Menino-Homem

Era um menino escondido no corpo de um adulto. Não que estivesse ali por arte ou molecagem - nem sabia como - mas um dia acordou e viu-se num corpo bem mais velho que o seu. Num primeiro momento ficou assustado. O que teria acontecido com a sua vida? Como pôde ficar ausente durante toda a adolescência e baixa maturidade? Era como se tivesse dormido e acordado no dia seguinte num corpo diferente do seu. Mas era o seu sim, só que mais velho. Esteve ali o tempo todo, mas o adulto não o deixou fazer nada. Quando começou a trabalhar, aos treze anos de idade, sufocou o menino e quis crescer rápido. Depois, jovem profissional, tinha que parecer responsável e, por isso, mais velho. Naquele dia, contudo, homem maduro, não precisando mais das falsas aparências, descuidou do menino e este fugiu do esconderijo no qual era mantido trancado a sete chaves.


Pobre menino-homem, foi enganado. O homem-menino negou a si mesmo o direito de ser criança. E como fez bobagens tentando ser maduro!...

Depois do impacto inicial o menino gostou do que encontrou. Aos olhos do pobre menino o homem era rico. Acabara de acordar e ainda não entendia direito o que se passava. Pulou do colchão de molas, enorme, que jamais imaginara que um dia pudesse vir a ter. Entrou no banheiro - exclusivo de sua suíte - e viu a própria imagem, refletida no espelho que ia do mármore da pia até o teto e de uma parede à outra nas laterais bisotadas. Seu corpo estava mal cuidado. A barriga denunciava a falta de exercícios físicos e os excessos da gula. Os cabelos grisalhos mostravam que a juventude era só uma lembrança. As marcas de expressão em seu rosto anunciavam a passagem do tempo, esse vigilante voraz e impiedoso. Exceto por ele próprio tudo o mais era bonito ali. Tinha de tudo. Sobre a pia havia uma estatueta de uma mulher nua - em mármore branco - e um arranjo de flores artificiais. No lado que aparentava ser de sua mulher havia cremes de todos os tipos. Do seu lado um barbeador elétrico que usou com orgulho. Como sua barba era grossa! O armário de toalhas estava lotado, nunca vira tantas antes. Escolheu uma pela cor - sabia que as de cores escuras eram suas - e entrou no box. O chuveiro ficava sobre uma banheira - que chique - e era fechado por uma parede de vidro blindex - um luxo. A água que vinha de uma ducha diagonal, fortíssima, quentinha, escorria pelo seu corpo e nem de longe lembrava aquele chuveiro de um pingo só a que estava acostumado quando criança - era uma ducha elétrica colocada em baixa altura, que se abrisse muito o registro a água ficava gelada - não dava vontade de sair dali. Escolheu um dos muitos xampus que estavam na prateleira de vidro. Alguns eram condicionadores e ele nem sabia a diferença. Passou vários deles nos cabelos. Depois de um longo banho saiu e se enxugou, feliz da vida. O seu dia estava apenas começando.


Saiu do banheiro e viu sua mulher deitada na cama 'king size'. Nos seus olhos cansados enxergou a menina sonhadora que um dia apostou nele e embarcou em seus sonhos, suportando seu mau-humor, seu cansaço, seus medos. Enfrentaram muita coisa juntos e ela sempre resistiu firme. Beijou-a agradecido e feliz porque ela ainda estava ali. Era a melhor pessoa que conhecera. Tiveram duas filhas lindas.

Escolheu um terno ajeitado no armário lotado. Nossa! Como estava elegante. Era um senhor respeitável. Nem perceberiam que era apenas um menino. A consciência do menino não excluiu a do adulto. Tinha todo o conhecimento do adulto, mas seu espírito era o do menino.

Foi até a garagem e viu o carrão sofisticado. Nunca pensou que um dia teria um daqueles. Saiu feliz para o seu dia. Será que o perceberiam?

Esta é a história do menino que está em mim e em você. Não o sufoque tanto como eu fiz. Não espere envelhecer para libertá-lo. Você pode ser muito mais feliz hoje mesmo!