Minha mãe e a cultura iletrada
Acordava assustada. Logo olhava para os pés da cama, lugar preferido para sua mãe aparecer. Fazia-lhe carinho, olhava-a longamente e depois sumia. Era assim que matava as saudades daquela que conhecia apenas nos sonhos.
Nessas horas, sentia-se protegida, sabia quem era. Instantes de alegria e pertencimento, como nunca sentia quando estava em vigília.
Mal abria os olhos e a solidão rondava-lhe a alma, novamente. Entre paredes e velhos utensílios voltava para o seu abismo particular. Literatura, ela não conhecia. Assim como os livros que nunca fizeram parte dos seus pertences. Mal aprendeu a andar, começou sua peregrinação. Lavar, passar, cozinhar, pregar botão.... Bonecas, só as de pano e sabugos de milho, que ela própria fazia. Cresceu servindo aos seus, até que grande o bastante, saiu para o mundo...E nesse mundo iletrado, cresceu, reproduziu e morreu...mas não por falta de literatura, talvez por excesso de sonhos.
[...] Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos nós, analfabeto ou erudito –, como anedota, causo, história em quadrinho, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a tenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance. (Cândido, Antonio. Vários Escritos. (pág. 242)
O termo cultura provém do latim colere, cultivar, tratar, cuidar, abrangendo dois vocábulos gregos diversos: georgia (cultura do campo, agricultura) e mathermata (conhecimentos adquiridos) Da Antiguidade à Renascença, utilizaram-se mais correntemente as palavras humanitas ou civilitas (essa do latim cives) para se designar um homem não apenas educado intelectualmente ou artisticamente, mas inserido numa ordem racional e politicamente construída. .
A palavra, como hoje a conhecemos em sua extensão social ou coletiva, passa a ser usada pela língua alemã no século XVIII (kultur) com o sentido de refinamento espiritual ou enobrecimento de todo um povo pelo "cultivo" de conhecimentos.
Antropologicamente o conceito de cultura apareceu em 1871, na obra Primitive Culture do britânico Burnett Tylor, que identificou história e cultura no sentido de capacidade intelectual, desenvolvendo-se por meio de diferentes manifestações, afirmando ser a cultura " O complexo de conhecimentos, crenças, artes, leis, moral, hábitos, costumes e capacidades adquiridos pelos homens como membros de uma sociedade".
Para entender o conceito que se deu ao termo cultura é necessário pensar que a palavra é usada em oposição à natureza. Essa como princípio não gerado pela vontade humana, levando-se em conta que há um componente universal e natural do ser humano – sua animalidade, configuração e estrutura biológicas, sua libido e pulsões inatas e que o homem é um ser que não se comporta inteiramente submetido à natureza.
E assim, tudo que se atém ou decorre de regras sociais significativas transmissíveis e educativas, diz respeito à cultura (normas, valores, conhecimentos práticos e teóricos e comportamentos grupais, contendo significados. Se a natureza obedece a leis imprescindíveis e universais, a cultura por ser um fenômeno essencialmente humano, permite ações livres ou de constante recriação.
Portanto usando a máxima do professora Gabriel Perissé: "Cultura é tudo aquilo produzido pelo homem. Tudo que é produzido pelo homem é cultura (informação verbal).
Passando agora para a classificação da cultura; de raça para a nação e da nação para a classe social, verificamos que ela subdivide-se ainda em cultura do rico, cultura do pobre, cultura burguesa, cultura operária etc. Dessa forma fica impossível pensar, falar ou analisar a cultura partindo do pressuposto de sua existência no singular.
A nós, nesse momento, interessa particularmente a cultura popular – iletrada – encontrada basicamente nas manifestações materiais e espirituais do homem rústico, sertanejo e interiorano.
Na minha infância sempre soube o que não queria ser – burra – como minha mãe. Era assim que classificava aquela mulher que nunca aprendeu a ler e escrever. Não entendia como alguém podia viver sem o básico da cultura dos letrados – a escrita. Sabia que lhe fazia falta, não mais que os números que bem conhecia, metendo-se até à vendedora. As músicas que às vezes cantava, eram as mesmas que ouvia da tia quando pequena, lá na fazenda. Mas ouvia as do rádio, e gostava muito de Elton John e Bee Gees. Histórias, fora a sua, quase nunca contava, ouvira poucas também. Talvez por isso criara o gosto por telenovelas.
Lembro-me dela conversando com as plantas, brincando com as crianças, dando de comer aos animais. Havia pureza nos seus gestos e ingenuidade nas suas atitudes. Sua forma de relacionar-se com o mundo era exatamente como descrito dentro da cultura popular, muito mais ligada às tradições e costumes de um povo, e principalmente com o residual de uma sobrevivência das culturas indígenas, negra, cabocla, escrava ou, mesmo portuguesa arcaica: culturas que se produziram sempre sob a marca da dominação, correspondendo a estados de primitivismo, atraso, demora e subdesenvolvimento.
