior. Além de ordem não-cronológica na disposição dos fatos e das digressões Machado apresenta técnicas formais que seriam comuns mais tarde em textos modernistas: capítulos curtos, ligeiros, estrutura fragmentária e não-linear. Os finais dos contos e dos romances machadianos raramente são previsíveis. O escritor parece ter um perverso prazer em romper a expectativa do leitor. Machado foge a todos os clichês, e quando aparecem, são contextualizados de tal forma, que ficam caracterizados como o anticlímax.
Várias Histórias é publicado em 1896 e é composto por dezesseis contos bem esmerados e bem escolhidos, vazados em linguagem clara. São constantes nos contos do volume uma preocupação em datar e localizar o espaço em que as ações ocorrem. Geralmente tendo como centro as ruas do Rio de Janeiro do presente do escritor ou um passado recente. Com o aprimoramento das técnicas do diálogo, Machado de Assis muitas vezes utiliza o recurso como base ou pretexto de seus relatos. Não raro utiliza a intertextualidade, travando diálogos com escritores clássicos como Shakespeare e Goethe, com filósofos como Spinoza, São Tomás de Aquino e, principalmente, com passagens da Bíblia.
Para efeito de estudo, os contos de Várias Histórias são agrupados em três grupos: Grupo I, contos que têm por base o estudo da alma feminina: A Cartomante, A Desejada das Gentes, Mariana, D.Paula e Trio em Lá Menor. Grupo II, contos em que o escritor ressalta estudos do caráter humano, reunindo contos de inquirição psicológica: Uns Braços, Um Homem Célebre, A Causa Secreta, O Enfermeiro, O Diplomático, Conto de Escola e Entre Santos. Grupo III, contos que buscam teorizar ou caracterizar filosoficamente os homens ou o ato da escritura: Um Apelo, Adão e Eva, O Cônego ou Metafísica do Estilo. O domínio da análise é direcionado ao psicológico, dissecando a alma humana em busca de sua essência, que muitas vezes, expressa o conflito e muitas vezes a conciliação entre elementos opostos. Há em Várias Histórias uma análise das fraquezas humanas, norteadas pela preocupação com a opinião alheia. Destacam-se características como a metalinguagem e a digressão.
Para uma melhor compreensão da obra machadiana, analisaremos a seguir alguns contos contidos em Várias Histórias, apresentando características do realismo e enfatizando detalhes de sua composição. O primeiro a ser analisado é Entre Santos. Trata-se de uma narrativa dentro de uma outra narrativa, que permite a possibilidade para mais uma outra. Um discreto narrador em primeira pessoa abre espaço para um narrador testemunha de um acontecimento surpreendente: enquanto era capelão na igreja de São Francisco de Paula, pôde surpreender um diálogo entre santos que durante o dia eram estátuas no templo. O conto consegue apresentar o caráter dilemático da mente humana, mostrando extremo materialismo ao integrar-se ao fervor espiritualista, conciliando esses opostos. A razão surpreende o imaginário, criando uma dubialidade. É através do discurso dos santos que Machado contrapõe esta realidade. Discutiam o caráter humano, através das pessoas que vinham rezar diante deles. Observa-se no conto a análise minuciosa da realidade quando no final do conto o narrador deixa claro ao leitor a sua posição. Vejamos:
Corri a abrir todas as portas e janelas
Da igreja e da sacristia, para deixar
Entrar o sol, inimigo dos maus sonhos...
Realidade ou sonho é como o narrador de forma objetiva finaliza a sua narrativa, restando a leitor compreendê-la como quiser. Recurso utilizado por Machado em diversos romances de sua autoria como em Dom Casmurro.
O segundo conto chama-se Uns Braços. Conto que narra em terceira pessoa a descoberta do amor, sem os traços exagerados do Romantismo, e de toda a sensualidade que cerca a personagem e a trata com delicadeza. O protagonista é um jovem de quinze anos que se vê enamorado pelos braços da companheira de seu patrão. Num jogo de sedução e malícia armado por Machado, a história se passa na Rua da Lapa, em 1870, Rio de Janeiro. A época não era comum uma mulher exibir os seus braços. Desejos imaginários entrelaçam-se com a razão. Questões morais são abordadas sem se chegar ao despudor. A única intimidade entre os dois personagens é um beijo na boca em uma rede. É neste momento da narrativa que o sonho coincidiu com a realidade, transformando os protagonista em vítimas de seus próprios desejos tão guardados:
(...) estava tão bem! Falava-lhe com tanta amizade! Como é que de repente...
tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma
distração que a ofendera. Não importa; levava consigo o sabor do sonho. É através
dos anos, por meio de outros amores, mais afetivos e longos, nenhuma sensação
achou igual à daquele Domingo, na rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos.