Ela adorava cozinhar para muitos, não fazendo questão de sentar-se à mesa, indo sempre lavar a louça depois. O servir sempre esteve presente em sua vida, o olhar baixo, o distanciamento a falta de interesse pelo desconhecido, o que não lhe dizia respeito. Sua relação dava-se muito mais com a natureza das coisas – a lida – seu dia-a-dia, pois era a maneira que ela conseguia exprimir também a sua sabedoria. Acreditava no sobrenatural, temia os castigos e mantinha com os deuses uma relação de troca. Ascendendo velas e fazendo pedidos. Curava-se com ervas, que pela necessidade aprendeu a conhecer. Assim mantinha-as e/ou emprestava de um vizinho sempre que ela, sua família ou um necessitado precisasse.
Muitas vezes ela quis participar dos programas de auditório ou fazer pedidos aos ídolos da comunicação de massa. Via nos programas de televisão a salvação para algumas de suas aflições. Nessas horas faltava-lhe a instrução necessária (escrever a cartinha, ou chegar ao local da gravação) e, principalmente o consentimento dos seus, que não concordavam com aquela forma de exploração da imagem alheia.
Talvez dentro de todas as características que eu possa apresentar para afirmar que a sua era uma cultura popular, faltará ainda uma mais importante, a relação de grupo, e de pertencimento, pelo qual se mantêm e resiste à perda de elementos individuais. Sem suas raízes espelhava-se em outras culturas e assim aos poucos se esquecia da sua, deixando-nos a impressão de um vazio que não se preenchia com o que o nós ou a sociedade achávamos que era necessário para a sua sobrevivência, e sim, com o sonho de um dia voltar a pertencer.
Mas o que me fez pensar que pelo fato dela nunca ter ido a uma escola ela era burra – ou ainda – por que nunca quis ser como ela? E o pior. De onde eu, uma criança na época chegara a essa conclusão?
Em uma das acepções do Dicionário Houaiss o termo burro significa: pejorativamente que ou o que é ignorante, falto de informação, de cultura. E assim, é fácil relacionar o termo burro à falta de cultura. E que isso não era devido a uma imaginação criativa, mas ao tipo de formação que, apesar de estar baseada nas letras, devendo esclarecer e ajudar a compreender o outro, distanciava-se, não deixando enxergar a diversidade e a riqueza também existente em outros modos de vida, ou outros tipos de culturas.
Talvez na escola em que estudei a valorização da cultura erudita e da cultura de massa foi muito maior ao da cultura popular, deixando a sensação de que essa era inferior e não deveria ser entendida, estudada ou copiada. Dela pouco aprendi, pouco interessei-me e pouco ocupei-me, assim como fiz com todo o conhecimento de minha mãe.
Essa confusão pode ser explicada em partes, a partir dos anos 70, por uma mudança estrutural na educação onde toda a cultura superior acaba procurando significados e valores no seu trabalho, rompendo-se em um movimento para dentro, de enrijecimento extremo e imitativo; e em uma superação que desemboca na negação da negação. Entre as medidas implantadas nessa época de abertura política estão - doutrinas sociopolíticas baseado em ideais neocapitalistas; substituição do estudo de História Geral, Geografia Geral, de História do Brasil e de Geografia do Brasil por uma disciplina chamada Estudos Sociais; extinção do ensino da língua francesa, pela predominância econômica dos Estados Unidos e a extinção abrupta da disciplina Filosofia dos cursos médios. [...] A reflexão teórica e crítica por excelência, capaz de perscrutar a significação das ciências da Natureza, das ciências do Homem, o andamento da cultura e suas implicações ideológicas, é afinal alijada no período crucial de formação do adolescente e, por motivos análogos, praticamente desaparece dos currículos superiores (Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização, pág. 314).
Nascemos humanos mas precisamos tornarmos humanos e isso só é conquistado com a interação. É necessário construir-se culturalmente, agregar valores e quando uma sociedade nega essa chance aos indivíduos perde-se a oportunidade do enriquecimento, entre outras coisas. Particularmente perdi a oportunidade de ser uma pessoa melhor. Não deixando-me contagiar com a alegria de compartilhar o simples, em outras proporções, tornei-me exatamente o que temia, o que descriminava – uma burra –, ignorante, por desconhecer a cultura do outro, supervalorizar a cultura em que eu estava inserida e desprezar a cultura iletrada.
Bibliografia:
- Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0 5a.Novembro 2002.Editora Objetiva Ltda.
- CÂNDIDO, Antonio. Vários Escritos.
- BOSI, Alfredo, 1936. Dialética da Colonização. São Paulo. Companhia das Letras, 1992.
- CUNHA, Newton. Dicionário SESC – A linguagem da Cultura. São Paulo. Perspectiva, 2003.