Percebemos neste conto o refinado humor de Machado de Assis: desmascara os personagens do lar (marido e esposa), simplesmente introduzindo um terceiro elemento (um jovem adolescente). Tece-se assim a teia que envolveria sua descrença na fidelidade conjugal, uma das características do Realismo.
Em Um Homem Célebre, terceiro conto, Machado se baseia entre a vocação e a ambição. O tema é a incompatibilidade entre os ideais e a realidade, construindo uma parábola da existência humana. Dá destaque a condição do homem simples na sociedade influenciada pelo meio. Há uma crítica direcionada ao mercado que está mais interessado em obras de qualidade fácil, que satisfaça de forma imediata o gosto do público. A frustração, o desespero em se tornar respeitado pela sociedade, torna o personagem em um ser em eterno conflito consigo mesmo e com o mundo que o cerca. Há também um conflito entre o efêmero e o eterno. É a trajetória do homem que é engolido pelo mercado ideológico. O início desse desencontro está na busca da satisfação pessoal, no desejo humano de realizar algo e nas interferências e dificuldades que aparecem diante dessa vontade, frustrando sua realização. Machado adota um viés que nos leva para uma sucessão de fatos que expõem alguns problemas: os da arte, os do artista e os da sociedade em que este e aquela estão inseridos. Somente no final de sua vida, o protagonista vê sua música tornar-se cultuada devido aos novos modismos, em deferência à subida dos conservadores ao poder. Eis a sua resposta ao Editor:
__ Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por
estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para
quando subirem os liberais.
O quarto conto é intitulado A desejada das gentes. Um conto sem narrador e com parágrafos enormes. A narrativa ironiza a fé, o dinheiro e a alma humana em geral, também com um toque sutil de humor machadiano recheado de aforismos. A protagonista rememora a um interlocutor a história de Otília. O egoísmo ganha destaque como uma das características do gênero humano, e a morte aparece como um meio de aproximação e não de distanciamento. Machado desvenda os recantos da alma feminina em Quitilha, uma das personagens do conto: “largamente e intimamente”. Os ambientes são os mesmos de outras narrativas. As mesmas ruas e bairros do Rio. Perpassam todo o texto citações ao Romantismo, quer seja o Werther de Goethe ou mesmo frase melodramática:
Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia,
mas as palavras tinham medo e ficavam no coração (...),
escrevi sobre cartas”.
O quinto e último conto é A Cartomante. Narrado em terceira pessoa traz o relato de um caso de adultério com uma visão objetiva e pessimista da vida, do mundo e das pessoas. Há neste conto uma psicologia das contradições humanas, das relações entre os protagonistas e seus padrões de comportamento. Machado de Assis utiliza uma linguagem simples, entretanto, não despreza os detalhes necessários a uma análise profunda da psicologia humana. O leitor é envolvido pela oralidade da linguagem. A história está repleta de conversas que o narrador estabelece freqüentemente com o leitor, transformando-o em mais um participante do enredo. A intertextualidade é utilizada para analisar a mesquinhez humana e a precariedade da sorte humana. Os aspectos externos (tempo cronológico, espaço, paisagem), são apenas de referência, sem merecerem mais destaque.
A Cartomante é um conto onde podemos observar características marcantes do estilo de Machado de Assis. O uso de metáforas constantes, o comportamento imprevisível dos personagens e seu valor filosófico, o uso de comparações, as superlativas, bem como a ambigüidade em seus personagens e a onisciência do autor, que a utiliza para narrar e descrever os fatos. Citando Shakespeare:
Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.
Em Várias Histórias nos deparamos com um escritor totalmente maduro e no ápice de suas produções. Machado, com maestria e exatidão, consegue deixar transparecer sua intenção ao apresentar-nos personagens tão completos e ricos em sua composição. Nessa coletânea, o autor aponta para fatos que revelam que por trás do tema comum de perversão universal, há um constante diálogo entre o escritor e o leitor.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.